COMENTÁRIO

Mortalidade materna perinatal: uma questão pediátrica

Dra. Barbara J. Howard

Notificação

21 de novembro de 2023

A avaliação do bem-estar materno é um aspecto reconhecidamente importante no atendimento primário pediátrico. Perguntar "Como você está?" à mãe da criança é, há muito tempo, considerado apropriado. A American Academy of Pediatrics (AAP) recomenda diversas verificações nas Diretrizes do Bright Futures, o que inclui a realização de uma série de exames para depressão e perguntas sobre “passar um tempo sozinho com o(a) parceiro(a)”, bem como outros tipos de suporte.

No entanto, recentemente tomei conhecimento de novos dados que mudaram as minhas perspectivas sobre o papel que nós, pediatras, exercemos em relação aos cuidados com as crianças e suas famílias, especialmente no primeiro ano: devemos considerar os riscos de morte materna.

Dra. Barbara J. Howard

A mortalidade materna aumentou 26,6% entre 2000 e 2014 nos Estados Unidos, de tal forma que é mais elevada agora do que era para as nossas próprias mães. O país tem agora as taxas mais elevadas desse quadro entre as nações de renda alta, especialmente para mulheres negras, indígenas americanas ou nativas do Alasca, aquelas de condição socioeconômica mais baixa e aquelas com menos de 18 ou mais de 35 anos de idade.

Você pode estar pensando que esse é um problema para obstetras. Na verdade, as razões mais comuns para a morte materna são cardiovasculares: hemorragia, distúrbios hipertensivos, trombose venosa profunda e acidente vascular cerebral, todos geralmente ocorrendo na primeira semana após o parto. Um exemplo é a insuficiência cardíaca súbita e inesperada causada por cardiomiopatia pós-parto, embora rara (1 em 1.000-4.000), apresentando-se desde um mês antes do parto até cinco meses após, período em que podemos ser os principais clínicos que atendem a mãe, não os obstetras. O quadro pode facilmente passar despercebido, pois se apresenta com dispneia e diminuição da tolerância ao exercício, fadiga, palpitações e/ou edema nas pernas. A eclâmpsia grave pode apresentar apenas sintomas de cefaleia ou dor abdominal. Tudo isso pode ser facilmente confundido com sintomas persistentes da gestação. Contudo, em países de rendimento mais elevado, como os EUA, 38% das mortes maternas ocorrem entre 8 e 42 dias após o parto, período propício para infecções fatais, bem como para complicações cardíacas. O risco elevado para todas essas causas de mortalidade inclui a raça negra, obesidade, tabagismo, doenças cardíacas congênitas e idade superior a 40 anos.

Como profissionais de cuidados pediátricos, podemos encontrar mães juntamente com os seus bebês no hospital, no segundo dia de vida, aos 15 dias, ou mesmo um a dois meses após o nascimento, possivelmente antes da consulta obstétrica pós-natal, recomendada entre três e oito semanas. Perguntar à mãe como ela se sente nessas ocasiões não deve ser apenas uma gentileza social, mas uma verificação adicional de possíveis complicações pós-natais graves.

Preocupações adicionais

Mas espere, fica pior.

Você sabia que a principal causa de morte materna, desde a gestação até um ano após o parto, é o homicídio?

Os números da mortalidade materna geralmente não incluem mortes “associadas ao período perinatal”, que são óbitos atribuíveis a quadros não afetados pela gestação e ocorrem até um ano após o parto (que citarei a seguir como perinatal). Embora metade das mortes maternas ocorra durante a gestação, a outra metade ocorre no ano seguinte. Houve uma taxa de 3,62 homicídios por 100.000 nascidos vivos entre gestantes ou no período de um ano após o parto, 16% a mais do que entre mulheres não gestantes e não puérperas de idade semelhante (3,12 mortes/100.000 habitantes, P < 0,05).

Os homicídios representaram 8,4% das mortes maternas perinatais notificadas por todas as causas, com uma taxa de 1,7 por 100.000 nascidos vivos, o dobro da taxa de qualquer uma das outras causas principais mencionadas anteriormente. As mulheres negras tinham sete vezes mais risco de homicídio perinatal do que as brancas. Aquelas com menos de 20 anos, muitas delas nossas próprias pacientes pediátricas, apresentavam um risco seis vezes maior, e aquelas com idade entre 20 e 24 anos apresentavam um risco 65% maior de homicídio associado à gestação entre diferentes raças e grupos étnicos. O homicídio é mais provável antes das 21 semanas de gestação, diminui no terceiro trimestre, mas aumenta novamente após o nascimento. Dois terços das mortes por homicídio associadas à gestação ocorreram em casa, sendo o perpetrador um parceiro atual ou anterior (> 59%, sendo 98% do sexo masculino), 45%-50% foram associadas à violência relatada entre parceiros íntimos, e o método mais utilizado foi a arma de fogo (55%). Muitas vezes, essas mulheres tinham história de abuso de substâncias, doenças mentais graves e/ou violência entre parceiros íntimos anteriores, todos fatores de risco para mortes associadas à gestação, incluindo homicídio.

Homicídio? “Não com as mães do meu consultório”, você poderá dizer, mas as mortes relacionadas a drogas (3,68 por 100.000 pessoas-ano) e o suicídio (1,42 por 100.000 pessoas-ano) em conjunto representam 18% de todas as mortes maternas. Mulheres brancas não hispânicas, aquelas seguradas pelo Medicaid e residentes em cidades menores eram especialmente propensas a morrer por causa de drogas ou suicídio. Mais de metade (54,3%) dos suicídios perinatais envolvem conflitos entre parceiros íntimos, o que aumenta o risco em nove vezes. Os transtornos de humor perinatais, que afetam até 15% das gestantes e puérperas nos EUA, também são um fator de risco para abuso de substâncias, morte por overdose de opioides e suicídio.

O uso de substâncias tornou-se mais perigoso com o aumento do uso de fentanil. As mortes relacionadas aos opiáceos durante gestação (4%-10% das mortes) mais do que duplicaram entre 2007 e 2016 e, embora as taxas sejam mais elevadas para as mulheres negras, o aumento foi maior para as brancas não hispânicas. Dois terços dessas mortes ocorrem entre 6 e 12 meses após o parto, período em que as pacientes estão sob nossa supervisão.

Embora muitas mulheres diminuam o consumo de substâncias durante a gravidez, existe uma tendência de retomada do uso de drogas, com as taxas aumentando quatro vezes entre 7 e 12 meses após o parto, frequentemente sem que haja tratamento adequado. A farmacoterapia (por exemplo, tratamento com metadona e buprenorfina) é o padrão atual de tratamento para o transtorno por uso de opioides durante a gestação. No entanto, quase metade daqueles que recebem tratamento em centros financiados publicamente não têm acesso a esses medicamentos, e outros podem perder o seguro ou o acesso a planos de tratamento relacionados à gestação depois do parto, aumentando o risco de recaída. O estigma e as abordagens punitivas ou discriminatórias às gestantes com transtorno por uso de opioides (por exemplo, prisão e remoção das crianças) podem dissuadi-las de buscar tratamento, aumentando o risco de overdose.

É importante notar que em mais de metade das 41 mortes por trauma violento num estudo (incluindo 22 homicídios), os prestadores de serviços obstétricos sabiam ou suspeitavam de violência entre parceiros íntimos. Além disso, a grande maioria (74%) das pessoas que morreram por drogas ou suicídio fizeram uma ou mais visitas ao serviço de urgência ou ao hospital entre o parto e o óbito, e 39% realizaram três ou mais consultas. Sem informações sobre as ações tomadas nesses casos, é notável também que, além de profissionais atenciosos e compassivos, há por vezes segmentação de responsabilidade, insensibilidade, discriminação, racismo, estigma, desigualdade, falta de recursos, falta de acesso, falta de mecanismos de pagamento, questões legais para os imigrantes, restrições de tempo e outras deficiências sistêmicas que podem impedir o cuidado eficaz destas mulheres e das subsequentes.

Conscientização e ação

Como prestadores de cuidados pediátricos primários, qual é a nossa responsabilidade diante dessas ameaças às mães e jovens gestantes de quem cuidamos? É evidente que os seus filhos, os nossos principais pacientes, seriam terrivelmente e permanentemente prejudicados pelos danos sofridos pelas suas mães — as experiências infantis extremamente adversas e os determinantes sociais da saúde com os quais já estamos comprometidos.

Espero que este artigo ajude a alertar os profissionais da atenção pediátrica sobre o tema, principalmente no que diz respeito às questões de saúde da mulher e à saúde pública.

Primeiramente, precisamos estar cientes dos sintomas físicos que podem surgir em nossas interações com gestantes e puérperas, para que possamos educá-las e agilizar qualquer atendimento de emergência indicado.

Em seguida, precisamos expandir nossa triagem de rotina de mães e gestantes, indo além dos determinantes sociais de saúde mais impactantes (incluindo depressão, uso de substâncias e violência doméstica). Devemos incluir ansiedade, tentativas de suicídio prévias e ideação suicida atual, bem como a presença de armas de fogo. Essa avaliação deve ser feita de forma precoce e repetida ao longo do primeiro ano de vida da criança.

Adultos e adolescentes são mais propensos a revelar riscos para questões delicadas através de questionários do que em entrevistas, especialmente quando o paciente identificado é seu filho e não eles próprios. Qualquer rastreamento pode ter falsos negativos, portanto é fundamental fazer perguntas diretas quando há suspeita de risco. O propósito do rastreamento pode ser enquadrado como o cuidado do cuidador, que é a pessoa mais importante para a criança. Isso poderia ser acompanhado pelo reconhecimento de que a gestação e o primeiro ano de vida podem ser difíceis para as mães e os seus parceiros e que queremos apoiá-los e conectá-los a recursos, se necessário.

Quando o transtorno por uso de substâncias é reconhecido, devemos prescrever e orientar sobre antídotos para overdose. Em casos de violência interpessoal, a discussão deve abranger a remoção/bloqueio de armas de fogo, bem como o aconselhamento sobre um plano de segurança pessoal.

É essencial trabalhar com uma equipe, presencial ou virtual, que inclua profissionais familiarizados com os recursos da comunidade e capazes de coordenar o atendimento. Além disso, é crucial informar sobre os telefones 211 para serviços de apoio e 988 para situações de risco de suicídio.

Por fim, podemos defender e votar em programas, pessoas e leis que apoiem e protejam as mulheres e as famílias, abordem o uso de substâncias e reduzam o acesso a armas de fogo.

Dra. Barbara é professora assistente de pediatria na Johns Hopkins University, nos EUA, e criadora do CHADIS ( www.CHADIS.com ). Ela não informou outros conflitos de interesses. A contribuição da Dra. Barbara para essa publicação foi como especialista paga pelo MDedge News. Seu e-mail é  pdnews@mdedge.com

Este conteúdo foi originalmente publicado no MDedge.com ─ Medscape Professional Network.

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