COMENTÁRIO

Útero artificial: dilemas sobre testagem

Dr. Arthur Caplan, Ph.D.

Notificação

20 de novembro de 2023

Este conteúdo foi editado para maior clareza.

É possível que você já tenha ouvido falar que, não muito tempo atrás, a Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos convocou uma audiência pública sobre uma nova tecnologia incrível: o útero artificial. A reunião teve como propósito ouvir a opinião de cientistas para avaliar a viabilidade do uso de úteros artificiais com o objetivo de salvar a vida de bebês extremamente prematuros. Penso que é preciso refletir sobre o tema, pois, seja a aprovação liberada este ano ou no próximo, a tecnologia está a caminho.

Médicos e cientistas têm trabalhado arduamente para tentar desenvolver algum tipo de sistema que permita a sobrevivência de bebês prematuros, mesmo quando os pulmões ainda não estiverem formados. O limite atual para a prematuridade é baseado justamente no fato de que os fetos nascidos antes de 20 a 23 semanas simplesmente não têm pulmões. Lembre-se: todos nós nascemos como pequenos "seres marinhos", nadando no líquido amniótico do ventre materno.

Os fetos precisam de substâncias químicas para manter a respiração. Se conseguíssemos criar uma solução artificial e implementá-la em um sistema adequado, como uma bolsa que simule o útero, então poderíamos ampliar os esforços para salvar a vida de bebês prematuros com menos de 23 ou 24 semanas.

Você conhece o antigo limite de tempo para o aborto, estabelecido com base em uma decisão prévia da Suprema Corte dos EUA, antes de ser anulada recentemente pela atual Suprema Corte? A instância máxima da justiça americana se baseou em informações de especialistas e concluiu que a viabilidade fetal estava entre 24 ou 25 semanas. Agora, essa nova tecnologia irá possivelmente ampliar a viabilidade para idades fetais mais precoces.

Isso levanta uma série de questões, tanto em relação à incorporação dessa tecnologia na obstetrícia/ginecologia quanto nas decisões de políticas públicas sobre como lidar com essa ferramenta no contexto do debate sobre o aborto. O surgimento dessa tecnologia irá suscitar uma série de questões éticas à medida que buscamos sua integração na obstetrícia e no debate atual sobre o aborto nos EUA.

Quanto à utilização desta tecnologia, a principal questão envolve a decisão sobre quem será submetido aos testes inicialmente. Vale ressaltar que o nascimento natural de um bebê prematuro não é possível, a menos que exista um útero artificial disponível. Para começo de conversa, nesse caso estamos falando de cesarianas eletivas, estando cientes de que existem grandes chances de a gestante ter um filho prematuro. Nessas circunstâncias, a tecnologia e o parto podem ser coordenados para que o bebê prematuro seja colocado diretamente no útero artificial.

Determinar quem será submetido primeiro ao procedimento em termos de prematuridade levanta muitas questões sobre imparcialidade e justiça na seleção de pacientes. Gestantes acompanhadas no pré-natal com fetos sabidamente com problemas podem ser consideradas como potencias primeiras candidatas a utilizar um útero artificial. Da mesma forma, mulheres com alto risco de prematuridade devido ao abuso de substâncias prejudiciais talvez concordassem em ter seu feto removido via cesariana e submetido a essa tecnologia se o risco fosse muito elevado. Além disso, existem outras doenças genéticas e clínicas que também colocam as gestantes em alto risco de parto prematuro.

Classificar quem tem prioridade será difícil, e não podemos prometer que a tecnologia permitirá o desenvolvimento de um bebê saudável. Quando o feto é colocado no útero artificial, ele só pode ficar lá por um curto período. A esperança é que esse tempo seja o suficiente para que seus pulmões amadureçam, e então ele seja transferido para uma UTI neonatal.

Existe muita tecnologia envolvida, e os custos são elevados. Quem paga por tudo isso? No fim das contas, estamos falando de mulheres que podem ter acesso ao útero artificial e à UTI neonatal. Eu diria que certamente a tecnologia favorecerá pessoas em melhor situação socioeconômica e mais orientadas que, em primeiro lugar, já recebem uma boa assistência obstétrica. Penso que haverá uma desvantagem no acesso à essa tecnologia para as pessoas pobres ou sem seguro-saúde, considerando todas as etapas necessárias.

Obviamente, será preciso dizer às mulheres que esse é um grande experimento. Presumo que muitas delas estariam dispostas a correr o risco se soubessem que o seu filho nasceria prematuro e evoluiria para o óbito, o que ocorre com bebês sem pulmões minimamente formados. Isso significa que é melhor garantirmos que a ciência por trás do método é sólida. É justamente com isso que a FDA está lidando, mas também é algo que precisa ser enfrentado em cada instituição que concorda em fazer o experimento.

Digamos que o útero artificial funcione e que essa tecnologia seja difundida. Teremos algumas questões interessantes, como identificar quando a viabilidade fetal realmente começa. Alguns estados dos EUA estão aprovando leis que proíbem o aborto após seis semanas, e outros estão abolindo o aborto após 15 semanas. Além disso, certos estados estão criminalizando o aborto após o limite da viabilidade fetal, mas essa viabilidade seria alterada se tivéssemos uma tecnologia que permitisse a sobrevivência de um bebê prematuro com 17, 18, ou talvez até 15 semanas.

Será que isso irá (e deveria) moldar as nossas decisões sobre permissão do aborto, dando às mulheres o poder de escolha diante da prematuridade e das ameaças à saúde do seu bebê, o que inclui a consideração sobre criar uma criança com deficiências ou não necessariamente saudável?

Em muitos estados, essas decisões estão sendo retiradas das mãos das mulheres. Usando uma tecnologia como essa, há argumentos fortes para permitir que essa escolha seja feita pela gestante. Ela é a paciente. É ela quem terá que tomar decisões sobre os cuidados com esse feto e o que acontecerá com ele se as coisas não estiverem indo bem.

Será difícil defender os direitos dessas mulheres, dado o contexto em que vivemos e que não creio que vá mudar muito no futuro em muitos estados americanos, que basicamente dizem: "Estamos tirando a decisão de vocês. Você terá que ter esse bebê e terá que usar essa tecnologia." Não apoio essas posições, mas penso que é algo que podemos começar a introduzir no debate atualmente.

O útero artificial, de forma geral, talvez ainda não esteja pronto para o uso pleno. Vamos testá-lo e ver o que vai acontecer. Sou totalmente a favor dessa abordagem. No futuro, teremos diante de nós escolhas difíceis sobre acesso e consentimento informado, e como essas questões irão remodelar o pensamento sobre o aborto, uma enorme controvérsia ética que assola os EUA.

Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape

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