Em outubro de 2023, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou um novo guia para a alimentação complementar de crianças entre seis meses e dois anos de vida, com algumas mudanças em relação ao que antes era considerado o “estado da arte” sobre o tema. [1] Recentemente, em 07 de novembro, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) emitiu uma nota técnica especial comentando sobre o que mudou e contextualizando o tema de acordo com as recomendações brasileiras. [2]
Na medicina, mudanças não são incomuns: valores de referência vão sendo ajustados, métodos diagnósticos aprimorados e os contextos epidemiológicos estão em constante mutação; as diretrizes são feitas para serem atualizadas. Até por isso, os profissionais da saúde mais atentos estão acostumados às constantes mudanças, e buscam se pautar nas orientações mais recentes para exercer uma medicina baseada em evidências, mesmo sabendo que nem tudo é “preto no branco”.
Para a população, no entanto, encarar as atualizações de “certo ou errado” pode não ser tão simples. E, no caso específico da alimentação infantil, temos o grande papel das redes sociais influenciando as decisões dos pais sobre o que é melhor para os seus filhos.
Até poucas semanas atrás, pais que decidissem fazer a introdução alimentar antes dos seis meses de vida do bebê, ou que oferecessem leite de vaca integral ao bebê nesse período, provavelmente seriam bombardeados por outros pais em defesa das melhores evidências e recomendações pediátricas. Mas agora as coisas mudaram.
O documento da OMS traz sete recomendações em quase 100 páginas indicando as evidências nas quais se basearam para a elaboração do guia. Aqui, proponho uma breve reflexão sobre três dessas recomendações.
1. Idade ideal para a introdução alimentar
As recomendações brasileiras e internacionais destacam a introdução da alimentação complementar aos seis meses de vida, idade na qual a maioria dos bebês já apresentam um desenvolvimento neuropsicomotor suficiente para que sejam alimentados com segurança. São os chamados sinais de prontidão: redução ou desaparecimento do reflexo de protusão lingual, sustentação cervical e capacidade de se sentar com pouco ou nenhum apoio.
Claro que, biologicamente, sabemos que nenhum milagre acontece quando o lactente completa seis meses de vida. O desenvolvimento neuropsicomotor é contínuo, e esses marcos vão sendo alcançados e melhorados aos poucos.
Em seu novo documento, a OMS discute que algumas crianças podem se beneficiar da introdução mais precoce da alimentação complementar. A verdade é que existem poucas evidências robustas das vantagens em introduzir a alimentação aos seis meses — ou dos riscos de fazê-lo antes disso. A maioria dos estudos que comparou momentos para a introdução alimentar não encontrou diferenças estatisticamente significativas em desfechos como ganho ponderal, anemia, doenças respiratórias ou alérgicas.
Além disso, questões culturais e preferências familiares também devem ser levadas em consideração. Em diversos países, não é fácil manter o aleitamento materno exclusivo até os seis meses, por exemplo.
2. Leite de vaca integral
O guia da OMS sugere que, para lactentes de 6 a 11 meses que não são amamentados, tanto as fórmulas infantis como o leite de vaca integral sejam utilizados. Já a partir de um ano de vida, deve-se usar o leite de origem animal, e as fórmulas infantis de seguimento não são mais recomendadas. Porém a SBP mantém a recomendação de uso de fórmulas até o fim do primeiro ano de vida.
Os estudos que compararam o consumo de leite de vaca com fórmulas infantis nessa faixa etária não encontraram diferenças nos desfechos relacionados a crescimento, desenvolvimento e incidência de doenças na infância. Entretanto, as crianças alimentadas com leite animal parecem ter mais risco de carência de ferro e vitamina D.
Cabe destacar que, no Brasil, recomenda-se a reposição profilática de ferro e vitamina D para toda essa população de lactentes, independentemente da dieta realizada.
Novamente, precisamos considerar também aspectos culturais e econômicos envolvidos nessa decisão, afinal o custo das fórmulas infantis pode ser excessivo para muitas famílias brasileiras.
3. Suco de frutas natural
Esse tema, embora discutido pela OMS dentro de um contexto mais amplo, foi levado para as redes sociais com alguns erros de interpretação. O documento destaca que os estudos avaliando o consumo de sucos não revelaram evidências de impacto negativo em desfechos de saúde. No entanto, como os sucos concentrados são ricos em açúcar natural, ainda é recomendado evitar o consumo, especialmente antes do primeiro ano de vida.
Então, ao contrário do que você talvez tenha visto no Instagram, a OMS não “liberou” o suco de frutas, e a SBP segue de acordo com esse posicionamento.
Os profissionais da saúde têm o dever de acompanhar as mudanças nas diretrizes de suas áreas de atuação, mas às vezes só isso não basta. É preciso conscientizar pacientes e familiares de que as recomendações mudam à medida que continuamos a estudar e pesquisar o que é melhor para todos e que, em medicina, é muito difícil haver uma verdade absoluta.
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Citar este artigo: Novas recomendações da OMS para alimentação infantil: controversas ou inovadoras? - Medscape - 17 de novembro de 2023.
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