Mulheres com choque cardiogênico associado a insuficiência cardíaca (IC) apresentam piores resultados e mais complicações vasculares do que homens, mostra nova análise de dados de registro.
"Os dados revelam a necessidade de continuarmos a trabalhar para identificar barreiras ao diagnóstico, à conduta e às inovações tecnológicas para as mulheres em choque cardiogênico, a fim de resolver essas questões e melhorar os resultados", disse o autor sênior do estudo, Dr. Navin Kapur, médico afiliado ao Tufts Medical Center nos Estados Unidos.
Esse estudo é considerado uma das maiores análises contemporâneas de dados de registro do mundo real a comparar mulheres e homens quanto a características e desfechos no choque cardiogênico.
O estudo mostrou diferenças específicas entre os sexos nos desfechos que foram primariamente impulsionados pelas diferenças do choque cardiogênico relacionado com a IC. As mulheres apresentaram um quadro mais grave de choque cardiogênico, pior sobrevida na alta e mais complicações vasculares do que os homens. Já os desfechos do choque cardiogênico relacionados com o infarto agudo do miocárdio (IAM) foram semelhantes para homens e mulheres.
O estudo, que será apresentado no próximo encontro da American Heart Association (AHA), foi publicado on-line no JACC: Heart Failure em 06 de novembro.
O Dr. Navin fundou o Cardiogenic Shock Working Group em 2017 para obter dados de qualidade sobre a doença.
"Percebemos que os nossos pacientes estavam morrendo, e não tínhamos dados suficientes sobre a melhor forma de tratar. Então, iniciamos este registro, e agora temos dados detalhados sobre cerca de 9 mil pacientes com choque cardiogênico de 45 hospitais nos EUA, México, Austrália e Japão", explicou.
"O principal objetivo é tentar investigar as questões relacionadas ao choque cardiogênico que possam informar a conduta, e uma das questões-chave que surgiu foi a diferença na forma como homens e mulheres apresentam o quadro e quais são os seus desfechos. Isto é o que estamos trazendo neste artigo", acrescentou.
O choque cardiogênico é definido como baixo débito cardíaco, mais comumente em decorrência de um IAM ou de um episódio de IC aguda, disse o Dr. Navin. Os pacientes com choque cardiogênico são identificados pela baixa pressão arterial ou hipoperfusão evidenciada pelo exame clínico ou por biomarcadores, como níveis elevados de lactato.
"Nesta análise, estamos olhando para pacientes com quadro de choque cardiogênico, por isso não nos concentramos na incidência do quadro entre homens versus mulheres", observou Dr. Navin. "No entanto, acreditamos que o choque cardiogênico é provavelmente mais sub-representado entre as mulheres, que podem ter um IAM ou uma IC aguda e não ser identificadas como tendo baixo débito cardíaco em fase tardia. A probabilidade é que a incidência seja semelhante entre homens e mulheres, mas as mulheres são diagnosticadas em menor frequência."
Para o estudo em tela, os autores analisaram dados de 5.083 pacientes com choque cardiogênico registrado no prontuário, dentre os quais 1.522 (30%) eram mulheres. Em comparação aos homens, as mulheres tinham um índice de massa corporal ligeiramente maior e menor área de superfície corporal.
Os resultados mostraram que as mulheres com choque cardiogênico relacionado com a IC tiveram pior sobrevida na alta que os homens (69,9% vs. 74,4%) e maior prevalência de choque refratário (nível E da escala da Society for Cardiovascular Angiography and Interventions; 26% vs. 21%). As mulheres também tiveram menor probabilidade de fazer cateterismo da artéria pulmonar (52,9% vs. 54,6%), transplante cardíaco (6,5% vs. 10,3%) ou implante de dispositivo auxiliar do ventrículo esquerdo (7,8% vs. 10%).
Independentemente da etiologia do choque cardiogênico, as mulheres apresentaram mais complicações vasculares (8,8% vs. 5,7%), sangramento (7,1% vs. 5,2%) e isquemia nos membros (6,8% vs. 4,5%).
"Esta análise é muito reveladora. Identificamos algumas diferenças importantes entre os homens e as mulheres", comentou Dr. Navin.
Em muitos pacientes com choque cardiogênico relacionado ao IAM, muitas das caraterísticas iniciais foram bem semelhantes nos dois sexos, disse o pesquisador. "Mas, no choque cardiogênico relacionado com a IC, vimos mais diferenças, com comorbilidades típicas associadas ao quadro (p. ex., diabetes mellitus, nefropatia crônica, hipertensão arterial sistêmica) sendo menos comuns entre as mulheres do que entre os homens. Isto sugere que pode haver diferenças fenotípicas quanto à causa do choque relacionado a IC em homens e mulheres."
O Dr. Navin apontou que as diferenças no índice de massa corporal e na área da superfície corporal entre homens e mulheres podem ter impacto em algumas das escolhas de conduta.
“As mulheres de menor estatura podem levar a um viés de seleção que desincentive o uso de bombas ou dispositivos de grande diâmetro por receio de possíveis complicações. Descobrimos na análise que as complicações vasculares, como sangramento ou isquemia no membro inferior, onde esses dispositivos costumam ser colocados, eram mais frequentes entre as mulheres", observou.
"Também descobrimos que as mulheres eram menos propensas a receber tratamentos invasivos em geral, como cateterismo da artéria pulmonar, suporte mecânico temporário e substituições cardíacas, como o dispositivo de assistência ventricular esquerda ou transplantes", acrescentou.
Outros resultados mostraram que, após o pareamento da propensão, algumas das diferenças entre os sexos desapareceram, mas as mulheres continuaram a ter maior prevalência de complicações vasculares (10,4% mulheres vs. 7,4% homens).
Contudo, o Dr. Navin alertou que a análise de propensão pareada teve algumas limitações.
"Essencialmente, o que estamos fazendo com o pareamento da propensão é criar duas populações o mais parecidas possível, e isso reduziu o número de pacientes na análise para 25% da população original", disse o pesquisador. "Uma das coisas que tivemos de parear foi a área da superfície corporal e, ao fazer isso, estamos retirando uma das diferenças mais importantes entre homens e mulheres. Com isso, muitas das diferenças nos resultados desapareceram.”
"Por isso, o pareamento da propensão pode ser uma faca de dois gumes", acrescentou. "Acho que os desfechos sem o pareamento de propensão são mais interessantes, pois são um retrato mais fiel do mundo real."
Dr. Navin concluiu que os achados são suficientemente convincentes para sugerir a existência de importantes diferenças entre mulheres e homens com choque cardiogênico em termos de desfechos, bem como de prevalência de complicações.
"A nossa tomada de decisões para as mulheres parece ser diferente da tomada de decisões para os homens. Acho que este artigo é um começo para conscientizar [os médicos] sobre isso."
Dr. Navin também ressaltou a importância de prestar atenção nas complicações vasculares entre as mulheres.
"O maior número de sangramento e problemas de isquemia nos membros entre as mulheres podem explicar a razão de sermos menos agressivos com tratamentos invasivos nas pacientes", disse o pesquisador. "Mas precisamos encontrar melhores soluções ou tecnologias para que [essas abordagens] possam ser usadas de forma mais eficaz nas mulheres. Isto poderia incluir a adaptação da tecnologia para tamanhos vasculares menores, o que deveria levar a melhores resultados e menos complicações entre elas."
O pesquisador acrescentou que são necessários mais dados detalhados sobre esta questão. "Temos muito poucos conjuntos de dados sobre o choque cardiogênico. Há poucos ensaios clínicos randomizados e as mulheres não estão bem representadas nesses estudos. Temos de nos certificar de recrutar mulheres nessas pesquisas."
Dr. Navin disse que também são necessárias mais médicas tratando os choques cardiogênicos, ou seja, cardiologistas, especialistas em tratamento intensivo, cirurgiãs cardíacas e anestesistas mulheres.
O pesquisador ressaltou que as duas primeiras autoras do estudo são médicas ― Dra. Van-Khue Ton, afiliada ao Massachusetts General Hospital, e Dra. Manreet Kanwar, vinculada à Allegheny Health Network, ambas baseadas nos EUA.
"Trabalhamos arduamente para incentivar a participação das mulheres como pesquisadoras responsáveis. Elas lideraram este esforço. Estas são pesquisas feitas por mulheres, sobre mulheres, para promover o atendimento de mulheres", comentou.
Desigualdade de gênero
No editorial que acompanha o estudo, os médicos Dra. Sara Kalantari, Dr. Jonathan Grinstein, afiliados à University of Chicago, e o Dr. Robert O. Roswell, vinculado à Zucker School of Medicine, todos nos EUA, dizem que estes resultados "trazem informações valiosas sobre a desigualdade relacionada ao sexo no atendimento e nos desfechos da conduta no choque cardiogênico, embora os mecanismos exatos envolvidos nas diferenças observadas ainda precisem ser elucidados.
"De um modo geral, as barreiras no atendimento das mulheres com IC e choque cardiogênico englobam menor conscientização entre pacientes e médicos, deficiência de critérios objetivos específicos para o sexo feminino orientando o tratamento, e dispositivos de suporte circulatório mecânico temporário desfavorável, com níveis mais altos de complicações relacionadas à hemocompatibilidade nas mulheres", acrescentaram.
"Na era da equipe multidisciplinar no tratamento do choque e dos algoritmos de conduta com protocolos determinados, é imperativo que continuemos a permitir a personalização do atendimento para corresponder às necessidades fisiológicas do paciente e continuar a diminuir a lacuna de gênero no atendimento dos indivíduos com choque cardiogênico", concluíram a Dra. Sara e o Dr. Robert.
Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape
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Citar este artigo: Desfechos do choque cardiogênico são piores na população feminina - Medscape - 17 de novembro de 2023.
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