Semaglutida: uma nova estratégia para a redução do risco cardiovascular

15 de novembro de 2023

Os resultados do ensaio clínico SELECT mostraram que o medicamento antiobesidade semaglutida (Wegovy) promoveu uma redução consistente de aproximadamente 20% nos principais desfechos de eventos cardiovasculares, durante cerca de três anos de acompanhamento, em pacientes com doenças cardiovasculares e sobrepeso ou obesidade, mas sem diabetes mellitus, em comparação ao placebo.

“Este é um conjunto de resultados bem empolgante. Acho que vai causar um impacto significativo em muitas pessoas", disse para o Medscape o pesquisador responsável pelo estudo, o médico Dr. A. Michael Lincoff, vice-presidente de pesquisa clínica no departamento de medicina cardiovascular da Cleveland Clinic, nos Estados Unidos. 

"Do ponto de vista científico, estes dados mostram que agora temos uma nova abordagem ou um novo fator de risco modificável para doenças cardiovasculares, que podemos aplicar aos nossos pacientes com sobrepeso ou obesidade", acrescentou.

O ensaio clínico foi feito com 17.604 pacientes com história de doença cardiovascular e índice de massa corporal (IMC) igual ou superior a 27 (IMC médio de 33), os quais foram aleatoriamente designados para receber o peptídeo 1 glucagonoide semaglutida, administrado por injeção subcutânea uma vez por semana, em doses progressivas até 2,4 mg por dia na 16.ª semana — ou placebo. O valor médio inicial de hemoglobina glicada foi de 5,8%, e 66,4% dos pacientes preencheram os critérios de pré-diabetes.

Os pacientes perderam em média 9,4% do peso corporal nos dois primeiros anos com semaglutida versus 0,88% com placebo.

O desfecho cardiovascular primário — um composto de morte por causas cardiovasculares, infarto agudo do miocárdio não fatal ou acidente vascular cerebral não fatal — foi reduzido significativamente, com uma razão de risco de 0,80 (intervalo de confiança, IC, de 95% de 0,72 a 0,90; p < 0,001).  

A morte de origem cardiovascular, o primeiro desfecho secundário confirmatório, teve redução de 15% (razão de risco de 0,85; p = 07), que não correspondeu aos critérios de significância estatística. Devido ao desenho hierárquico do ensaio clínico, isso significou a não realização da prova de superioridade para os demais desfechos secundários confirmatórios.

No entanto, os resultados mostraram reduções de aproximadamente 20% para o desfecho de insuficiência cardíaca e para a morte por todas as causas, com intervalos de confiança que não ultrapassaram 1,0; e efeitos direcionalmente constantes foram observados em todos os desfechos secundários de suporte.

A razão de risco para o desfecho composto de insuficiência cardíaca foi de 0,82 (IC 95% de 0,71 a 0,96), e a razão de risco para morte por qualquer causa foi de 0,81 (0,71 a 0,93). A ocorrência de infarto agudo do miocárdio não fatal teve uma redução de 28%, razão de risco 0,72 (IC 95% de 0,61 a 0,85).

Os efeitos da semaglutida no desfecho primário pareciam ser semelhantes em todos os subgrupos pré-especificados.

Os eventos adversos que levaram à interrupção do tratamento ocorreram em 16,6% dos pacientes no grupo da semaglutida, principalmente efeitos gastrointestinais (GI), e em 8,2% no grupo do placebo.

Os resultados do ensaio foram apresentados pelo Dr. A. Michael em 11 de novembro nas sessões científicas de 2023 da American Heart Association (AHA) Scientific Sessions 2023, feitas na Filadélfia. O estudo foi publicado on-line simultaneamente no periódico New England Journal of Medicine.

O Dr. A. Michael explicou que há uma pandemia crescente de sobrepeso e obesidade no mundo, com claras evidências há anos de que esses quadros aumentam o risco de eventos cardiovasculares. No entanto, não houve provas, até agora, de que qualquer tratamento farmacológico ou alteração do estilo de vida possa reduzir o aumento do risco conferido pelo sobrepeso ou pela obesidade. 

"Os pacientes do ensaio clínico já faziam o tratamento convencional de outros fatores de risco, como a hipertensão arterial sistêmica e a dislipidemia, por isso este medicamento traz ganhos secundários", disse o pesquisador.

O Dr. A. Michael acredita que esses dados levarão a um grande aumento do uso da semaglutida, que já está disponível para o tratamento da obesidade e diabetes, embora possa ser difícil obter reembolso nos EUA.

"Há muita dificuldade em conseguir que os planos de saúde paguem por este medicamento para o controle do peso. Mas com estes novos dados do ensaio clínico SELECT, deve haver mais disposição — pelo menos para a população com história de doença cardiovascular", comentou. No caso do diabetes, para o qual já foi comprovado que há uma redução do risco cardiovascular, é mais fácil obter o reembolso, observou.

Ao analisar os dados do desfecho, o Dr. A. Michael disse que não conseguia explicar por que a morte cardiovascular não foi teve uma redução relevante, enquanto a morte por todas as causas pareceu ser reduzida de forma mais significativa.

"As curvas de morte cardiovascular separaram-se, depois fundiram-se, depois separaram-se novamente. Não sabemos exatamente o que aconteceu. Pode ser que algumas mortes tenham sido mal classificadas. Este ensaio clínico foi feito durante a pandemia da Covid-19, e pode ter havido menos informação disponível sobre alguns pacientes por causa disso".

No entanto, ele acrescentou: "A morte por todas as causas é mais tranquilizadora, uma vez que não está sujeita à classificação da causa. Devido ao desenho do ensaio clínico, não podemos afirmar formalmente a redução da morte por todas as causas, mas os resultados sugerem a existência de um efeito neste desfecho. E todos os diferentes tipos de eventos cardiovasculares foram igualmente reduzidos de forma constante, com efeitos semelhantes vistos em todos os subgrupos. Isso é muito tranquilizador".

Uma ‘nova era’ para pacientes com obesidade

Especialistas de outras áreas também ficaram impressionados com os dados.

A moderadora do debate do ensaio clínico designada pela American Heart Society, a médica Dra. Ania Jastreboff, professora associada de medicina (endocrinologia) da Yale School of Medicine, nos EUA, disse que o ensaio SELECT foi "um divisor de águas” no tratamento da obesidade e um chamado à ação.

"Agora é a hora de tratar a obesidade para melhorar os desfechos de saúde nas pessoas com doenças cardiovasculares", disse.

A Dra. Ania observou que o alto índice de massa corporal foi associado a quatro milhões de mortes no mundo em 2015, dois terços das quais foram causadas por doenças cardiovasculares. Além disso, ela apresentou dados que demonstram que o número de pessoas nos EUA que atendem aos critérios do SELECT aumentou de 4,3 milhões em 2011-12 para 6,6 milhões em 2017-18.

A moderadora destacou uma das principais limitações do ensaio clínico SELECT: a baixa representação de mulheres (38%) e minorias étnicas, com apenas 12% da população do ensaio composta por indivíduos negros.

O médico Dr. Deepak Bhatt, diretor do Mount Sinai Fuster Heart Hospital nos EUA, descreveu os resultados do SELECT como "um conjunto de dados persuasivos".

"Estes resultados são ainda melhores do que eu esperava", disse o Dr. Deepak para o Medscape. "Há uma redução significativa do infarto agudo do miocárdio, como eu tinha previsto; além disso, há uma diminuição do número de mortes por todas as causas. Podemos discutir a estatística, embora, do ponto de vista do bom senso, eu ache que esta é uma descoberta relevante", observou.

"Dado que o infarto agudo do miocárdio, a insuficiência cardíaca, a nefropatia e a revascularização foram todos reduzidos, e até mesmo o acidente vascular cerebral foi numericamente menor, faz sentido que a mortalidade por todas as causas seja mais baixa", disse o médico. "Para mim, fora os efeitos secundários gastrointestinais, isto é um grande sucesso".

O médico Dr. Steve Nissen, diretor acadêmico do Cleveland Clinic's Heart, Vascular and Thoracic Institute, foi igualmente otimista.

"Estes dados confirmam o que muitos de nós suspeitamos há muito tempo — que perder peso pode reduzir a morbimortalidade cardiovascular. Esta é uma ótima notícia para os pacientes obesos. A epidemia da obesidade está fora de controle", acrescentou. "Precisamos de tratamentos que melhorem os desfechos cardiovasculares causados pela obesidade, e este estudo mostra que a semaglutida pode fazer isso. Penso que este é o início de uma nova era para os pacientes com esse quadro"

A médica Dra. Michelle O'Donoghue, professora associada de medicina na Harvard Medical School nos EUA, disse que os resultados do SELECT são "ao mesmo tempo intrigantes e convincentes. Certamente, estas descobertas dão mais respaldo ao uso da semaglutida numa população de prevenção secundária muito mais ampla, incluindo pacientes com obesidade".

A médica Dra. Christie Ballantyne, diretora do centro de prevenção de doenças cardiometabólicas no Baylor College of Medicine, nos EUA, descreveu o SELECT como "um ensaio clínico histórico que mudará a prática da medicina em relação à forma como tratamos a obesidade".

A médica o comparou ao histórico ensaio clínico 4S em 1994, o primeiro estudo na área do tratamento hipolipemiante a mostrar um benefício claro de diminuição de eventos cardiovasculares e do número total de mortes, que "iniciou uma mudança drástica na maneira como os médicos abordaram o tratamento do colesterol".

Sobre a redução mais robusta de todas as causas de morte em comparação à morte de origem cardiovascular, a Dra. Christie indicou: "a definição do número de indivíduos mortos ou vivos é algo que todos acertam. Já a causa da morte pode ser mais difícil de determinar. Mais importante ainda, o benefício no número total de mortes também garante que este tratamento não tem nenhum efeito adverso no aumento das mortes não cardiovasculares".

Efeitos adversos gastrointestinais

Sobre os efeitos secundários observados, o Dr. A. Michael descreveu que 10% dos pacientes no grupo da semaglutida interromperam o tratamento do estudo por causa de efeitos colaterais gastrintestinais vs. 2% no braço do placebo. O pesquisador disse que isso já era um problema esperado.

"Os efeitos gastrointestinais, como náuseas, vômitos e diarreia, são eventos secundários conhecidos de toda esta classe farmacológica. A dose é lentamente escalonada a fim de controlar estes efeitos adversos, mas haverá uma proporção de pacientes que não os toleram, embora a grande maioria consiga continuar o tratamento".

O Dr. Michael disse que, embora fosse permitida a redução da dose, dos pacientes que ainda tomavam o medicamento após dois anos, 77% estavam na dose completa e 23% estavam em uma dose reduzida.

Ele indicou que não houve eventos adversos graves com a semaglutida. "Este é o maior banco de dados atualmente sobre o medicamento com um acompanhamento em longo prazo, e não vimos o aparecimento de novos alertas de segurança, o que é muito tranquilizador".  

O Dr. Steve disse que os 16% dos pacientes que suspenderam o medicamento por questões de tolerância "não representam um número trivial".

O pesquisador observou que a dose de semaglutida usada neste estudo foi maior do que a usada no estudo sobre o diabetes.

"Eles fizeram isso para tentar obter maior perda ponderal, mas então enfrentam mais problemas com a tolerância. É uma negociação. Se os pacientes tiverem efeitos adversos, a dose pode ser reduzida, mas com isso você vai perder algum efeito. Todos os agonistas do peptídeo 1 glucagonoide têm efeitos colaterais gastrintestinais — é parte do modo como funcionam".

Apenas perda ponderal ou outras ações também?

Ao especular sobre o mecanismo por trás da redução de eventos cardiovasculares com a semaglutida, o Dr. A. Michael não acha que seja apenas pela redução ponderal.

"As curvas do evento começaram a divergir logo após o início do ensaio clínico; no entanto, a perda ponderal máxima só ocorreu em cerca de 65 semanas. Acho que algo mais está acontecendo".

No artigo, os pesquisadores observaram que os agonistas do peptídeo 1 glucagonoide têm demonstrado, nos estudos em modelo animal, que reduzem a inflamação, melhoram a função endotelial e do ventrículo esquerdo, promovem a estabilização da placa e diminuem a agregação plaquetária. Neste ensaio clínico, a semaglutida foi associada a alterações em vários biomarcadores de risco cardiovascular, como pressão arterial, circunferência da cintura, controle glicêmico, nefropatia, níveis de lipídios e de proteína C reativa.

O Dr. A. Michael também ressaltou que benefícios semelhantes foram observados nos pacientes com diferentes níveis de excesso de peso, tanto naqueles que eram pré-diabéticos quanto nos que não eram; portanto, o benefício não era proporcional ao índice de massa corporal inicial ou aos níveis de hemoglobina glicada.

A Dra. Michelle concordou que outros efeitos, além da perda ponderal, poderiam estar envolvidos. "A redução dos eventos com a semaglutida apareceu muito cedo, logo após o início, e precedeu muito os efeitos farmacológicos máximos na redução ponderal. Isto pode sugerir que o fármaco oferece outros efeitos cardioprotetores por meio de vias independentes da perda ponderal. Certamente, a semaglutida e os outros agonistas peptídeo 1 glucagonoide parecem diminuir a inflamação, e os padrões de redistribuição do tecido adiposo também podem ser de interesse".

A médica também indicou que a redução de eventos cardiovasculares apareceu ainda mais cedo nesta população de pacientes obesos sem diabetes e com doença cardiovascular do que nos estudos anteriores feitos com pacientes diabéticos. "Isso pode sugerir que há um benefício especial para este tipo de tratamento dos pacientes com um processo inflamatório. Estou ansiosa por mais análises para ajudar a diferenciar a correlação entre alterações inflamatórias, perda ponderal observada e benefício cardiovascular".

Efeito na prática clínica

Com a maioria dos pacientes com doença cardiovascular estando acima do peso, estes resultados vão obviamente aumentar a procura da semaglutida, mas o custo e a disponibilidade vão ser problemáticos.

O Dr. Deepak observa que a semaglutida já é muito popular. "Os medicamentos para perda ponderal são um pouco diferentes dos outros. Eu posso levar meia hora tentando convencer um paciente a tomar uma estatina, mas aqui as pessoas percebem que isso vai causar perda ponderal e vêm pedindo, mesmo que a rigor não precisem desse medicamento. Acho que é bom ter dados de desfechos cardiovasculares porque agora, pelo menos para esta população de pacientes, temos provas para corroborar nossa prescrição".

O Dr. Deepak concorda com o Dr. A. Michael que esses novos dados devem incentivar as companhias de planos de saúde a cobrir o custo do medicamento, porque a redução de eventos cardiovasculares também deve melhorar os custos de saúde a jusante.

"Está promovendo claros benefícios cardiovasculares e renais, por isso é do interesse do sistema de saúde financiar este medicamento", disse o médico. "Espero que as seguradoras analisem isso racionalmente, mas também podem temer a explosão de pacientes que querem este medicamento — e agora dos médicos que o querem prescrever — e como isso afetaria seus custos em curto prazo".

O Dr. A. Michael disse que não seria fácil dar prioridade a certos grupos. "Não conseguimos identificar nenhum subgrupo que tenha mostrado mais benefícios do que outro. Mas, na evolução de qualquer tratamento, existe um período no qual um medicamento é caro demais e escasso. Com o passar do tempo, quando já há alguma concorrência e acordos de preços, e à medida que mais pessoas lutam para ter acesso, a disponibilidade tende a melhorar".

Uma opção de tratamento bem-vinda

No editorial que acompanha o estudo, o médico Dr. Amit Khera, da University of Texas Southwestern Medical Center, e a médica Dra. Tiffany Powell‑Wiley, do National Institutes of Health, ambos nos EUA, observaram que fatores de risco de base, como a lipoproteína de baixa densidade (LDL) do colesterol (78 mg/dL) e a pressão arterial sistólica (131 mmHg), não foram ideais no grupo da semaglutida neste ensaio, sugerindo que os benefícios da semaglutida podem ser atenuados quando estas medidas são controladas de forma mais eficaz.

No entanto, dado que mais de 20 milhões de pessoas nos EUA têm doença coronariana, sendo a maioria com excesso de peso ou obesidade e apenas cerca de 30% apresentando diabetes concomitante, os editorialistas dizem que, mesmo no contexto de fatores de risco bem controlados e níveis de lipoproteínas de baixa densidade muito baixos, o risco residual de doença cardiovascular aterosclerótica nestas pessoas é inaceitavelmente alto. "Assim, o ensaio clínico SELECT oferece uma boa opção de tratamento, que pode atender milhões de outros pacientes".

No entanto, eles advertem que a semaglutida, a preços atuais, tem um custo significativo para os pacientes e para a sociedade, o que torna este tratamento inacessível para muitos. 

Além disso, destacam que as intervenções intensivas no estilo de vida e a cirurgia bariátrica continuam sendo opções eficazes, porém subutilizadas para a obesidade, e que a prevenção deveria ser o principal objetivo.

O ensaio clínico SELECT foi apoiado pela Novo Nordisk, e vários coautores são funcionários da empresa. O Dr. A. Michael Lincoff presta consultoria para a Novo Nordisk. O Dr. Deepak Bhatt e o Dr. Steve Nissen participam de um ensaio clínico sobre desfechos cardiovasculares com um novo medicamento experimental para perda ponderal do laboratório Lilly. O Dr. Deepak Bhatt e a Dra. Christie Ballantyne também são pesquisadores em um ensaio clínico da Novo Nordisk de um novo anti-inflamatório.

Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape

 

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