Risco de suicídio cinco vezes maior entre adolescentes trans e com incongruência de gênero

Tara Haelle

15 de novembro de 2023

Estados Unidos – Jovens transgênero e outros jovens com diversidade de gênero atendidos no pronto-socorro de uma única instituição tiveram probabilidade cinco vezes maior de rastreamento positivo para suicídio em comparação com seus pares cisgênero, de acordo com um estudo apresentado na reunião anual da American Academy of Pediatrics.

"A mensagem principal aqui é que este estudo enfatiza a importância do rastreamento universal para identificar jovens com diversidade de gênero em risco", disse aos participantes da reunião a Dra. Amanda Burnside, Ph.D., professora assistente de psiquiatria e ciências comportamentais do Ann & Robert H. Lurie Children's Hospital of Chicago e da Northwestern University, nos Estados Unidos. “Precisamos de fato desenvolver estratégias e sistemas robustos para interligar melhor os serviços de saúde mental.”

As taxas de suicídio entre jovens transgênero e com diversidade de gênero são excepcionalmente altas entre os jovens nos EUA, disse a Dra. Amanda durante sua apresentação. Por exemplo, a pesquisa de saúde LGBTQ de 2022 do Projeto Trevor constatou que percentagens muito mais elevadas de jovens transgênero e com incongruência de gênero consideraram a hipótese de suicídio no último ano em comparação com jovens cisgênero, mesmo dentro do espectro LGBTQ. Entre os quase 34.000 jovens LGBTQ de 13 a 24 anos de idade, quase metade das mulheres trans (48%) e mais de metade dos homens trans (59%) consideraram a possibilidade de suicídio, em comparação com 28% dos homens cisgênero e 37% das mulheres cisgênero. As taxas entre indivíduos não binários/gênero queer e com incongruência de gênero foram de 53% e de 48%, respectivamente.

Os métodos atuais de identificação de jovens transgênero e com diversidade de gênero no hospital, no entanto, podem não abranger toda a população.

"Em ambientes de cuidados de saúde, a avaliação de indivíduos transgênero e com diversidade de gênero tem sido historicamente limitada a populações clínicas especializadas ou jovens com códigos de diagnóstico específicos de gênero documentados no prontuário médico eletrônico", uma abordagem que "provavelmente subestima significativamente a prevalência de jovens transgênero e com diversidade de gênero em ambientes de cuidados de saúde". Embora pelo menos um estudo tenha tentado superar esta lacuna pesquisando palavras-chave no prontuário eletrônico, esse estudo apenas tentou identificar jovens trans, e não outros jovens no espectro da diversidade de gênero, como os não binários ou aqueles que questionam a sua identidade de gênero. A Dra. Amanda e seus colaboradores realizaram, portanto, um estudo que usou palavras-chave para identificar tanto jovens trans quanto outros com diversidade de gênero que foram atendidos no pronto-socorro, para que pudessem avaliar a taxa de rastreamentos positivos para risco de suicídio nessa população.

A população em risco é subestimada?

Os pesquisadores conduziram um estudo transversal retrospectivo de dados de prontuário eletrônico para todas as consultas ao pronto-socorro durante as quais o paciente foi submetido a avaliações de risco de suicídio. Foram coletados dados do período de novembro de 2019 a agosto de 2022 sobre os resultados do rastreamento, identidade de gênero, idade, raça/etnia, situação do plano de saúde, queixa principal no pronto-socorro e índice de oportunidade infantil, que avalia o acesso de um jovem a recursos com base na localização geográfica. O instrumento para rastreamento de suicídio utilizado foi a ferramenta Ask Suicide–Screening Questions .

As palavras-chave buscadas no prontuário para identificar jovens trans e com diversidade de gênero foram transgênero, pronomes, agênero, disforia de gênero, homem para mulher, mulher para homem, não binário, nome preferido e eles/deles (capturados como um termo completo, não como "eles" e "deles" separadamente).

“Se uma palavra-chave estivesse presente, o texto ao redor era extraído e revisado por dois membros de nossa equipe”, explicou a Dra. Amanda em sua apresentação. “Categorizamos as palavras-chave como indicativas de identidade de gênero diversa ou não, e se não estivesse claro com base no texto extraído, realizávamos uma revisão manual do prontuário”, embora isso tenha ocorrido apenas em cerca de 3% dos casos, acrescentou.

Entre 15.413 atendimentos no pronto-socorro com rastreamento para suicídio, os pesquisadores identificaram 1.126 dessas palavras-chave no prontuário eletrônico, entre as quais 91,2% foram classificadas como referindo-se a um paciente de gênero diverso. Quase todas as palavras foram pelo menos 90% eficazes na identificação de jovens com diversidade de gênero, disse a Dra. Amanda, e todas as 197 ocorrências de "eles/deles" foram classificadas como diversidade de gênero.

A acurácia foi um pouco menor para as duas palavras-chave que apareceram com mais frequência: para “pronomes”, 86,3% de 306 ocorrências foram classificadas como gênero diverso, e para “transgênero”, 83,1% de 207 ocorrências foram classificadas como gênero diverso. Como alguns profissionais de saúde perguntam a todos os pacientes seus pronomes, a presença de “pronomes” apenas no prontuário eletrônico não indica necessariamente que o paciente tenha gênero diverso, disse a Dra. Amanda. Uma razão comum pela qual o termo "transgênero" apareceu nos prontuários de pacientes sem diversidade de gênero é que a lista de recursos de crise do departamento inclui linhas diretas para atendimento de transgêneros.

Depois de identificar todas as palavras-chave, os pesquisadores determinaram quantas delas ocorreram em consultas únicas no pronto-socorro e removeram aquelas com rastreamento incompleto. No geral, eles encontraram 565 consultas de 399 indivíduos de gêneros diversos que fizeram avaliações para suicídio, representando 4,6% do total de consultas. Essa percentagem é ligeiramente inferior às estimativas populacionais recentes de jovens com diversidade de gênero, observaram os pesquisadores.

A idade dessa população variou de 8 a 23 anos, e 43% deles tinha seguro público. A queixa principal da maioria dos pacientes (77,5%) era de saúde mental. Eles eram predominantemente brancos (43%) ou hispânicos (35%), com 10% de jovens negros, 4% de jovens asiáticos e 8% de jovens que eram de "outras" ou duas ou mais raças. Cerca de metade (52%) vivia num bairro com um índice de oportunidade infantil “baixo” ou “muito baixo”.

Dentro desta população, 81% dos pacientes tiveram resultados positivos no rastreamento para suicídio, em comparação com 23% de resultados positivos em todas as consultas ao pronto-socorro. Um em cada dez (10%) jovens com diversidade de gênero teve ideação suicida ativa, em comparação com 3,4% do restante da população de pacientes do pronto-socorro. Os pesquisadores calcularam que os jovens com diversidade de gênero tinham 5,35 vezes mais probabilidades de positividade no rastreamento do que os jovens cisgênero (intervalo de confiança [IC] de 95% de 8,7 a 15,92). Além disso, um quarto (25%) dos jovens trans e com diversidade de gênero que tiveram resultados positivos na avaliação de risco de suicídio tinham ido ao pronto-socorro devido a uma queixa principal não relacionada à saúde mental.

“Tivemos uma criança que veio porque quebrou o braço e tinha ideação suicida ativa”, disse após a apresentação a médica coautora do estudo Dra. Jennifer A. Hoffmann, professora assistente de pediatria no Ann & Robert H. Lurie Children's Hospital e na Northwestern University. Esse paciente em particular até tinha um plano de suicídio, mas foi identificado como suicida ativo apenas por causa do rastreamento. Em outros casos, disse ela, um jovem pode chegar com lesões autoinfligidas e, embora essas sejam a queixa principal, estão associadas à ideação suicida.

Entre as limitações do estudo estão o fato de a identidade de gênero não estar necessariamente sendo avaliada de forma sistemática durante as consultas, os erros ortográficos (que podem ter feito com que alguns jovens passassem despercebidos) e o fato de a estratégia de pesquisa ainda não ter sido validada externamente, embora planejem isso.

"No geral, porém, este estudo demonstrou que a busca por palavras-chave é uma técnica promissora para identificar e priorizar jovens com diversidade de gênero na pesquisa de serviços de saúde", disse a Dra. Amanda. Além de mostrar a viabilidade de usar uma estratégia de busca por palavras-chave para identificar jovens com diversidade de gênero, ela observou que 31% das consultas foram identificadas por apenas uma das palavras-chave usadas, "destacando a importância de usar uma lista de palavras-chave abrangente para identificar jovens com diversidade de gênero".

Desvendando informações valiosas

O médico Dr. Jason Rafferty, professor assistente clínico de pediatria e de psiquiatria e comportamento humano na Brown University, nos EUA, que participou da apresentação, observou que o estudo fornece informações sobre uma população muitas vezes difíceis de se obter através dos métodos de pesquisa tradicionais nos prontuários eletrônicos.

“Muitos sistemas de registros médicos não têm formas uniformes de capturar [a diversidade de gênero], mas o que sabemos como profissionais é que as crianças estão realmente enfrentando dificuldades e não é surpresa que estejamos vendo essas disparidades com a tendência ao suicídio”, disse o Dr. Jason.

O estudo também fornece estimativas por idade mais discretas do que a maioria das outras medidas de pesquisa atuais, que tendem a ser suicídio ao longo da vida, em oposição a pensamentos ou tentativas de suicídio no ano passado, o médico acrescentou.

“Isso mostra que, para os adolescentes, o risco de suicídio é algo ao qual precisamos prestar atenção. Porque não é algo que só acontece em adultos, isto realmente dissipa muitas das citações erradas dos dados que estão por aí". Esse tipo de informação é valiosa para determinar a alocação de recursos, destacou. “Uma disparidade como esta realmente ressalta a importância dos recursos de saúde mental neste campo”, complementou.

A Dra. Amanda Burnside, a Dra. Jennifer A. Hoffmann e o Dr. Jason Rafferty informaram não ter conflitos de interesses. Não foram declaradas fontes de financiamento externo.

Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape

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