Uso de maconha é associado a insuficiência cardíaca, IAM e AVC

Marlene Busko

15 de novembro de 2023

De acordo com uma nova pesquisa observacional, o uso diário de Cannabis está associado a um risco 34% maior de insuficiência cardíaca em quatro anos, em comparação com o não uso da substância.

Em outro estudo, o transtorno por uso de Cannabis foi associado a um acréscimo de risco de 20% para eventos adversos cardíacos e cerebrais maiores (MACE) durante a hospitalização. A pesquisa analisou pacientes idosos não tabagistas com risco cardiovascular.

Os estudos foram apresentados em 13 de novembro no American Heart Association (AHA) Scientific Sessions de 2023.

Os pesquisadores ressaltaram que esses dados observacionais podem mostrar apenas associação, e não causalidade, mas baseiam-se em outros achados recentes.

Apesar das limitações dos estudos, o Dr. Robert L. Page II, doutor em farmácia, disse em entrevista ao Medscape que "isso com ​​certeza é um sinal".

O Dr. Robert é professor na Skaggs School of Pharmacy and Pharmaceutical Sciences da University of Colorado, nos Estados Unidos, e presidiu o grupo de redação da Declaração Científica da AHA de 2020, intitulado “Maconha medicinal, Cannabis recreativa e saúde cardiovascular”. Ele não participou de nenhum dos dois estudos mencionados.

Uso de maconha e risco de insuficiência cardíaca

O uso de maconha cresceu exponencialmente nos EUA com o aumento da legalização em nível estadual, mas seu efeito na saúde cardiovascular ainda não está claro, escreveram o Dr. Yakubu Bene-Alhasan, médico, e seus colaboradores.

Em um dos estudos, os pesquisadores avaliaram a associação entre o uso de maconha e o risco de insuficiência cardíaca incidente, em comparação com o risco entre não usuários da substância. A análise foi feita com base em dados de pesquisas e registros médicos de participantes do programa de pesquisa All of Us, patrocinado pelos National Institutes of Health dos EUA.

Eles identificaram 156.999 adultos com 18 anos ou mais que não tinham diagnóstico de insuficiência cardíaca no início do estudo. Os participantes tinham idade média de 54 anos e 61% eram mulheres.

Cerca de um quarto deles tinha hipertensão (24%) ou hiperlipidemia (23%), 9,2% apresentavam diabetes tipo 2 e 9% tinham doença coronariana. Eles tinham um índice de massa corporal (IMC) mediano, de 28; 17% eram fumantes e 22% eram ex-fumantes. Quase todos tinham plano de saúde (95%).

Com base no uso de Cannabis relatado pelos participantes, definido como uso não prescrito ou uso além das doses prescritas nos três meses anteriores, eles foram classificados como não usuários (107.976 participantes); ex-usuários (33.816); ou usuários com frequência de uso menor que mensal (7.292), mensal (1.686), semanal (2.326) ou diária (3.903).

Durante um acompanhamento mediano de 45,3 meses, ocorreram 2.958 eventos de insuficiência cardíaca.

Em comparação com os que nunca usaram a substância, os usuários diários de Cannabis tiveram um risco 34% maior de insuficiência cardíaca após ajuste para idade, sexo, raça, etnia, uso de álcool, tabagismo, escolaridade, emprego, renda, seguro de saúde, diabetes tipo 2, hipertensão arterial, hiperlipidemia e IMC (razão de risco [RR] = 1,34; intervalo de confiança [IC] de 95% de 1,04 a 1,72).

No entanto, após ajustes adicionais para doença coronariana, o risco de insuficiência cardíaca deixou de ser significativo (RR = 1,27; IC 95% de 0,99 a 1,62), sugerindo que a doença coronariana é uma via pela qual o uso diário de Cannabis pode levar a esse desfecho.

“Dado que este é um estudo observacional, não podemos dizer que o uso de maconha causa insuficiência cardíaca”, disse ao Medscape o Dr. Yakubu, que é médico residente no Medstar Health, nos EUA.

Ainda assim, “ao longo dos anos têm surgido cada vez mais relatos de efeitos negativos associados ao uso de maconha”, observou ele. “Este estudo e a maioria das pesquisas sugerem que o uso da maconha tem efeitos prejudiciais, especialmente no sistema cardiovascular.”

“Dado que o uso de maconha se torna cada vez mais comum”, disse ele, “todo médico deverá encontrar [esses problemas]”.

Seria difícil e provavelmente antiético examinar estes riscos num ensaio clínico randomizado, disse o Dr. Yakubu. “Mas, à medida que mais e mais estudos [observacionais] mostram associação entre a maconha e outras doenças”, acrescentou ele, “as evidências um dia serão irrefutáveis em uma direção ou em outra, e então os médicos poderão tomar decisões bem fundamentadas com seus pacientes”.

O Dr. Robert ressaltou que ambos os estudos mostram associação e não causalidade, mas, mesmo assim, “esses dados são um sinal de possíveis problemas cardiovasculares”, disse ele.

“Não quero que as pessoas pensem ‘Bem, se eu fumar [maconha] uma vez por mês, não terei esse problema'”, disse ele. “Não se deve ter uma falsa sensação de segurança”, alertou, porque outros dados observacionais mostram efeitos cardiovasculares mesmo quando o consumo foi semanal.

Outras limitações de ambos os estudos são o fato de serem apenas abstracts e não terem sido revisados ​​por pares, observou ele.

É importante ressaltar que os estudos não fizeram distinção entre fumar ou vaporizar Cannabis ou consumi-la por meio da ingestão. “Quando você fuma ou vaporiza um produto de Cannabis”, especialmente um que é rico em tetraidrocanabinol (THC) ou em canabidiol, disse ele, “os efeitos cardiovasculares são mais agudos, o que pode não ocorrer com os comestíveis”.

Transtorno por uso de Cannabis e risco de doenças cardiovasculares

Em um relatório, o Dr. Avilash Mondal e seus colaboradores avaliaram o risco de MACE intra-hospitalares, definidos como um composto de morte por todas as causas, infarto agudo do miocárdio, parada cardíaca ou acidente vascular cerebral, em idosos não tabagistas com risco estabelecido de doença cardiovascular (hipertensão arterial, diabetes tipo 2 ou hiperlipidemia). Os indivíduos analisados tinham transtorno por uso de Cannabis, definido como uso frequente e dependência da substância; eles foram comparados com indivíduos sem esse transtorno.

Os pesquisadores analisaram dados (incluindo códigos do CID-10) registrados na National Inpatient Sample (2019), onde coletaram informações de indivíduos a partir de 65 anos com fatores de risco de doença cardiovascular estabelecidos (hipertensão, diabetes tipo 2 ou hipercolesterolemia) quando foram internados no hospital.

Dos 10.680.280 pacientes, 28.535 apresentavam transtorno por uso de Cannabis; eles eram geralmente mais jovens e tinham maior probabilidade de serem homens do que os indivíduos sem o transtorno. Durante uma mediana de quatro dias de internação, 13,9% dos pacientes com transtorno por uso de Cannabis relataram casos de MACE.

Em comparação com outros pacientes, aqueles com transtorno por uso de Cannabis tiveram taxas mais altas de infarto do miocárdio (7,6% versus 6,0%) e acidente vascular cerebral (5,2% vs. 4,8%), taxas semelhantes de parada cardíaca (1,1% cada), e taxas mais baixas de morte por todas as causas (1,7% vs. 3,3%) e arritmia (25,9% vs. 34,9%).

Pacientes com transtorno por uso de Cannabis tiveram maior probabilidade de ter MACE (razão de chances [RC] = 1,20; intervalo de confiança [IC] de 95% de 1,11 a 1,29), após ajuste para dados demográficos basais, comorbidades e características hospitalares.

As limitações do estudo são o uso de informações provenientes de um banco de dados nacional e a possibilidade de diferentes médicos terem definido o transtorno por uso de Cannabis de maneira diferente, observou em entrevista ao Medscape o Dr. Avilash, que é médico residente no Nazareth Hospital, nos EUA.

Os dados também não indicavam se a Cannabis era fumada/vaporizada ou ingerida, nem se o uso era medicinal ou recreativo, observou ele.

No estado da Califórnia, a Cannabis para uso medicinal foi legalizada em 1996 e, em seguida, a liberação se expandiu para o uso recreativo, por isso “[a substância] está em circulação há mais de 20 anos”, disse ele, “e agora podemos ver alguns de seus efeitos na população idosa".

Agora que a geração mais jovem consome mais Cannabis, os usuários precisam estar cientes das repercussões na saúde em longo prazo. Atualmente, ainda há muito que não se sabe, disse o Dr. Avilash, acrescentando que não seria ético fazer um ensaio randomizado com a substância.

Porém, tendo em conta os conhecimentos consolidados, disse ele, “nós, como profissionais de saúde — médicos, enfermeiros —, deveríamos estar todos mais atentos” para obter de informações sobre o consumo de Cannabis ao realizar a história clínica de um paciente.

"Devíamos ser mais cuidadosos e perguntar: 'Você usa maconha ou alguma outra erva? Com ​​que frequência? É uso medicinal? Por que você usa?'."

Cerca de um terço dos pacientes com transtorno por uso de Cannabis neste estudo também apresentavam abuso de outras drogas. O Dr. Robert observou que isso “deixa as coisas ainda mais complicadas”, porque drogas como cocaína e metanfetamina podem aumentar os riscos de doença cardiovascular aterosclerótica.

Ambos os estudos se somam “às evidências robustas geradas ao longo dos últimos cinco anos de que a Cannabis pode ser um fator de risco para a doença cardiovascular aterosclerótica ou que pode contribuir para ela”, explicou o Dr. Avilash.

O tabagismo era totalmente aceito nas décadas de 1940 e 1950, e foi necessário muito tempo até percebermos que causa acidente vascular cerebral, infarto do miocárdio e câncer, destacou o médico.

"As pesquisas mais recentes indicam que fumar e inalar Cannabis aumenta as concentrações de carboxiemoglobina e alcatrão no sangue, efeito semelhante ao da inalação de um cigarro de tabaco. Ambos têm sido associados a doenças do músculo cardíaco, precordialgia, alterações do ritmo cardíaco, infarto do miocárdio e outros quadros graves", disse o Dr. Avilash em um comunicado de imprensa emitido pela AHA.

“O fato de algo ser ‘natural’ nem sempre o torna seguro”, acrescentou Dr. Robert. “Existem riscos e estamos começando a observá-los. Como profissionais de saúde, precisamos ter certeza de que os pacientes estão cientes disso.” Ao mesmo tempo, acrescentou, é muito importante que os médicos abordem a questão sem julgamentos.

Os autores do estudo em tela e o Dr. Robert L. Page II informaram não ter conflitos de interesses relevantes ao tema.

Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape

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