No primeiro dia do 43º Congresso da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), realizado de 08 a 10 de junho em São Paulo, as apresentações deram destaque para o uso de tecnologias digitais e da inteligência artificial (IA) na medicina, em especial na cardiologia.
Na sessão inaugural do evento, o Dr. Hadley Wilson, atual presidente da American College of Cardiology (ACC), nos Estados Unidos, dedicou a sua palestra ao monitoramento digital e à respectiva evolução na cardiologia. Dr. Hadley falou sobre os desafios atuais e futuros do monitoramento digital, como a necessidade de validação e regulamentação, além das dificuldades de aceitação pelos pacientes e preocupações relacionadas a equidade de acesso, privacidade e segurança.
Ele destacou a grande variedade de dispositivos de uso pessoal disponíveis, como Apple Watch, Fitbit, monitores utilizados em consultórios cardiológicos e dispositivos implantáveis permanentes usados pelos pacientes. Dr. Hadley afirmou que é preciso avançar na aplicação dessas tecnologias: “O que realmente precisamos fazer é passar do uso de dispositivos móveis e da saúde digital para uma era de saúde móvel, na qual teremos uma variedade de sensores e, com sorte, poderemos integrar tudo isso aos nossos prontuáros eletrônicos sem problemas, reduzindo a necessidade de inserção manual de dados”.
Um dos dispositivos mais populares a ser empregados no campo da saúde digital é, ainda, o smartphone. Segundo pesquisas, mais de 80% das pessoas utilizam esses aparelhos, considerando os diversos níveis socioeconômicos. “Esta pode ser uma ferramenta com a qual poderemos continuar nos comunicando com nossos pacientes, onde quer que estejam”, disse o médico.
Estudos sobre aplicações de dispositivos na prática clínica
Quanto às tecnologias “vestíveis” (wearables), o Dr. Hadley considera que há muito conhecimento disponível sobre o potencial de aplicação no âmbito da cardiologia. Parte desses dados é fruto de estudos como o “Apple Heart Study”, [1]conduzido pela Apple e pela Stanford Medicine, que reuniu mais de 400 mil participantes em oito meses a partir de um convite a qualquer pessoa a partir de 22 anos que tivesse um iPhone modelo 5S ou posterior.
O estudo avaliou a eficácia do Apple Heart App na identificação de ritmos cardíacos irregulares, tais como os presentes na fibrilação atrial. Durante a pesquisa, quando um ritmo cardíaco irregular era identificado pelo aplicativo, os participantes recebiam uma notificação no respectivo Apple Watch e iPhone, eram encaminhados para uma consulta médica on-line e realizavam um eletrocardiograma (ECG) para monitoramento adicional. O estudo mostrou que os dispositivos detectaram casos de fibrilação atrial, ainda que em menos de 1% dos participantes. “Esse tipo de pesquisa para avaliar a [eficácia na] notificação do ritmo irregular é algo que vai continuar a crescer à medida que avançamos”, disse o Dr. Hadley.
O palestrante mencionou ainda uma pesquisa recente financiada pelo National Heart, Lung and Blood Institute (NHLBI), cujo objetivo é analisar se o Apple Watch pode ser usado como estratégia para diminuir o uso de anticoagulantes em pacientes com fibrilação atrial, mantendo a proteção contra acidente vascular cerebral e reduzindo o risco de sangramento. Essa pesquisa incluiu mais de 5 mil pacientes acompanhados por sete anos.
No campo das ferramentas de IA, o Dr. Hadley disse ainda que há modelos promissores para detecção de doenças cardíacas, como cardiomiopatia hipertrófica, amiloidose e hipertensão pulmonar, e para a interpretação de exames de imagem.
Mais uma aplicação relevante citada pelo especialista é o auxílio na realização do ultrassom à beira do leito. “Com a ajuda de novos dispositivos, que podem auxiliar alguém que não é treinado a, por exemplo, posicionar o transdutor e a apontá-lo [corretamente], ajudando a entender se a imagem obtida é de boa qualidade e direcionando de antemão para poder ter um eco razoável. Talvez [possa ser útil] até mesmo em um espaço rural.” De acordo com o Dr. Hadley, o uso dessas tecnologias — que precisa ser feito por um cardiologista — é um caminho para melhorar o acesso ao atendimento, reduzindo filas e também a sobrecarga de trabalho entre os médicos.
Tecnologia e inovação
No mesmo dia do evento, na Arena Tecnologia e Inovação, o engenheiro Guilherme Rabello mediou uma discussão sobre os desafios da formação e atualização digital dos cardiologistas e o papel da inovação na área médica. A programação do espaço abrange temas relevantes, como a assistência digital em cardiologia, o 5G na saúde e a impressão 3D do coração. A Arena Tecnologia e Inovação é uma iniciativa do projeto Inovação da Socesp, também coordenado por Guilherme, cujo objetivo é criar ambientes de discussão e trazer especialistas para abordar o tema da inovação na área cardiológica. O engenheiro pretende também realizar eventos temáticos ao longo do ano, visando conectar os profissionais da Socesp, os pacientes e as diferentes visões multiprofissionais, com o objetivo de transformar a jornada do paciente.
Em entrevista ao Medscape, Guilherme destacou a importância de abordar o tema da inovação no congresso e mencionou a necessidade de compreender as tecnologias mais recentes, sua aplicação adequada e a melhor forma de oferecê-las a pacientes, colaboradores e profissionais de forma custo-efetiva. Para ele, a inovação na cardiologia oferece oportunidades para aprimorar o atendimento médico e fornece ferramentas que podem melhorar os desfechos em saúde. “O paciente está impulsionando a revolução da saúde digital, buscando incorporar-se ao mundo digital da saúde”, disse.
Nessa direção, Guilherme deu exemplos de iniciativas inovadoras em andamento. Uma delas vem sendo usada no Instituto do Coração (InCor), em São Paulo, em que smartwatches estão sendo utilizados para monitorar pacientes no período pós-operatório com a intenção de detectar precocemente eventos adversos e melhorar o acompanhamento. “Estão sendo acompanhados pacientes com hipertensão não controlada, levando a melhorias na adesão ao tratamento e [à prática de] exercícios e no bem-estar emocional”, descreveu.
IA em cardiologia
Também no primeiro dia do congresso, o Dr. Roberto Botelho, cardiologista e especialista em telemedicina e diretor do Instituto do Coração do Triângulo, em Minas Gerais, falou sobre a IA e seu impacto na cardiologia. Na opinião do Dr. Roberto, ferramentas como o ChatGPT poderão ajudar nas pesquisas de temas médicos. Neste momento, porém, a ferramenta ainda comete muitos erros, o que obriga o usuário a checar a veracidade de todas as informações obtidas, disse o especialista em entrevista ao Medscape.
Com uma experiência de mais de 25 anos acompanhando as alterações tecnológicas na saúde e implementando projetos, o cardiologista destacou a evolução em curso nas aplicações práticas da IA na cardiologia. “Um exemplo é o aplicativo Medical Brain, que tem capítulos de ginecologia, doenças infecciosas e cardiologia, entre outras várias outras áreas da medicina. Ele dá respostas bem específicas porque consegue entender a queixa do paciente. Também analisa prontuários, faz diagnósticos e recomenda abordagens para os quadros [identificados]”, disse.
A IA também evolui rapidamente para auxiliar na realização de exames, como a ressonância magnética e o ecocardiograma, tornando essas práticas mais eficientes. Mais um campo em franca evolução é o uso de IA para ajustar processos e melhorar a eficiência em serviços hospitalares, a exemplo de uma ação conduzida pelo Dr. Roberto no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo. Ali, o médico implantou algoritmos de IA em um setor de verificação de contas da instituição, o que levou a uma economia de cerca de R$ 4 milhões.
O cardiologista também relatou dificuldades para a disseminação das ferramentas digitais. Um dos principais pontos destacados em sua apresentação foi a necessidade de sensibilizar os médicos para a importância de se adaptarem às novas tecnologias. O palestrante ressaltou que o desconhecimento digital é um desafio, especialmente entre os profissionais mais experientes. “Os médicos devem adquirir habilidades para utilizar as ferramentas digitais de forma a otimizar seu tempo e se concentrar em atividades que requerem habilidades humanas, como a interação com os pacientes”, disse o pesquisador. “São recursos que podem contribuir para uma maior equidade, para a oferta de atendimento médico de qualidade mesmo em regiões com renda per capita e nível educacional mais baixos.”
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Citar este artigo: Expansão do uso de dispositivos digitais e IA na cardiologia: perspectivas e desafios - Medscape - 9 de junho de 2023.
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