Associação de ansiedade, depressão e covid-19 pode ser prejudicial para o cérebro ─ e para a saúde global no longo prazo.
A história de ansiedade e depressão anterior à infecção pelo SARS-CoV-2 aumenta o risco de covid-19 prolongada, segundo pesquisadores.
Pacientes com covid-19 prolongada que evoluem com ansiedade e depressão após a infecção aguda podem apresentar uma atrofia cerebral em áreas responsáveis pela regulação da memória, das emoções e de outras funções, além de um desarranjo na conectividade cerebral.
Embora ainda existam muitas dúvidas sobre essas inter-relações, as associações não são totalmente surpreendentes. Especialistas já sabem que a depressão e a ansiedade estão associadas à inflamação e à disfunção imunitária, o que talvez ajude a explicar a relação entre as duas doenças psiquiátricas, o risco de covid-19 prolongada e as alterações cerebrais.
As alterações cerebrais produzidas pela covid-19 preocupam os pesquisadores desde o início da pandemia, quando pesquisadores do UK Biobank detectaram a presença de atrofia cerebral, perda de massa cinzenta e declínio cognitivo em pacientes infectados pelo novo coronavírus, em comparação com pessoas não infectadas.
Doenças frequentes
As implicações das pesquisas que mostram associações entre ansiedade, depressão e covid-19 prolongada são vastas. Segundo os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos EUA, 12,5% dos adultos americanos têm sentimentos regulares de ansiedade (além de nervosismo e preocupação). Além disso, a última pesquisa do instituto Gallup mostrou que atualmente quase 18% dos adultos nos Estados Unidos está ou já esteve em tratamento para depressão.
Segundo informações atualizadas pelos CDC até 8 de maio de 2023, 10% dos adultos infectados nos EUA evoluíram com covid-19 prolongada, e entre os adultos americanos que foram infectados no passado, 27% relataram um diagnóstico de covid-19 prolongada. Segundo os CDC, a covid-19 prolongada pode ser definida como uma síndrome composta por sintomas como fadiga, confusão mental e tosse, os quais persistem por mais de quatro semanas. A Organização Mundial da Saúde, por sua vez, exige que os sintomas persistam por pelo menos três meses.
A seguir você encontra um resumo do que as pesquisas dizem sobre a saúde mental e o risco de covid-19 prolongada, além de outros achados científicos que mostram que manter hábitos saudáveis pode reduzir esse risco.
Depressão e ansiedade prévias e o risco de covid-19 prolongada
Pacientes com história de problemas psiquiátricos (depressão, ansiedade, preocupação, estresse e solidão) apresentam um aumento do risco de covid-19 prolongada, segundo pesquisadores de Harvard, nos EUA.
Os pesquisadores avaliaram dados de três grandes estudos em andamento, com quase 55.000 participantes, para determinar os efeitos gerados por níveis elevados de sofrimento psicológico anteriores a uma infecção pelo SARS-CoV-2.
"Nosso estudo foi puramente baseado em questionários", disse a médica Dra. Siwen Wang, primeira autora do estudo e pesquisadora vinculada à Harvard T.H. Chan School of Public Health, nos EUA.
No início da pesquisa, em abril de 2020, nenhum dos participantes havia relatado uma infecção atual ou prévia pelo SARS-CoV-2. Eles responderam questionários sobre sofrimento psicológico no início do estudo, mensalmente (durante seis meses) e trimestralmente até novembro de 2021.
Durante o período de acompanhamento, 3.193 pessoas relataram um teste positivo para covid-19 e 43% delas (1.403) evoluíram com covid-19 prolongada. Esse número pode parecer alto, mas 38% dos 55.000 participantes eram profissionais de saúde em atividade. No último questionário, eles deveriam relatar se os sintomas persistiram por quatro semanas ou mais e, portanto, se tinham covid-19 prolongada de acordo com a definição padronizada dos CDC.
Nesse momento, a equipe da Dra. Siwen analisou o estado psicológico dos participantes infectados. A ansiedade aumentou o risco de covid-19 prolongada em 42%, a depressão em 32%, a preocupação com a covid-19 em 37%, o estresse em 46% e a solidão em 32%.
Pacientes com covid-19 e história de depressão ou ansiedade também têm mais chances de ter problemas cognitivos algumas semanas após a infecção aguda e evoluir com confusão mental e covid-19 prolongada, segundo pesquisadores da University of California Los Angeles (UCLA), nos EUA. Eles avaliaram 766 indivíduos com infecção confirmada e verificaram que 36% dos pacientes relataram alterações cognitivas em até quatro semanas após a infecção. Os pacientes com ansiedade e depressão tinham mais chances de relatar essas alterações.
Consequências da covid-19 prolongada: ansiedade, depressão e alterações cerebrais
Até mesmo casos leves de covid-19 podem levar à covid-19 prolongada e alterações cerebrais em pacientes que evoluem com ansiedade ou depressão após a infecção aguda, disse a Dra. Clarissa Yasuda, Ph.D., médica e professora assistente de neurologia na Universidade de Campinas (UNICAMP). Ela pesquisou os efeitos da covid-19 prolongada sobre o cérebro, ao mesmo tempo em que teve que lidar com os desafios de ser, ela própria, uma paciente acometida pela síndrome.
Em um dos seus estudos, apresentado em abril na reunião de 2023 da American Academy of Neurology, a pesquisadora encontrou alterações cerebrais em pacientes com ansiedade, depressão e covid-19 que não foram observadas em pacientes infectados sem essas doenças psiquiátricas. Ela avaliou 254 pacientes, com média de idade de 41 anos, após cerca de 82 dias do teste de reação em cadeia da polimerase (RCP) positivo para covid-19. Todos os participantes responderam questionários padronizados para depressão (Inventário de Depressão de Beck) e ansiedade (Inventário de Ansiedade de Beck). Em seguida, ela dividiu esses indivíduos em dois grupos: 102 com sintomas de ansiedade ou depressão e 152 assintomáticos.
Os exames de neuroimagem mostraram que os pacientes com covid-19, ansiedade e depressão apresentavam uma atrofia do sistema límbico (que ajuda a processar as emoções e a memória), o que não era visto nos infectados sem ansiedade ou depressão. Em seguida, os pesquisadores avaliaram 148 pessoas saudáveis sem covid-19 e não detectaram atrofia cerebral.
A atrofia, disse a Dra. Clarissa, "não é uma alteração que pode ser vista a olho nu. Ela só foi detectada por meio de uma análise computadorizada. O aspecto na ressonância magnética estava normal."
O número de pacientes participantes do estudo com doenças psiquiátricas foi surpreendentemente elevado, disse a Dra. Clarissa. "Ficamos surpresos ao perceber que muitos indivíduos têm sintomas tanto de ansiedade quanto de depressão. Não esperávamos essa proporção."
Os pesquisadores descobriram um padrão de alterações não apenas na estrutura, mas também na comunicação cerebral. Eles descobriram essas alterações utilizando um software especializado para analisar as redes cerebrais de alguns dos participantes. Os pacientes com ansiedade e depressão apresentaram alterações funcionais generalizadas em todas as 12 redes avaliadas. Os participantes sem sintomas psiquiátricos apresentaram alterações em apenas cinco redes. Essas alterações são suficientes para levar a disfunções nas habilidades de cognição e memória, segundo a Dra. Clarissa.
Explicando as associações
Várias hipóteses foram propostas para tentar explicar a associação entre o sofrimento psicológico e o risco de covid-19 prolongada, disse a Dra. Siwen. “O primeiro e mais popular mecanismo proposto para a covid-19 prolongada é a inflamação crônica e desregulação imunitária”, disse ela. “Várias doenças psiquiátricas, como a ansiedade e a depressão, estão associadas à inflamação e disfunção [imunitária], e esse pode ser o elo entre a depressão, a ansiedade e a covid-19 prolongada.”
Outra hipótese menos popular, disse ela, é que "os pacientes com covid-19 prolongada têm mais autoanticorpos e, portanto, mais chances de evoluir com distúrbios de coagulação. Essas alterações também foram detectadas em pacientes com ansiedade, depressão ou outros tipos de sofrimento psicológico".
Outros pesquisadores estão analisando de forma mais ampla como a infecção pelo SARS-CoV-2 afeta o cérebro. Quando pesquisadores alemães avaliaram o cérebro e outros órgãos de 20 pacientes que morreram de causas não relacionadas à covid-19, mas que estavam infectados pelo SARS-CoV-2, descobriram que 12 desses indivíduos apresentavam aglomerados da proteína spike do vírus no parênquima cerebral, na calota craniana e nas meninges. Os pacientes saudáveis do grupo controle não apresentavam essas alterações.
Esses achados sugerem que a persistência da proteína spike pode contribuir para os sintomas neurológicos crônicos da covid-19 prolongada. Além disso, essas evidências podem levar à compreensão dos mecanismos moleculares e a tratamentos para a covid-19 prolongada, escreveram os pesquisadores no resumo do estudo, que está em pre-print e ainda não foi publicado e nem revisado por pares.
Em outro estudo recente, pesquisadores na Alemanha realizaram exames de neuroimagem e conduziram avaliações neuropsicológicas em 223 pacientes que não foram vacinados e se recuperaram de quadros leves a moderados de covid-19, comparando esses indivíduos com 223 controles saudáveis pareados submetidos às mesmas avaliações. Os pesquisadores encontraram alterações na substância branca cerebral dos pacientes infectados, mas não houve piora da função cognitiva no primeiro ano após a recuperação da infecção aguda. Eles concluíram que a infecção desencadeia uma resposta neuroinflamatória prolongada.
As alterações cerebrais podem ser revertidas? "Não temos uma resposta nesse exato momento, mas estamos trabalhando nisso", disse a Dra. Clarissa. Por enquanto, ela apenas especula sobre a normalização do volume cerebral: “Acho que isso vai acontecer na maioria dos casos. Mas também acho que precisamos tratar os sintomas. Não podemos desprezar os sintomas da covid-19 prolongada. Os pacientes estão sofrendo muito, e esse sofrimento causa um certo dano cerebral."
Hábitos de vida saudáveis e risco de covid-19 prolongada
Nesse mesmo período, uma pesquisa conduzida pela Dra. Siwen e colaboradores descobriu que a prática de hábitos de vida saudáveis por pacientes infectados pode reduzir o risco de covid-19 prolongada. Os pesquisadores acompanharam quase 2.000 mulheres com teste positivo para covid-19 durante 19 meses. Desse total, 44% (871) das pacientes evoluíram com covid-19 prolongada. Em comparação com as mulheres que não adotaram nenhum dos hábitos de vida saudáveis avaliados, as pacientes que praticaram cinco a seis hábitos saudáveis apresentaram uma redução de 49% do risco de covid-19 prolongada.
Esses hábitos eram: manter um IMC saudável (18,5 a 24,9 kg/m²), não fumar, praticar pelo menos 150 minutos semanais de atividade física moderada a intensa, ingerir bebidas alcoólicas em quantidade moderada (5 a 15 gramas/dia), ter uma alimentação de alta qualidade e dormir bem (7 a 9 horas/noite).
Soluções de longo prazo são necessárias
A Dra. Clarissa tem esperança de que a atenção à saúde mental (dos infectados e não infectados) seja levada mais a sério. Em um comentário sobre a própria experiência com a covid-19 prolongada, ela escreveu: "Temo pelos numerosos sobreviventes da covid-19 que não têm acesso à assistência médica para [o tratamento dos] sintomas pós-covid-19. (...) O sistema de atenção à saúde mental precisa estar preparado para receber sobreviventes com diferentes transtornos neuropsiquiátricos, como ansiedade e depressão”.
Fontes
Dra. Clarissa Yasuda, Ph.D., médica e professora assistente de neurologia na Universidade de Campinas (UNICAMP).
Dra. Siwen Wang, médica e pesquisadora vinculada à TH Chan School of Public Health da Harvard University, EUA.
JAMA Psychiatry: "Associations of Depression, Anxiety, Worry, Perceived Stress, and Loneliness Prior to Infection With Risk of Post-COVID-19 Conditions".
Reunião anual de 2023 da American Academy of Neurology, realizada de 22 a 27 de abril: "Anxiety and Depression Are Associated with Limbic Atrophy and Severe Disruption Of Brain Functional Connectivity After Mild COVID-19 Infection."
CDC: "Long COVID or Post-COVID Conditions", "Fast Stats: Mental Health."
bioRxiv: "SARS-CoV-2 Spike Protein Accumulation in the Skull-Meninges-Brain Axis: Potential Implications for Long-Term Neurological Complications in post-COVID-19".
PNAS: "Brain imaging and neuropsychological assessment of individuals recovered from a mild to moderate SARS-CoV-2 infection".
JAMA Internal Medicine: "Adherence to Healthy Lifestyle Prior to Infection and Risk of Post-COVID-19 Condition".
JAMA Network Open: "Perceived Cognitive Deficits in Patients With Symptomatic SARS-CoV-2 and Their Association with Post-COVID-19 Condition".
Gallup: "U.S. Depression Rates Reach New Highs".
Arquivos de Neuro-Psiquiatria: "Minha jornada após uma infecção leve por covid-19: eu quero meu cérebro antigo de volta".
Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape
Siga o Medscape em português no Facebook, no Twitter e no YouTube
Créditos: Imagem principal: Sulit Photos/Dreamstime
Medscape Notícias Médicas © 2023 WebMD, LLC
Citar este artigo: Ansiedade, depressão e covid-19 prolongada: a perspectiva dos especialistas - Medscape - 9 de junho de 2023.
Comente