Em vez de radioterapia na região pélvica, muitos pacientes com câncer de reto localmente avançado que não apresentam doença de alto risco podem receber quimioterapia isolada seguida de cirurgia, segundo os pesquisadores que divulgaram os resultados do estudo PROSPECT.
"O estudo preconiza o pré-operatório com ácido folínico, 5-fluorouracila e oxaliplatina (FOLFOX), e uso seletivo de quimiorradioterapia para pacientes com câncer retal localmente avançado", comentou a líder do ensaio clínico, Dra. Deborah Schrag, oncologista gastrointestinal no Memorial Sloan Kettering Cancer Center nos Estados Unidos.
"Ter essa opção é importante por várias razões", disse a pesquisadora.
"Para começar, a radioterapia não é facilmente acessível em muitas partes do mundo. Uma estratégia com quimioterapia isolada pode disponibilizar o tratamento com intenção curativa nos locais com escassez de recursos.”
"Além disso, diante da progressão da prevalência do câncer colorretal entre jovens, [a abordagem] abre a oportunidade de preservar a fertilidade ou evitar a menopausa precoce", disse Dra. Deborah.
Reagindo aos achados, a Dra. Pamela Kunz, médica e chefe do Gastrointestinal Cancers Program at Yale Cancer Center nos EUA, comentou: "O importante é que a radiação pode ser omitida com segurança em muitos pacientes com câncer retal clinicamente avançado — literalmente, 'menos é mais’”.
"Podemos poupar alguns pacientes da radioterapia, sem comprometer a eficácia do tratamento", disse Dra. Pamela. "Isso promove melhor qualidade de vida e redução dos efeitos colaterais, tais como menopausa precoce e infertilidade".
A Dra. Pamela falou em uma coletiva de imprensa na qual os resultados foram destacados antes de serem apresentados na sessão plenária na reunião anual da American Society of Clinical Oncology (ASCO).
A médica disse que o ensaio "altera a conduta clínica, e se alinha muito bem ao tema do congresso deste ano, em torno da diminuição do tratamento e da parceria com os pacientes".
A Dra. Julie R. Gralow, diretora médica e vice-presidente executiva da ASCO, acrescentou que o tema pode ser a diminuição do tratamento, mas neste caso é "realmente mais precisamente a sua otimização, porque você conseguiu diminuir 91%, mas encontrou 9% que realmente precisavam desse tratamento".
Os resultados da eficácia foram publicados simultaneamente no periódico New England Journal of Medicine, enquanto os desfechos descritos pelos pacientes foram publicados no periódico Journal of Clinical Oncology.
Discutindo os resultados, a médica Dra. Corrie Marijnen, Ph.D., presidente do Department of Radiation Oncology, Amsterdam Cancer Institute na Holanda, comentou que o ensaio foi bem feito e parabenizou a equipe por incluir os desfechos descritos pelos pacientes.
Há duas maneiras de olhar para os resultados, continuou, com os desfechos oncológicos encarados de forma diferente da perspectiva do médico e do paciente.
Embora os dois braços do ensaio clínico estivessem bem equilibrados em termos de resultados, houve um grande desequilíbrio em termos dos efeitos tóxicos vivenciados pelos pacientes durante o período de tratamento. Considerando que houve piores resultados de neuropatia em 12 meses com mFOLFOX6, os efeitos tóxicos da quimiorradioterapia fizeram "pender a balança" a favor da quimioterapia.
Dra. Corrie também indicou que a definição de "avançado local" no câncer de reto varia de acordo com a região, e que na Europa muitos dos pacientes no estudo atual seriam definidos como estágio inicial e intermediário, e assim não se qualificariam para o tratamento neoadjuvante. Isso também influenciou os números de recorrência local em comparação a outros estudos, nos quais esses números foram muito mais altos, sugerindo que em um grupo de pacientes com câncer inequivocamente avançado local, o mFOLFOX6 "isoladamente pode não ser suficiente".
A Dra. Corrie disse que a redução dos efeitos tóxicos relacionados com a radioterapia em longo prazo torna o novo esquema uma boa escolha, embora a decisão deva ser tomada junto com o paciente. Pode depender se a neuropatia em longo prazo associada à quimiorradioterapia pode ser mais relevante para alguns, como músicos, enquanto os efeitos tóxicos precoces com mFOLFOX6 podem ser insuportáveis para pessoas que cuidam de jovens nas famílias.
A Dra. Corrie concluiu que os objetivos futuros devem ser aumentar a prevalência de resposta completa acima dos atuais 25%, e perguntar se, na população estudada neste ensaio, o tratamento neoadjuvante "é necessário".
A quimiorradioterapia é o tratamento convencional
Apresentando os resultados, a Dra. Deborah começou indicando que cerca de metade de todos os novos diagnósticos de câncer de reto têm doença avançada local, o que nos EUA representa 48 mil casos por ano.
A médica explicou que a "conduta convencional" do tratamento é 5½ semanas de quimiorradioterapia diária, com radioterapia para a pelve juntamente com a quimioterapia sensibilizante com fluoropirimidina, seguida de cirurgia, e então aproximadamente 16 semanas de quimioterapia adjuvante.
"Desta forma, obtermos resultados muito bons", observou Dra. Deborah, com a inclusão da radioterapia na década de 1980, um "avanço criticamente importante" na desaceleração dos índices de recorrência, que é uma "causa de enorme sofrimento".
No entanto, o tratamento é "longo e duro", e a radiação pélvica causa "efeitos tóxicos reais", disse a médica. Estes podem ser o comprometimento do intestino, da bexiga e da função sexual, e o aumento dos efeitos tardios, como maior risco de fraturas pélvicas e de câncer secundário, bem como de infertilidade e de menopausa precoce, e comprometimento da função da medula óssea.
Esta depressão da função de medula óssea pode "tornar-se um problema para as pessoas que fazem quimioterapia futuramente", enquanto a infertilidade e a menopausa precoce são "um grande problema porque estamos fazendo cada vez mais o diagnóstico de câncer de reto em pessoas antes dos 50 anos".
A Dra. Deborah disse que, desde que a quimiorradioterapia se tornou a conduta oficial, houve "tanto progresso", com melhor quimioterapia, melhores técnicas cirúrgicas e mais rastreamento, então estamos encontrando mais tumores quando ainda são menores e mais fáceis de tratar".
A mensagem do ensaio clínico PROSPECT, disse a Dra. Deborah, foi, portanto: "Poderíamos usar a radioterapia de forma mais seletiva, e apenas para quem não responde à quimioterapia, em vez de fazer para todos?"
O estudo foi feito com 1.128 pacientes com câncer de reto e doença clinicamente estadiada como T2 linfonodo positivo, T3 linfonodo negativo ou T3 linfonodo positivo e que foram candidatos à cirurgia com preservação do esfíncter.
Foram aleatoriamente designados para receber um esquema de quimioterapia modificado (n = 585) ou quimiorradioterapia convencional (n = 543). A média de idade dos pacientes foi de 57 anos e 34,5% eram do sexo feminino. A maioria (85%) era branca.
Todos os pacientes fizeram cirurgia, com resseção anterior baixa e excisão mesorretal total.
A quimiorradioterapia convencional foi a radioterapia pélvica a 50,4 Gy em mais de 28 frações, junto com quimioterapia sensibilizante com fluorouracila ou capecitabina.
O esquema quimioterápico modificado foi de mFOLFOX6, contendo oxaliplatina modificada com l-leucovorina, e infusão em ou contínua de 5-fluorouracila.
Os pacientes do grupo mFOLFOX6 cujo tumor primário diminuiu de tamanho pelo menos 20% após os seis ciclos procederam diretamente à cirurgia, enquanto não fizeram quimiorradioterapia antes da cirurgia (9% acabaram fazendo quimiorradioterapia).
A quimioterapia adjuvante pós-operatória com seis ciclos no grupo mFOLFOX6, ou oito ciclos no grupo da quimiorradioterapia, foi sugerida, mas não obrigatória.
A Dra. Deborah disse ao Medscape que a equipe optou por usar o mFOLFOX6 por causa de sua longa experiência com essa associação.
FOLFOX se tornou disponível pela primeira vez em 2002, e ensaios clínicos randomizados mostraram que era mais eficaz do que a 5-fluorouracila isolada nos ensaios clínicos de câncer de cólon.
A pesquisadora explicou que os pacientes com câncer de reto avançado local "nunca eram incluídos" nesses estudos porque já estavam fazendo quimiorradioterapia, mas que seu uso no câncer de reto metastático, junto com os dados no câncer de cólon, os levou a experimentá-lo no contexto atual.
"Também é bem tolerado, administrado a cada duas semanas, e é familiar aos oncologistas de qualquer lugar", acrescentou a Dra. Deborah.
A médica observou que não é "isento de riscos", com aumento do risco de neuropatia, "o que não é um grande efeito colateral, mas conseguimos modular isso."
Resultados do ensaio clínico
Após uma mediana de acompanhamento de 58 meses, o mFOLFOX6 foi considerado como não sendo inferior à quimiorradioterapia em termos de sobrevida livre de doença, em uma razão de risco de recorrência da doença ou morte de 0,92 (P = 0,005 para não inferioridade).
A sobrevida livre de doença em cinco anos foi de 80,8% no grupo mFOLFOX6 e de 78,6% entre os pacientes designados para quimiorradioterapia, enquanto a sobrevida global em cinco anos foi de 89,5% vs. 90,2%, em uma relação de risco de morte de 1,04, não significativa.
A incidência de recidiva local em cinco anos foi baixa, de 1,8% com mFOLFOX6 e 1,6% com a quimiorradioterapia.
Os eventos adversos de grau 3 ou mais foram duas vezes mais comuns no grupo mFOLFOX6 do que entre os pacientes que receberam quimiorradioterapia, de 41% vs. 22,8%, embora os pesquisadores ressaltem que o período de tratamento também foi duas vezes maior no braço da quimioterapia.
Os efeitos adversos mais comuns de grau 3 ou mais do mFOLFOX6 foram neutropenia (20,3%), dor (3,1%) e hipertensão arterial (2,9%), enquanto os da quimiorradioterapia foram linfopenia (8,3%), diarreia (6,4%) e hipertensão arterial (1,7%).
Em relação aos desfechos relatados pelos pacientes, os que receberam mFOLFOX6 referiram menos diarreia e melhor função intestinal geral durante a fase neoadjuvante do que os que fizeram quimiorradioterapia (P < 0,05 para todos).
No entanto, os pacientes designados para a quimiorradioterapia tiveram menos ansiedade, perda do apetite, constipação, depressão, disfagia, dispneia, edema, fadiga, mucosite, náuseas, neuropatia e vômitos durante o tratamento (P < 0,05 para todos).
No acompanhamento pós-operatório em 12 meses, entretanto, essas diferenças haviam desaparecido, e os pacientes originalmente designados para mFOLFOX6 tinham menores taxas de fadiga e neuropatia e melhor função sexual do que os que fizeram quimiorradioterapia (P < 0,05 para todos).
"Durante o tratamento em si, vários sinais e sintomas foram piores com a quimioterapia, mas um ano após o término do tratamento, esses sinais e sintomas foram resolvidos e o padrão virou para que os pacientes que receberam radioterapia tivessem persistência dos sintomas", disse o médico copesquisador Dr. Ethan Basch chefe da oncologia médica e diretor do Cancer Outcomes Research Program at University of North Carolina Lineberger Comprehensive Cancer Center nos EUA.
"Os pacientes, idealmente, entenderão a potencial repercussão dos tratamentos no modo como se sentem e funcionam ao fazer escolhas, de modo que, como oncologistas, precisamos conversar com nossos pacientes sobre suas opções e as consequências dessas opções", disse o médico em um comunicado.
O estudo foi financiado pelo National Cancer Institute of the National Institutes of Health.
A Dra. Deborah Schrag informa ter relações comerciais com as empresas Merck (Inst), JAMA, AACR (Inst) e Grail (Inst). Dr. Ethan Basch informa ter relações comerciais com as empresas AstraZeneca, Navigating Cancer, Resilience Care, SIVAN Innovation, ASCO, Centers for Medicare & Medicaid Services, JAMA-Journal of the American Medical Association, National Cancer Institute e Patient-Centered Outcomes Research Institute. Formulários de conflitos de interesse dos autores do estudo podem ser encontrados aqui.
A Dra. Pamela Kunz informa ter relações comerciais com as empresas Novartis, Genentech/Roche, Amgen, Crinetics Pharmaceuticals, Natera, HUTCHMED, Isotope Technologies Munich SE. A Dra. Julie R. Gralow informa ter relações comerciais com s empresa Genentech/Roche.
American Society of Clinical Oncology 2023 Annual Meeting: Abstract LBA2. Apresentado em 04 de junho de 2023.
N Engl J Med. Publicado on-line em 04 de junho de 2023. Abstract
J Clin Oncol. Publicado on-line em 04 de junho de 2023. Abstract
Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape.
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Citar este artigo: Evitando a radioterapia no câncer retal: ‘menos é mais’ - Medscape - 6 de junho de 2023.
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