O curioso mundo dos hidrogéis: como esses produtos mudarão a medicina

Lisa Marshall

1 de junho de 2023

Os novos hidrogéis podem facilmente passar através de uma agulha, conservando sua forma em gel e liberando o medicamento lentamente no interior do organismo.

Imagine quando uma simples injeção puder reparar uma fratura óssea; a ingestão de pequenos dispositivos passar despercebida pelo organismo, permanecendo lá para o rastreamento da saúde – ou liberando fármacos que salvam vidas; os implantes cerebrais e cardíacos se entrelaçarem com o tecido original tão perfeitamente que o organismo acredite que sempre estiveram lá.

Esses são os sonhos dos cientistas que trabalharam durante décadas para mimetizar a complexa arquitetura do organismo humano na esperança de substituir partes quebradas ou tratar enfermidades.

O problema, segundo os bioengenheiros, é que a maioria das peças de substituição e correção — das próteses aos marca-passos — é feita de materiais duros, secos e sem vida, como metal ou plástico, enquanto o tecido biológico é flexível, úmido e vivo.

O corpo reconhece a diferença, e tende a rejeitar as imitações.

Eis que surgem os hidrogéis, redes tridimensionais de moléculas embebidas em água – por definição.

Descritas pela primeira vez em 1960 pelos criadores de lentes de contato gelatinosas, essas substâncias estranhas e que mudam de forma conseguem se transformar de líquido para sólido e ficar no meio do caminho. (Entre os primeiros usos simples temos o gel de cabelo ou a gelatina.) Embora tenham custado a chamar atenção, com apenas mil estudos publicados até 1982, recentemente se tornaram objeto de inúmeras pesquisas, com o total de 100 mil artigos publicados até 2020 e 3.800 só este ano.

À medida que químicos, biólogos e engenheiros começaram a trabalhar mais uns com os outros e com os médicos, o fértil campo do hidrogel tornou-se capaz de transformar a forma como tomamos medicamentos e tratamos os desgastes articulares e de abrir caminho para um futuro aparentemente de ficção científica no qual órgãos, inclusive o cérebro, possam interagir diretamente com máquinas.

"Nós somos, essencialmente, hidrogéis", disse o Dr. Benjamin Wiley, Ph.D., professor de química na Duke University nos Estados Unidos. "À medida que as pessoas criarem novos hidrogéis que combinam melhor com os tecidos do nosso organismo, seremos capazes de tratar toda uma gama de doenças que não podíamos tratar antes".

De lentes de contato a implantes cerebrais

Simplificando, um hidrogel é como um saco de malha de água. 

A malha é feita de polímeros, ou fios de moléculas tipo espaguete, costurados em um padrão repetido e embebidos em H2O, muito semelhante à forma como as matrizes 3D em nosso organismo envolvem, apoiam e estruturam as nossas células e os nossos tecidos.

"Imagine uma rede de futebol, com todas essas fibras longas entrelaçadas para criar a rede", disse o Dr. Eric Appel, Ph.D., professor associado de ciência e engenharia de materiais na Stanford University.

Embora a categoria mais ampla de "géis" possa ser embebida em qualquer coisa, inclusive solventes químicos, a água é o ingrediente fundamental que diferencia os hidrogéis, tornando-os ideais para, como dizem alguns cientistas, "fundir humanos e máquinas".

Os ossos humanos têm cerca de 25% de solução aquosa, enquanto nos músculos a quantidade gira em torno de 70% e no cérebro de 85%. Esse líquido precioso desempenha um conjunto de papéis fundamentais, desde trazer nutrientes e levar embora os resíduos até ajudar as células a se comunicarem umas com as outras.

Os hidrogéis feitos em laboratório podem conter um carregamento (como uma bola na rede), com células ou fármacos que ajudam a mimetizar algumas dessas funções.

Os hidrogéis também são macios e flexíveis como o tecido humano. Então, se usados em implantes, podem ter menos chances de lesar os tecidos adjacentes.

"Pense em uma colher de metal em um pote de pudim. Enquanto você sacudir o pote, a colher não fica no lugar, e ficam marcas em torno da colher", disse a Dra. Christina Tringuides, Ph.D., cientista de materiais que estuda engenharia neural. Isso, disse ela, é exatamente o que acontece com os implantes cerebrais quando os pacientes respiram ou se movem. "É um descompasso mecânico. Mas com os hidrogéis, você pode obter uma sincronia mecânica perfeita."

Os hidrogéis também tendem a ser atóxicos, de modo que o sistema imunitário pode ter menos probabilidade de atacá-los como corpos estranhos.

Tudo isso fez dos hidrogéis o novo queridinho do mundo da bioengenharia.

"Houve uma explosão absoluta do interesse por esses materiais", disse o Dr. Eric.

Sistema de liberação eletrônico de medicamentos mais inteligente e que pode ser ingerido

As primeiras versões de hidrogéis eram espessas e pegajosas, dificultando sua colocação no interior do organismo.

"Pense em um pedaço de gelatina. Você não pode injetar algo assim", disse o Dr. Eric.

Mas o Dr. Eric, cujo laboratório cria novos sistemas de liberação de medicamentos, tem trabalhado com fórmulas de gel há anos na esperança de que esses bolas de alta tecnologia possam algum dia transportar fármacos de liberação cronometrada para o local certo no organismo.

Seus novos hidrogéis começaram como géis totalmente formados (que ajudam a preservar os medicamentos neles contidos) dentro de uma seringa. Mas uma vez que o êmbolo é empurrado, eles magicamente mudam de forma para um líquido suficientemente fino para fluir facilmente através de uma agulha convencional. Após a saída, eles imediatamente retomam sua forma de gel, protegendo seu carregamento da degradação.

Isso pode ser um divisor de águas em um momento em que muitos medicamentos de ponta — pense no adalimumabe para a artrite ou na semaglutida para o diabetes tipo 2 — são feitos de proteínas rapidamente degradáveis, grandes e complexas demais para serem colocadas em um comprimido. Em vez disso, precisam ser injetadas, muitas vezes com frequência.

Pense em um pedaço de gelatina. Você não poderia injetar algo assim. Dr. Eric Appel, Ph.D., Stanford University

"Como o gel leva meses para se dissolver, a substância libera lentamente o fármaco ao longo do tempo", disse o Dr. Eric. "Você poderia, possivelmente, passar de uma injeção uma vez por semana para uma a cada quatro meses."

Esses hidrogéis de liberação prolongada poderiam fazer com que as vacinas durassem mais tempo, por sua vez, ensinando o corpo a resistir melhor às variantes emergentes dos vírus, e oferecer tratamento de remoção de tumores com mais precisão, disse o Dr. Eric, que criou uma startup e espera acelerar o primeiro sistema de administração farmacológica por hidrogel em ensaios clínicos em alguns anos.

Enquanto isso, outra equipe do Massachusetts Institute of Technology adotou uma estratégia diferente, criando um comprimido de hidrogel de tamanho convencional que pode ser ingerido e que aumenta de tamanho (como um baiacu) quando está no estômago, durando um mês e liberando lentamente substâncias o tempo todo. Para remover o comprimido, o paciente simplesmente toma uma solução contendo sal que faz o dispositivo do tamanho de uma bola de pingue-pongue murchar de modo que possa ser eliminado do organismo.

Em um artigo publicado no periódico Nature Communications, os cientistas mostraram que o comprimido baiacu também poderia levar minúsculas câmeras ou monitores para rastrear doenças como úlceras ou câncer.

"O sonho é ter um comprimido gelatinoso inteligente que, uma vez engolido, permaneça no estômago e monitore a saúde do paciente", disse o Dr. Xuanhe Zhao, Ph.D., pesquisador do projeto e professor associado de engenharia mecânica no Massachusetts Institute of Technology.

Construindo articulações e promovendo o crescimento ósseo

Desde a década de 1970, os pesquisadores têm avaliado o uso de hidrogéis para substituir a cartilagem humana, um tecido extremamente forte e flexível feito de cerca de 90% de solução aquosa, mas capaz de suportar o peso de um carro em uma área do tamanho de uma moeda.

Até recentemente, esses esforços têm falhado, em grande parte. Ou seja, quando a cartilagem do joelho se desgasta, recursos como transplantes de cartilagem, perfuração para estimular o crescimento ou artroplastias totais são as únicas opções – e todas essas técnicas exigem reabilitação prolongada.

Mas isso pode estar prestes a mudar.

O sonho é ter um comprimido gelatinoso inteligente que, uma vez engolido, permaneça no estômago e monitore a saúde do paciente. Dr. Xuanhe Zhao, Ph.D., Massachusetts Institute of Technology

O Dr. Benjamin e colaboradores da faculdade recentemente publicaram que criaram o primeiro substituto de cartilagem gelatinoso ainda mais forte e mais durável do que a própria cartilagem.

Ao ligar seu hidrogel a um suporte de titânio para ajudar a fixá-lo no lugar, os pesquisadores esperam reparar a cartilagem lesada "do mesmo modo como quando um dentista preenche uma cárie" muito antes da cirurgia ser necessária.

Os pesquisadores também fizeram uma parceria com a indústria para comercializar o hidrogel — começando com joelhos.

"Em última análise, o objetivo é fazer qualquer articulação – quadril, tornozelo, quirodáctilo e pododáctilo", disse o Dr. Benjamin. 

Na University of Toronto, a química Dra. Karina Carneiro, Ph.D., e o dentista Dr. Christopher McCulloch também estão pensando grande.

Em um artigo recente publicado no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences, a dupla descreveu um hidrogel, projetado pela Dra. Karina e feito de ADN, que pode ser injetado, migrar para o defeito ósseo — uma fratura irreparável, um orifício cirúrgico ou a diminuição do maxilar pela idade — e preencher a lacuna como massa de vidraceiro. Mas esse hidrogel não só remenda o orifício, como também faz com que o osso se regenere.

Em modelos murinos de orifícios cirúrgicos no crânio, os pesquisadores descobriram que o tratamento não funcionou tão bem quanto o padrão-ouro existente de reparo de orifícios ósseos — o enxerto com ossos de outras partes do corpo. Mas funcionou!

"Estamos nos primórdios do uso de hidrogéis de ADN", advertiu o Dr. Christopher, coautor do estudo e professor da Faculty of Dentistry, observando que provavelmente irá transcorrer uma década ou mais antes que essa tecnologia possa estar disponível para os pacientes. "Mas existe o potencial de que o hidrogel de ADN possa algum dia promover o crescimento ósseo sem a necessidade de procedimentos cirúrgicos muito invasivos. Isso é um avanço significativo."

Um futuro de ficção científica

Talvez as aplicações potenciais mais inesperadas e estranhas dos hidrogéis venham no domínio da interação entre o homem e a máquina.

Inúmeras empresas já estão se digladiando com interfaces de prótese neural ou cerebrais que possam algum dia, por exemplo, permitir que alguém que esteja paralisado e não possa falar escreva em um laptop usando seus pensamentos.

O problema da “colher no pudim” tem sido um grande obstáculo.

Mas a Dra. Christina, que recentemente fez doutorado em biofísica em Harvard e atualmente faz pós-doutorado em Zurique, está trabalhando nisso.

A pesquisadora e sua equipe criaram um hidrogel feito de algas carregadas com pequenas extensões de nanomateriais que podem não só se fundir bem no tecido cerebral amolecido, como também conduzir eletricidade.

Em uma década, disse a pesquisadora, isso poderia substituir os desajeitados discos de platina usados para a eletrocorticografia — registrando a atividade elétrica cerebral para identificar onde as convulsões começam ou fazendo uma cirurgia cerebral precisa.

Em 30 a 50 anos? Deixe a sua imaginação voar.

"Eu sou cética. Gosto de fazer a pesquisa dando um passo depois do outro", disse a pesquisadora. "Mas as coisas estão claramente progredindo em uma direção muito interessante."

Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape

Fontes

  • Benjamin Wiley, PhD, professor, Department of Chemistry, Duke University, Durham, NC.

  • Eric Appel, PhD, associate professor of materials science and engineering, Stanford University, Stanford, CA.

  • Christina Tringides, PhD, postdoctoral fellow, ETH Zurich, Zurich, Switzerland.

  • Christopher McCulloch, DDS, professor, Faculty of Dentistry, University of Toronto.

  • Nature: "Hydrogel interfaces for merging humans and machines."

  • ACS Publications: "Translational applications for hydrogels."

  • News release, Massachusetts Institute of Technology.

  • Advanced Functional Materials: "A Synthetic Hydrogel Composite with a Strength and Wear Resistance Greater than Cartilage."

  • PNAS: "DNA hydrogels for bone regeneration."

  • News release, Wyss Institute, Harvard University, Boston.

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