COMENTÁRIO

Sono, ritmo circadiano, delirium e a UTI

Dr.  Aaron B. Holley

Notificação

24 de maio de 2023

A American Thoracic Society (ATS) faz um excelente trabalho ao enfatizar a importância da medicina do sono. Logo após a publicação de seu posicionamento científico sobre a fadiga oncológica, a sociedade divulgou outro documento sobre distúrbios do sono e do ritmo circadiano na unidade de terapia intensiva (UTI). Embora os autores reconheçam que os estudos com desfechos definitivos nesta área do conhecimento sejam escassos, a associação entre sono e recuperação tem plausibilidade biológica suficiente para ser ressaltada. Não há como negar a sua importância.

Mas o sono depende, em grande parte, do comportamento e do ambiente. E nenhum dos dois são fáceis de mudar. Isso é particularmente verdade na UTI, onde uma boa "higiene do sono" é impossível; as interrupções são constantes e a luz artificial está em toda parte. Além do mais, o fato de pacientes críticos serem tratados por equipes grandes e complexas, com pouco treinamento em medicina do sono e ainda menos conscientização sobre as necessidades individuais de sono de seus pacientes, não contribui para a manutenção de um sono adequado.

Não seria bom se tivéssemos um fármaco barato, de baixo risco e fácil de administrar, que "corrigisse" os distúrbios do sono e do ritmo circadiano na UTI? Muitos dos dados sobre o tratamento farmacológico (ou profilaxia) dos distúrbios do sono e do ritmo circadiano em pacientes críticos vêm de uma mescla de estudos sobre sedação e prevenção de delirium , nos quais o sono costuma ser um fator secundário, como uma consequência posterior. A redução do delirium atraiu mais atenção do que a melhora do sono, sendo o último um alvo apenas pelo motivo de potencialmente melhorar o primeiro.

Os principais agentes farmacológicos neste contexto parecem ser a ramelteona, a melatonina, a quetiapina e a dexmedetomidina. Em pequenos estudos randomizados com um total de apenas 24 pacientes de UTI, a ramelteona melhorou o sono e reduziu o delirium. A melatonina e a quetiapina têm seus adeptos e são comumente prescritas, embora não esteja claro o porquê. Elas são baratas e relativamente inócuas em doses típicas, mas sua eficácia na UTI não é clara.

A dexmedetomidina parece ser a “queridinha atual”. Um novo estudo controlado e randomizado publicado on-line no periódico eClinicalMedicine (parte da coleção de periódicos The Lancet Discovery Science) relatou que uma infusão curta (1 µg/kg em 40 minutos, para ser exato) foi suficiente para reduzir o delirium pós-operatório em idosos submetidos a cirurgia de ponte aorto-coronária não emergencial. Fiquei surpreso com o fato de o medicamento ter sido administrado durante tão pouco tempo, visto que outros estudos que li utilizaram infusões estendidas pela noite toda. Os autores definiram a dose a partir de um estudo anterior realizado em voluntários saudáveis. Com essa intervenção simples, breve e de baixo risco, os autores conseguiram mostrar uma redução do delirium no primeiro dia de pós-operatório.

Os primeiros grandes estudos sobre dexmedetomidina foram publicados em 2007 e 2009 e, desde então, seus adeptos a têm promovido para um uso sob o ponto de vista de melhora do sono. O estudo publicado no periódico JAMA em 2009 fez uma ligeira observação sobre o fato de a dexmedetomidina preservar o sono biológico. Fiquei tão empolgado lendo isso (eu estava terminando minha especialização em medicina do sono na época) que obtive a referência que o artigo citava. Acontece que foi um estudo em modelo murino que eu rotularia de intrigante, na melhor das hipóteses. Quando dois estudos subsequentes evidenciaram ausência de melhora no estágio N3 e pouco ou nenhum sono REM com dexmedetomidina, concluí que era como qualquer outro agente GABAérgico: aumenta o estágio N2, mas não o sono profundo ou o sono REM.

Decidir como e quando usar a dexmedetomidina continua sendo um desafio. Há um debate razoável sobre a opção do fármaco como o agente de escolha em indivíduos com necessidade de sedação contínua. Afinal, estudos com infusão de dexmedetomidina durante a noite toda evidenciaram a presença de algum estágio N3 e de um pouco de sono REM, o que eu considero ser um desempenho melhor do que o do propofol ou de benzodiazepínicos. Há também o potencial para melhora no delirium , mas infelizmente esse benefício do delirium relacionado ao sono não se traduziu em melhores resultados em estudos controlados e randomizados maiores. De fato, o estudo SPICE III constatou aumento da mortalidade em 90 dias em participantes mais jovens (idade < 63,7 anos) que, em uma análise post-hoc , foi relacionado ao aumento das taxas de infusão de dexmedetomidina. Por fim, o fármaco permanece patenteado, de modo que o custo favorece outros agentes.

Temos dados suficientes para recomendar dexmedetomidina de forma preemptiva para melhorar o sono e reduzir o delirium em pacientes que não necessitam de sedação contínua? Difícil de dizer. Os dados existentes foram recentemente sintetizados em uma metanálise. Imerso em heterogeneidade, vieses e todas as outras limitações estatísticas imagináveis, este estudo encontrou pouca fundamentação para o uso da dexmedetomidina. Suponho que o fármaco poderia ser administrado com uma breve infusão de 40 minutos para pacientes que correm alto risco de delirium ou interrupção do sono, devido ao custo e aos efeitos colaterais. Ainda assim, existem fármacos mais baratos que favorecem o sono e que podem alcançar resultados semelhantes.

Em suma, reduzir os distúrbios do sono e do ritmo circadiano na UTI deveria ser uma prioridade absoluta. Existem mudanças ambientais e comportamentais que valem a pena tentar alcançar. O documento de posicionamento científico da ATS deve atrair mais a atenção para esta área, e deve lembrar aos médicos intensivistas que a promoção do sono deve ser um objetivo em si, e não simplesmente um método empregado para reduzir o delirium. Eu gostaria de acreditar que a dexmedetomidina (ou, neste caso, qualquer outro fármaco) é a resposta, mas não acredito. Não tenho certeza de que sabemos exatamente onde e quando usar a dexmedetomidina.

O Dr. Aaron B. Holley é professor de medicina na Uniformed Services University e médico especializado em medicina intensiva, pneumologia e medicina do sono no MedStar Washington Hospital Center (ambas as instituições nos Estados Unidos). Ele cobre uma ampla gama de tópicos relacionados às suas três especialidades .

Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape

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