Qual o risco de doença autoimune após covid-19?

Lucy Hicks

9 de maio de 2023

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Desde que a pandemia de covid-19 começou, há mais de três anos, os efeitos da infecção pelo SARS-CoV-2 continuam a aparecer. Aproximadamente 28% dos estadunidenses relatam já ter apresentado sintomas de covid-19 prolongada, como “névoa mental”, mal-estar pós-esforço e dor nas articulações, e 11% referem ainda estar experimentando esses efeitos em longo prazo. Agora, novas pesquisas mostraram que indivíduos que tiveram covid-19 têm maior probabilidade de evoluir com uma nova doença autoimune. O motivo exato de isso estar acontecendo é menos claro, segundo os especialistas.

Dois estudos em pré-impressão e um estudo publicado em um periódico com revisão por pares apresentaram fortes evidências de que os pacientes anteriormente infectados pelo SARS-CoV-2 têm risco elevado de evoluir com uma doença autoimune. Os estudos revisaram retrospectivamente registros médicos de três países e compararam a incidência de doença autoimune de início recente entre pacientes que apresentaram covid-19 confirmada por teste de reação em cadeia da polimerase (PCR) e pacientes que nunca foram diagnosticados com a doença.

Um estudo analisou os registros de saúde de 3,8 milhões de pacientes nos Estados Unidos — entre eles, mais de 888.460 com covid-19 confirmada — e descobriu que o grupo com a patologia tinha duas a três vezes mais chances de apresentar diversas doenças autoimunes, como artrite reumatoide, lúpus eritematoso sistêmico e esclerodermia. Um estudo britânico em pré-impressão com mais de 458 mil participantes com covid-19 confirmada constatou que indivíduos com história de infecção pelo SARS-CoV-2 apresentaram 22% mais chances de ter uma doença autoimune em comparação com o grupo controle. Nesta coorte, as enfermidades mais fortemente associadas à covid-19 foram diabetes tipo 1, doença inflamatória intestinal e psoríase. Por fim, um estudo alemão também em pré-impressão constatou que os pacientes com covid-19 tiveram quase 43% mais chances de apresentar uma doença autoimune, em comparação com pacientes que nunca haviam sido infectados. A covid-19 foi mais fortemente associada a vasculite.

Infecções podem desencadear doenças autoimunes

Esses grandes estudos estão nos dizendo: "Sim, esta associação existe, é preciso aceitar isso", afirmou ao Medscape a Dra. Sonia Sharma, Ph.D. afiliada ao Center for Autoimmunity and Inflammation do La Jolla Institute for Immunology, nos EUA. Contudo, esta não é a primeira vez que doenças autoimunes são associadas a infecções prévias.

Os pesquisadores sabem há décadas que a infecção pelo vírus Epstein-Barr está associada a várias doenças autoimunes, como lúpus eritematoso sistêmico, esclerose múltipla e artrite reumatoide. Pesquisas mais recentes sugerem que o patógeno pode ativar certos genes associados a esses distúrbios imunitários. O vírus da hepatite C pode induzir crioglobulinemia, e a infecção por citomegalovírus tem sido relacionada a diversas patologias autoimunes. Infecções bacterianas também têm sido associadas ao aparecimento de fenômenos relacionados à autoimunidade, como ocorre com o Streptococcus do grupo A (ligado à febre reumática), ou com a Salmonella spp. (relacionada com a síndrome de Reiter), para citar apenas algumas.

"De certa forma, isso não é necessariamente uma novidade para os médicos, especialmente para os reumatologistas", disse o Dr. Jeffrey A. Sparks, reumatologista afiliado ao Brigham and Women's Hospital, nos EUA. “Existe uma linha tênue entre a eliminação adequada de uma infecção e a reação exagerada do corpo, desencadeando uma cascata em que o sistema imune fica cronicamente hiperativo, o que pode se manifestar como uma doença autoimune”, explicou ele ao Medscape.

Uma resposta desregulada à infecção

O sistema imune leva uma semana ou duas para produzir anticorpos específicos contra um novo patógeno. Mas, para pacientes com infecções graves — neste caso, a covid-19 —, este intervalo é longo demais. Portanto, o sistema imunológico tem uma via alternativa, chamada ativação extrafolicular, que gera anticorpos de ação rápida, explicou o Dr. Matthew Woodruff, Ph.D., instrutor de imunologia e reumatologia na Emory University School of Medicine, nos EUA.

A desvantagem é que esses anticorpos não são tão específicos e podem atingir os próprios tecidos do corpo. Essa desregulação da seleção de moléculas de defesa geralmente dura pouco e desaparece quando mais anticorpos específicos são produzidos e assumem o controle, mas, em alguns casos, esse processo pode elevar os níveis de anticorpos autodirecionados capazes de prejudicar os órgãos e tecidos do organismo. A pesquisa também sugere que, para pacientes com covid-19 prolongada, os mesmos autoanticorpos que impulsionam a resposta imune inicial são detectáveis ​meses após a infecção, embora não se saiba se essas moléculas imunes persistentes são responsáveis pelos sintomas mais duradouros da doença.

"Ter um vírus que causa hiperinflamação e danos aos órgãos é a receita para um desastre", afirmou a Dra. Sonia. "É uma receita para a produção de autoanticorpos e células T autorreativas que no futuro podem causar problemas, especialmente em pessoas cujo sistema imune é treinado de forma a causar autorreatividade", acrescentou ela.

Essa hiperinflamação pode resultar em complicações raras, mas graves, como a síndrome inflamatória multissistêmica em crianças e adultos, que pode ocorrer de duas a seis semanas após a infecção pelo SARS-CoV-2. Mas, mesmo nesses pacientes com covid-19 grave, as complicações específicas de alguns órgãos tendem a se resolver em seis meses, "sem sequelas significativas um ano após o diagnóstico", de acordo com os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos EUA. E embora a forma prolongada da doença possa durar um ano ou mais, os dados sugerem que os sintomas acabam desaparecendo na maioria das pessoas. O que não está claro é o motivo de a autoimunidade aguda desencadeada pela covid-19 se tornar um problema crônico em certos pacientes.

Predisposição à autoimunidade

O Dr. P. J. Utz, Ph.D., médico e professor de imunologia e reumatologia na Stanford University, nos EUA, afirmou que indivíduos que tiveram doenças autoimunes após a infecção pelo SARS-CoV-2 podem já ter predisposição à autoimunidade. Especialmente em patologias como diabetes tipo 1 e lúpus, os autoanticorpos podem aparecer e circular por mais de uma década no organismo de algumas pessoas antes de elas apresentarem qualquer sintoma clínico. “O sistema imunológico desses pacientes está preparado de tal forma que, se tiverem uma infecção (ou algum outro gatilho ambiental que talvez ainda não saibamos), isso é suficiente para empurrá-los para o limite, para que atinjam a autoimunidade total", comentou ele. O que não se sabe é se teriam evoluído com um verdadeiro quadro clínico se não tivessem sido infectados, questionou.

Ele também observou que a presença de autoanticorpos não significa necessariamente que alguém tenha uma doença autoimune; pessoas saudáveis ​​também podem ter autoanticorpos e todos os produzem com o avanço da idade. "Meu conselho é: não perca o sono por isso", disse.

O Dr. Jeffrey concordou que, embora esses estudos retrospectivos tenham mostrado um risco elevado de doença autoimune após a covid-19, esse risco parece ser relativamente pequeno.

"Como reumatologista atuante, não vejo uma procura exagerada de pacientes com doenças reumatológicas de início recente", disse ele. "Não é como se estivéssemos cheios de pacientes com problemas autoimunes, embora quase todos tenham apresentado covid-19. Portanto, se houver um risco, é muito pequeno."

O Dr. Jeffrey A. Sparks é subsidiado pelo National Institute of Arthritis and Musculoskeletal and Skin Diseases, pelo R. Bruce and Joan M. Mickey Research Scholar Fund e pelo Llura Gund Award for Rheumatoid Arthritis Research and Care. O Dr. P. J. Utz recebe financiamento de pesquisa da Pfizer. Os Drs. Sonia Sharma e Matthew Woodruff informaram não ter conflitos de interesses.

EClinicalMedicine. Publicado on-line em 09 de janeiro de 2023. Texto completo

medRxiv. Publicado on-line em 07 de outubro de 2022. Texto completo

medRxiv. Publicado on-line em 26 de janeiro de 2023. Texto completo

Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape

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