COMENTÁRIO

Diagnóstico e tratamento das encefalites autoimunes e paraneoplásicas

Dr. Renan Domingues; Dr. Márcio Vega, Dr. Carlos Giafferi e Dr. Carlos Senne

Notificação

29 de março de 2023

Colaboração Editorial

Medscape &

As encefalites autoimunes (EA) e as encefalites paraneoplásicas (EP) são doenças raras, mas tratáveis, que compartilham características clínicas com outros distúrbios, dificultando o diagnóstico correto. A maioria dos casos (> 70%) melhora com imunoterapia ou com intervenção cirúrgica quando há neoplasia, ressaltando a importância da identificação precisa da patologia.

O diagnóstico diferencial de EAs/EPs abrange uma variedade de causas de encefalites e encefalopatias, e inclui infecções, distúrbios metabólicos e tóxicos, distúrbios vasculares, neoplasias, doenças desmielinizantes e inflamatórios, doenças psiquiátricas, demências neurodegenerativas e distúrbios hereditários ou metabólicos raros.

Os critérios diagnósticos de EAs/EPs são:

a) Presença da síndrome neurológica com início subagudo (3 meses) com déficits cognitivos (memória de trabalho, memória de curto prazo), crises epilépticas ou sintomas psiquiátricos que sugiram envolvimento do sistema límbico;

b) Detecção de anticorpos específicos no soro e/ou no líquido cefalorraquidiano (LCR). Sempre que possível devem ser feitos testes para esses anticorpos no soro e no LCR, visto que os resultados podem ser negativos no soro e positivos em LCR, ou o contrário;

c) Identificação da neoplasia de base nos casos de síndromes paraneoplásicas.

As encefalites associadas a autoanticorpos são divididas em:

  • Encefalites causadas por anticorpos que agem contra antígenos de superfície, também chamadas de encefalites autoimunes. Podem ou não estar associadas a uma neoplasia de base.

  • Encefalites causadas por anticorpos que agem contra antígenos intracelulares, também chamadas de encefalites paraneoplásicas. Estão associadas a uma neoplasia de base em quase 100% dos casos.

Abordagem diagnóstica dos casos suspeitos

As EA/EP podem se manifestar de forma semelhante às encefalites límbica e de tronco encefálico ou ter envolvimento mais amplo do neuroeixo, por exemplo, na forma de encefalomielite. Os sintomas em geral têm um início agudo ou subagudo. Em mais da metade dos pacientes, a síndrome neurológica se desenvolve antes que a neoplasia tenha sido identificada.

Pacientes com suspeita de EA/EP devem ser submetidos a exames de neuroimagem, eletroencefalograma, exame de LCR e testes imunológicos para identificação dos biomarcadores específicos das doenças.

A ressonância magnética intracraniana é o exame de imagem mais relevante nesses casos. Os achados característicos incluem hipersinal de sinal em T2/FLAIR em regiões cerebrais afetadas (por exemplo, lobos temporais mediais e/ou tronco cerebral; regiões subcorticais e o cerebelo também são afetados). Pode haver realce variável pelo contraste. Tais achados não são específicos e resultados normais em ressonância magnética não excluem a possibilidade de EA/EP.

No eletroencefalograma são encontradas alterações inespecíficas tais como lentidão focal ou generalizada, atividade epileptiforme e descargas epileptiformes lateralizadas periódicas.

O exame do LCR deve ser realizado e deve incluir: contagem de células, proteínas e glicose; marcadores inflamatórios (índice IgG, bandas oligoclonais); teste de painel de anticorpos específicos para EA/EP; estudos virais pela ampla reação em cadeia da polimerase, incluindo vírus da herpes simples tipos 1 e 2 e vírus da varicela-zóster; culturas e citologia oncótica para excluir a possibilidade de metástase leptomeníngea. O teste RT-QuIC pode ser realizado para análise de presença de doenças priônicas.

SÍNDROMES CLÍNICAS

Encefalite límbica

A encefalite límbica é uma inflamação localizada nas estruturas do sistema límbico (por exemplo, hipocampo, amígdala, hipotálamo, giro do cíngulo, córtex límbico), embora os achados patológicos, clínicos e radiológicos muitas vezes não se limitem a essas áreas. A encefalite límbica é a principal manifestação das EAs/EPs.

Clinicamente, a encefalite límbica provoca alteração comportamentais e de humor, déficit de memória de curto prazo e outras alterações cognitivas, além de crises epilépticas focais disperceptivas. A disfunção hipotalâmica também pode cursar com hipertermia, sonolência e alterações endócrinas. Os sintomas geralmente evoluem ao longo de dias a semanas, mas apresentações mais indolentes ao longo de meses foram descritas.

A encefalite antirreceptor anti-NMDA é a causa mais frequente das encefalites límbicas e autoimune. Ela pode estar associada a detecção de um teratoma ovariano em aproximadamente 50% das pacientes do sexo feminino com mais de 18 anos. Pode, ainda, levar a peculiaridades clínicas, tais como um pródromo semelhante a um quadro viral e manifestações psiquiátricas proeminentes (ansiedade, agitação, comportamento incomum, alucinações, delírios, pensamento desorganizado, psicose). Outros sintomas são: distúrbios do sono, incluindo redução do sono no início da doença e hipersonia durante a recuperação; déficits cognitivos; redução do nível de consciência e estupor com características catatônicas; discinesia orofacial; movimentos coreoatetoides; distonia; rigidez; posturas opistotônicas; instabilidade autonômica (hipertermia, flutuações da pressão arterial, taquicardia, bradicardia, pausas cardíacas e, às vezes, hipoventilação que requer ventilação mecânica); disfunção de linguagem (comprometimento de produção de linguagem, mutismo, ecolalia).

Outras doenças que cursam com encefalite límbica também podem apresentar características clínicas peculiares:

  • Encefalite associada a anti-LGI-1: distúrbios cognitivos, confusão mental e crises epilépticas, sendo que os pacientes podem apresentar hiponatremia e distúrbio comportamental do sono REM;

  • Encefalite associada a anti-Caspr2: além da encefalite límbica, pode apresentar-se como uma síndrome de Morvan (neuromiotonia, déficit cognitivo e confusão mental, distúrbios do sono, instabilidade autonômica) e, em um pequeno número de pacientes, pode causar neuromiotonia isolada;

  • Encefalite antirreceptor GABA B1, GABA B2: encefalite rapidamente progressiva com crises epilépticas refratárias, estado de mal epiléptico e/ou epilepsia parcial contínua;

  • Encefalite anti-DPPX: os pacientes apresentam sintomas prodrômicos graves de perda de peso, diarreia ou outros sintomas gastrointestinais seguidos, dentro de alguns meses, pelo desenvolvimento de encefalite com hiperexcitabilidade central, como hiperecplexia, agitação, mioclonias, tremores e crises epilépticas.

Encefalite de tronco

A disfunção do tronco cerebral pode acontecer de forma isolada com sinais clínicos e achados patológicos (como infiltrados inflamatórios perivasculares e intersticiais, gliose e perda de neurônios) restritos ao tronco cerebral. O termo "rombencefalite" é usado quando o processo inflamatório afeta a parte inferior do tronco cerebral. Os sintomas e sinais mais frequentes de acometimento do tronco incluem alterações da motilidade ocular, opsoclonus, nistagmo, disfagia, disartria, surdez neurossensorial, déficit sensorial em território do trigêmeo, hipoventilação central e vertigem. Os sinais de comprometimento de tronco cerebral podem também ocorrer em associação com encefalite límbica, degeneração cerebelar ou encefalomielite.

Encefalomielite

A encefalomielite é caracterizada pelo acometimento de várias áreas do sistema nervoso, incluindo regiões límbico-temporais, tronco cerebral, cerebelo, medula espinhal, gânglios da base e sistema nervoso autônomo. A distribuição da doença e dos sintomas é variável. O tumor subjacente é a neoplasia pulmonar de pequenas células em aproximadamente 75% dos pacientes. Frequentemente a síndrome neurológica se desenvolve antes do diagnóstico do tumor devido ao pequeno tamanho da neoplasia.

Transtornos de movimento e ataxias

Os transtornos de movimento mais frequentes nas EAs/EPs são a ataxia cerebelar de progressão rápida, as síndromes hipercinéticas (coreia) e as mioclonias (incluindo a síndrome opsoclunus-mioclonus).

Três tipos de anticorpos associam-se predominantemente à disfunção cerebelar:

  • anti-Yo, direcionados contra proteínas expressas pelas células de Purkinje e pelas neoplasias de ovário e mama;

  • anti-Tr ou anti-Delta/receptor relacionado ao fator de crescimento epidérmico semelhante a Notch,associado à doença de Hodgkin e, menos comumente, ao linfoma não Hodgkin;

  • antirreceptor de glutamato metabotrópico 1, associado ao linfoma de Hodgkin.

A presença de outros anticorpos, como anti-Hu, anti-P/Q, anti-ANNA-2, anti-CRMP5 e anti-Ma, frequentemente está relacionada com sintomas envolvendo outras áreas do sistema nervoso e pode estar associada a disfunção cerebelar.

Síndrome da pessoa rígida

A síndrome da pessoa rígida pode ocorrer isoladamente ou como parte da encefalomielite. A síndrome da pessoa rígida paraneoplásica está associada a anticorpos antianfifisina e raramente a anticorpos antidescarboxilase do ácido glutâmico, sendo mais comum não haver neoplasia de base.

Painel de anticorpos

Os testes de anticorpos para diagnóstico de EA/EP devem ser realizados tanto no soro quanto no LCR. Resultados negativos não necessariamente excluem uma doença paraneoplásica ou autoimunitária. Resultados positivos falsos também podem ocorrer. Embora os títulos de anticorpos possam se correlacionar com o curso clínico, essa correlação é imperfeita e os títulos de anticorpos geralmente permanecem detectáveis ​​mesmo após a recuperação do paciente. Por tais motivos as decisões clínicas devem ser baseadas na avaliação clínica e não nos títulos de anticorpos.

Nas tabelas 1 e 2 são listados os anticorpos, as síndromes clínicas ligadas a eles e as neoplasias mais frequentemente associadas.

Tabela 1. Anticorpos presentes nas EPs

Anticorpo Síndrome clínica Neoplasias associadas
Antififisina Síndrome da pessoa rígida/ Encefalomielite CPPC*, câncer de mama
AGNA-1 (antiglial nuclear) Síndrome de Lambert-Eaton/Polineuropatia/Degeneração cerebelar CPPC
ANNA-1 (HU) Encefalomielite incluindo encefalite cortical, límbica e do tronco cerebral; degeneração cerebelar; mielite; neuronopatia sensorial; e/ou disfunção autonômica CPPC
ANNA-2 (RI) Degeneração cerebelar, encefalite do tronco cerebral, opsoclonia-mioclonia Câncer ginecológico, CPPC
PCA-1 (YO) Degeneração cerebelar Câncer ginecológico
GFAP Meningoencefalite Neoplasia sistêmica (um terço dos casos)
PCA-2 Neuropatia periférica, ataxia cerebelar, encefalopatia CPPC
PCA-Tr Degeneração cerebelar paraneoplásica e encefalopatia límbica Linfoma de Hodgkin
CV2 (= CRMP-5) Encefalomielite, degeneração cerebelar, coreia, neuropatia periférica CPPC, timoma
GAD Encefalomielite, degeneração cerebelar, opsuclonus-mioclonus CPPC, timoma
*CPPC = Carcinoma pulmonar de pequenas células

Tabela 2. Anticorpos presentes nas EAs

Anticorpo

Síndrome clínica

Neoplasias associadas

GLUR1

Ataxia cerebelar, muitas vezes com alterações cognitivas, convulsões, sintomas psiquiátricos

Linfoma de Hodgkin ou ausência de tumor

AMPA1/ AMPA2

Encefalite límbica, distúrbios psiquiátricos

70% dos casos (tumores sólidos)

GABA-B1 e B2

Convulsões, encefalite límbica

50% dos casos (CPPC)

LGI1

Encefalite límbica, convulsões, crises distônicas fácio-braquiais, hiponatremia

5-10% (timoma)

CASPR2

Síndrome de Morvan, encefalite límbica, dor neuropática, neuropatia periférica, disfunção autonômica, ataxia cerebelar, neuromiotonia isolada

Geralmente não está associado a neoplasia, raros casos de timoma

NMDA

Psicose, insônia, distúrbios de memória e comportamento, convulsões, discinesias e disfunção autonômica

Presença de teratoma ovariano dependente da idade; raramente, outros tumores em pacientes mais velhos e/oou homens

GLUR2

Ataxia cerebelar

Raros casos com neoplasias

DPPX

Encefalopatia com hiperexcitabilidade do sistema nervoso central, hiperplexia, mioclonia, tremores, perda de peso, diarreia ou sintomas gastrointestinais

Rara associação com linfoma de células B

Princípios gerais do tratamento

O início da terapia imunossupressora não deve aguardar o diagnóstico de neoplasia ou a identificação de anticorpos em pacientes com EA/EP quando outras etiologias tiverem sido descartadas e na ausência de contraindicações. Os resultados dos anticorpos devem ser usados ​​para refinar ou alterar a estratégia de tratamento.

Não há estudos controlados de imunoterapia em pacientes com EA/EP. Os pacientes com síndromes paraneoplásicas têm maior dano neuronal e, consequentemente, pior prognóstico. A identificação e o tratamento precoce do tumor e o uso de imunoterapia (pulsoterapia com glicocorticoides, imunoglobulina intravenosa, plasmaferese, ciclofosfamida ou rituximabe) são as alternativas mais efetivas nestes casos. Em pacientes com EA o tratamento tende a ser muito mais eficaz pela ausência de lesões neuronais definitivas e é feito sobretudo com substâncias imunossupressoras.

As crises epilépticas devem ser tratadas agressivamente com medicamentos anticonvulsivantes durante a doença aguda e, em geral, não há necessidade de terapia medicamentosa antiepiléptica de longo prazo.

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