COMENTÁRIO

Possível associação entre medicamentos ‘queridinhos no TikTok’ e câncer de tireoide

Dra. Rachel Pessah-Pollack

24 de março de 2023

A popularidade das hashtags #Ozempic e #ozempicweightloss nas mídias sociais e o foco da grande mídia nas celebridades que recorrem ao Ozempic (semaglutida) para perder peso têm causado um aumento progressivo nas demandas por esse novo medicamento.

Dra. Rachel Pessah-Pollack

Esses pedidos são acompanhados por preocupações e dúvidas sobre riscos potenciais, como a seguinte mensagem, que recebi recentemente de um de meus pacientes: “Dra. Raquel, eu vi os alertas. Este medicamento vai me fazer ter câncer de tireoide? Por favor, me explique!”.

Vamos ao que sabemos até o momento, inclusive dados de estudos recentes, e como podemos orientar nossos pacientes sobre esse assunto tão polêmico.

Uso de agonistas do receptor de GLP-1 para obesidade

Como endocrinologistas, temos extensa experiência com agonistas do receptor do peptídeo 1 semelhante ao glucagon (GLP-1), como a semaglutida, para o tratamento do diabetes tipo 2 e agora recentemente como medicamentos para perda ponderal.

Grandes ensaios clínicos documentaram os benefícios dessa classe de medicamentos não apenas para a redução de peso, mas também para a saúde cardiovascular e renal em pacientes com diabetes mellitus. Os medicamentos injetáveis por via subcutânea atuam promovendo a secreção de insulina, retardando o esvaziamento gástrico e suprimindo a secreção de glucagon, com baixo risco de hipoglicemia.

A Food and Drug Administration (FDA) dos EUA aprovou a injeção diária do agonista de GLP-1 liraglutida para perda ponderal em 2014 e a injeção semanal de semaglutida para controle regular do peso em 2021, para pacientes com índice de massa corporal (IMC) ≥ 27 kg/m2 com pelo menos uma complicação relacionada ao peso ou IMC ≥ 30 kg/m2.

O nome comercial da semaglutida aprovada para perda ponderal é Wegovy, e sua dose é ligeiramente maior (até 2,4 mg/semana) do que a do Ozempic (até 2,0 mg/semana), que é a semaglutida aprovada para diabetes tipo 2.

Em ensaios clínicos para perda ponderal, os dados mostraram uma mudança média no peso corporal de quase 15% no grupo de semaglutida na 68ª semana em comparação com o grupo de placebo, o que é muito impressionante, particularmente em comparação com outros medicamentos orais de uso regular para a perda ponderal aprovados pela FDA.

O mais novo agente sintético de ação dupla é a tirzepatida, que tem como alvo o GLP-1, mas também é um agonista do polipeptídeo insulinotrópico dependente de glicose (GIP). A injeção subcutânea semanal foi aprovada em maio de 2022 como Mounjaro para o tratamento de diabetes tipo 2 e produziu uma perda ponderal ainda maior do que proporcionada pela semaglutida em ensaios clínicos. Atualmente, a tirzepatida está sendo estudada em ensaios clínicos para obesidade e está sob revisão acelerada pela FDA para a indicação de perda ponderal.

Por que a preocupação com o câncer de tireoide?

Quando os agonistas do GLP-1 foram aprovados pela FDA, havia um aviso no rótulo dos produtos para não usar essa classe de medicamentos em pacientes com história pessoal ou familiar de carcinoma medular de tireoide ou síndrome de neoplasia endócrina múltipla tipo 2. Esse aviso era baseado em dados de estudos com animais.

As células pancreáticas humanas não são as únicas células que expressam receptores de GLP-1. Esses receptores também são expressos por células parafoliculares (células C) da tireoide, que secretam calcitonina e são as células envolvidas no carcinoma medular de tireoide. Em roedores, foi observado um aumento proporcional à dose e à extensão do tratamento na incidência de tumores originários de células C da tireoide. A mesma relação não foi demonstrada em macacos. Os seres humanos têm muito menos células C do que os ratos, e as células C humanas têm uma expressão muito baixa do receptor de GLP-1.

Há mais de uma década, um estudo que examinou o banco de dados da FDA de eventos adversos relatados constatou aumento do risco de câncer de tireoide em pacientes tratados com exenatida, outro agonista do GLP-1. O sistema de notificação não foi projetado para distinguir subtipos de câncer de tireoide.

Diversos estudos subsequentes não confirmaram essa relação. O ensaio clínico LEADER analisou a liraglutida em pacientes com diabetes tipo 2 e não mostrou nenhum efeito da ativação do receptor de GLP-1 nos níveis séricos de calcitonina humana, proliferação de células C ou tumores malignos com origem em células C. Da mesma forma, uma grande metanálise em pacientes com diabetes tipo 2 não encontrou um risco estatisticamente maior de câncer de tireoide com liraglutida, e nenhum tumor da tireoide foi relatado com exenatida.

Dois bancos de dados administrativos de planos de saúde comerciais dos EUA (um estudo de coorte retrospectivo e um estudo de caso-controle aninhado) compararam pacientes com diabetes tipo 2 que estavam tomando exenatida versus outros medicamentos antidiabéticos e descobriram que a exenatida não estava significativamente associada a um aumento do risco de câncer de tireoide.

E uma metanálise recente de 45 estudos não mostrou efeitos significativos na ocorrência de câncer de tireoide com agonistas do receptor de GLP-1. É importante ressaltar que a metanálise constatou um aumento do risco de distúrbios gerais da tireoide, embora não houvesse nenhum achado estatisticamente significativo apontando para uma tireoidopatia específica.

Diferentemente de estudos anteriores, um novo estudo do sistema de saúde francês em todo o país forneceu dados mais recentes sugerindo um aumento moderado do risco de câncer de tireoide em uma coorte de pacientes com diabetes tipo 2 que faziam uso de agonistas de GLP-1. O aumento no risco relativo foi observado para todos os tipos de câncer de tireoide em pacientes que usavam agonistas do receptor de GLP-1 há um a três anos.

Um comentário que acompanhou o estudo, de Caroline Thompson e Til Stürmer, fornece uma perspectiva sobre as limitações potenciais desta pesquisa, como o viés de detecção, pois os resultados do estudo se concentraram apenas nos dados estatisticamente significativos. Também foram discutidas as limitações do desenho de caso-controle, problemas com a classificação do tipo de tumor (indisponibilidade de exames anatomopatológicos) e a incapacidade de fazer ajustes por histórico familiar e obesidade, que é um fator de risco isolado para câncer de tireoide. Também não houve ajustes por exposição à radiação de cabeça/pescoço.

Embora este estudo tenha achados importantes a serem considerados, ele merece uma pesquisa mais aprofundada, com estudos futuros relacionando suas informações aos dados de registros de tumores, antes que uma mudança seja feita na prática clínica.

Nenhuma relação clara foi estabelecida entre os agonistas do receptor de GLP-1 e o câncer de tireoide em humanos. Vários fatores de confusão limitam os dados. Os estudos geralmente não especificam o tipo de câncer de tireoide e agrupam o carcinoma medular (a forma mais rara) com o carcinoma papilífero.

Existe um viés de detecção no qual a perda ponderal torna os nódulos mais visíveis no pescoço entre aqueles tratados com agonistas de GLP-1? E/ou os pacientes tratados com agonistas de GLP-1 estão sendo rastreados mais rigorosamente para nódulos e/ou câncer tireoidianos?

Como orientar nossos pacientes e responder aos questionamentos?

Os vídeos do TikTok podem continuar, os rumores das celebridades podem aumentar e nós, como médicos, continuaremos a analisar os dados do mundo real com ensaios clínicos controlados randomizados para nortear nossas decisões e orientar nossos pacientes.

É prudente orientar os pacientes a evitar o uso dessa classe de medicamentos se tiverem história pessoal ou familiar de carcinoma medular de tireoide ou síndrome de neoplasia endócrina múltipla tipo 2, em particular. O câncer de tireoide continua sendo um desfecho raro, e os agonistas do receptor de GLP-1 continuam sendo uma opção de tratamento muito importante e benéfica para determinados pacientes.

Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape

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