COMENTÁRIO

Além de rude, comentar sobre o peso dos pacientes pode ser perigoso

Dra. Sylvia Gonsahn-Bollie

20 de março de 2023

"Parabéns pelo bebê. Você está ótima!", cumprimentei animadamente a minha colega de turma. Foi no início do meu segundo ano de faculdade.

Dra. Sylvia Gonsahn-Bollie

Naquela pequena faculdade para mulheres, a fofoca do semestre anterior tinha sido sobre a nossa colega de classe, S.* Antes muito magra, ela tinha visivelmente ganhado muito peso em poucos meses. Os rumores diziam que S. estava grávida e havia dado à luz durante as férias de verão. Ocupada com minha graduação em biologia antes de cursar medicina, era primeira vez que eu ouvia as novidades. Então, quando a vi no corredor, de volta ao seu peso anterior, fiquei feliz por ela.

De forma bem extrovertida, comentei sobre o bebê e a sua aparência. Mas me arrependi assim que as palavras saíram da minha boca.

A turma ficou estranhamente silenciosa quando S. ruborizou e indagou: "O quê?!" Instantaneamente eu entendi que os boatos não eram verdade.

Felizmente, naquele momento abriram a sala de aula e nós entramos. Caramba! Depois da aula, S. perguntou se podíamos conversar. Ela explicou que teve um tumor na tireoide e foi difícil se adaptar ao tratamento, o que causou flutuações em seu peso. Ela não havia engravidado.

Essa interação constrangedora foi a primeira vez que alguém na faculdade mencionou diretamente o peso de S., embora ela suspeitasse que as pessoas vinham comentando a respeito. Nós nos tornamos amigas rapidamente, mesmo após este início conturbado. Perdemos o contato após a faculdade, mas S. me ensinou uma lição inestimável em relação a inferências sobre o peso das pessoas: pergunte antes de fazer suposições.

Agora, anos depois, como internista e especialista em obesidade, esta lição continua sendo reforçada diariamente.

No cotidiano, comentários sobre o peso podem ser encarados como grosseiros. No exercício da medicina, entretanto, as suposições sobre a forma física são um tipo de preconceito, que pode levar ao estigma de peso e até mesmo ser perigoso para o atendimento prestado pelos profissionais de saúde.

Vamos discutir a influência enganosa do preconceito de peso no atendimento de saúde através de duas frases comumente usadas e, a seguir, olhar para algumas soluções para lidar com o preconceito de peso no atendimento pelos profissionais de saúde, individual e coletivamente.

Premissas comuns de preconceito de peso

"Parabéns, você emagreceu!" Ao aferir os sinais vitais, você percebe que um paciente com obesidade teve uma mudança de peso importante e o parabeniza ao entrar no consultório. Infelizmente, a perda ponderal ocorreu por uma acentuada diminuição da ingestão depois da perda de um ente querido — ou seja, não foi uma perda de peso saudável. Um dos efeitos adversos do preconceito de peso é a inferência de que a perda ponderal é sempre positiva, especialmente nas pessoas mais pesadas. Esta é uma premissa perigosa. Vamos lembrar que o corpo favorece o armazenamento de gordura, daí a razão pela qual a "perda de peso involuntária" é um quadro clínico reconhecido que deve ser investigado. Temos de ter cuidado para não comemorar a perda ponderal "a qualquer preço", como por meio de dietas da moda que não demonstraram melhorar os desfechos de saúde.

Além disso, os pacientes que perdem peso rapidamente (mais de 1,8 a 3,6 kg/mês) exigem acompanhamento e avaliação mais rigorosos das causas secundárias de perda ponderal. Eles podem perder peso rapidamente com os novos medicamentos antiobesidade, mas os médicos ainda assim devem assegurar que seja feito o rastreamento adequado da manutenção da saúde e continuar atentos para as causas secundárias de alteração do peso.

"Você já tentou perder peso?" Três vezes: esse é o número de vezes que Chanté Burkett foi ao médico com queixa de dor, dilatação e rigidez no estômago. Ela foi orientada a continuar tentando perder peso, o que seguiu com disciplina. Mas o abdome de Chanté continuou aumentando e suas preocupações não foram consideradas. Um atendimento de emergência e uma tomografia computadorizada revelaram que o excesso de "gordura" abdominal de Chanté era um cistadenoma mucinoso de quase 6 kg. Infelizmente, casos como os dela não são eventos isolados. O preconceito de peso pode causar a ancoragem em um diagnóstico, impedindo a análise de outras possibilidades diagnósticas. Pior ainda, a ancoragem pode levar à intervenção errada, como a prescrição de perda ponderal para um suposto aumento da adiposidade em vez da solicitação do exame apropriado.

Também é essencial saber que, mesmo se uma pessoa tiver obesidade, a perda ponderal não é a solução de todos os seus problemas clínicos. Mesmo que a perda ponderal seja útil, podem ser necessários outros tratamentos ainda mais urgentes. Dizer para uma pessoa com obesidade que apresenta uma queixa aguda para "só perder peso" é comparável a dizer a um paciente com doença coronariana, 80% de oclusão de vasos e precordialgia para continuar fazendo uma dieta com baixo teor de gordura. Nos dois casos, você precisa investigar a questão aguda de forma adequada e, mais tarde, se concentrar no tratamento da doença crônica.

Como reduzir o preconceito de peso clínico?

Pergunte, não suponha. As informações da balança são meros dados. Em vez de julgar esses números positiva ou negativamente e criar uma história, faça perguntas ao paciente. Uma maneira imparcial de começar a conversa é dizer: "Bom te ver. Você parece [adjetivo positivo da sua escolha]. Como você tem passado?” Espere até que a aferição dos sinais vitais tenha terminado para falar objetivamente sobre o peso, a menos que o próprio paciente inicie o assunto antes disso ou que sua queixa principal tenha relação com o peso.

Solicite os exames necessários para avaliar o peso. O peso é o sinal vital que as pessoas apresentam externamente, por isso pensamos que podemos interpretá-lo facilmente sem nenhuma avaliação adicional. No entanto, resista à vontade de analisar os dados da balança fora de contexto. Manter a mente aberta ajuda a evitar a ancoragem e a perda de indícios críticos na anamnese.

Trate as alterações do peso com eficácia. Às vezes, há indicação de prescrever a perda ponderal como parte do plano terapêutico. No entanto, lembre-se que a perda ponderal não é simplesmente "calorias ingeridas × calorias gastas"; a obesidade é uma doença clínica complexa que requer uma abordagem terapêutica multimodal. Como médicos, temos acesso às mais poderosas ferramentas de perda ponderal. Infelizmente, o preconceito de peso contribui para a baixa prescrição de medicamentos metabólicos (também conhecidos como "medicamentos antiobesidade"). Além disso, o preconceito de peso sistêmico impede a cobertura dos medicamentos antiobesidade pelos planos de saúde. A lei para tratar e reduzir a obesidade nos EUA (Treat and Reduce Obesity Act) foi levada ao congresso local para ajudar a melhorar o acesso aos medicamentos antiobesidade que transformam a vida das pessoas com este quadro clínico.

Reconheça o seu preconceito. Nossas experiências nos tornam todos suscetíveis ao preconceito. O Weight Implicit Association Test da Harvard University é uma ferramenta gratuita e útil para avaliar seu nível de preconceito de peso. Eu o faço todo ano para garantir a objetividade do meu trabalho.

Para lidar com o viés de peso é preciso ir além do nível individual.

Todo o sistema de atendimento de saúde precisa melhorar nos seguintes aspectos:

Linguagem

Usar uma linguagem centrada nas pessoas. Por exemplo, "as pessoas não são obesas, elas estão obesas".

Acesso

As unidades de saúde devem ser confortáveis e acessíveis para pessoas de todos os tamanhos. Além disso, são necessárias melhorias no acesso aos serviços que o atendimento integral da obesidade exige, como medicamentos antiobesidade, procedimentos bariátricos e cirurgia bariátrica, atendimento de saúde mental, especialistas em aptidão física e nutrição, orientadores em saúde etc.

Orientação

Estudantes de medicina e residentes precisam aprender o que há de mais novo na ciência da obesidade e saber como tratar a obesidade de forma eficaz, além de reconhecer e desarticular as ferramentas tendenciosas. Dados recentes mostraram que alguns de nossos métodos de rastreamento, como a verificação do índice de massa corporal, têm um viés inerente. É hora nos concentrarmos em usar ferramentas diagnósticas aprimoradas e tratamentos personalizados.

Estamos em um momento crucial para a compreensão científica da regulação do peso corporal e da obesidade como uma patologia. O preconceito de peso clínico está arraigado principalmente em um tipo de ciência falha, influenciada por normas culturais tendenciosas e outras formas de discriminação, como o preconceito racial e de gênero. Devemos ir além das suposições para dar aos nossos pacientes o atendimento individualizado ideal de que necessitam. Então, da próxima vez que você observar uma mudança de peso, em vez de comentar sobre isso, diga: "Bom te ver! Como você tem passado?”

S*: a inicial foi alterada para preservar o anonimato.

Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape

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