Se um paciente se recusar a ser atendido por um médico devido ao gênero ou à raça do profissional, deve ser feita a vontade do paciente?
Em um comentário publicado recentemente pelo Medscape, intitulado “‘Não, você não pode ser atendido por outro médico!’ É preciso tolerância zero com o racismo dos pacientes”, o Dr. Cleveland Francis Jr. defende que não.
O Dr. Cleveland, que é negro, é um cardiologista recém-aposentado que exerceu a medicina por 50 anos. Atualmente, ele presta consultoria sobre diversidade, equidade e inclusão para o Inova Heart and Vascular Institute nos Estados Unidos.
No artigo, Dr. Cleveland conta que, em uma certa ocasião, quando ainda era estudante de medicina, se preparou para realizar a anamnese e o exame físico de um paciente, que no momento do atendimento se recusou a falar com ele e pediu para ser atendido por um "médico branco".
"Lembro-me da dor e do constrangimento como se tivesse sido ontem", ele escreveu.
O artigo, especialmente o título, gerou fortes reações. Cerca de 500 leitores comentaram sobre o texto. "O título do meu artigo pode soar [um tanto] ríspido", disse o Dr. Cleveland, "mas, na verdade, uma simples conversa com o paciente geralmente resolve esses problemas. A diferença é que antigamente o silêncio reinava e a vontade do paciente era atendida."
Os profissionais de saúde "esperam ser tratados com respeito", escreveu o médico na sua conclusão. Os leitores concordaram com essa afirmação, mas debateram se, desconforto de um paciente diante de um médico de outro gênero ou raça seria sempre “fruto de preconceito".
Alguns ponturaram que a dificuldade em compreender o sotaque de um médico, por exemplo, seria uma razão legítima para solicitar que outro profissional conduza o atendimento.
Problemas de compreensão
"Se tenho dificuldade para compreender um médico porque o seu sotaque é muito carregado ou porque o aparelho auditivo não está sendo suficiente, preciso pedir para falar com outro médico", comentou um leitor.
Outra leitora ponderou: “Meus pais idosos, ao serem atendidos em centros de atenção primária, trocavam de médico com frequência nos últimos anos de vida, principalmente devido a barreiras linguísticas encontradas [durante atendimentos] com médicos estrangeiros. Por causa da perda auditiva progressiva, eles simplesmente não conseguiam compreender esses profissionais."
"É importante lembrar que existe uma lei que versa sobre os direitos do paciente [nos EUA]", observou ela, "e a introdução [dessa lei] afirma: ‘O paciente tem direito a um atendimento seguro, atencioso e respeitoso, [sendo este] fornecido de acordo com as suas crenças'."
Uma ex-enfermeira-chefe acrescentou: "Se o [motivo do] pedido de mudança [de médico] fosse concreto (por má comunicação, suposta incompetência, histórico de experiência traumática etc.), eu moveria montanhas para atender a essa solicitação. Entretanto, na minha humilde opinião, a ideia de honrar a preferência do paciente não precisa necessariamente incluir toda uma reorganização visando acomodar racismo e machismo."
Preconceito contra médicas e enfermeiros
Muitos leitores comentaram como lidaram de forma bem-sucedida quando um paciente solicitou um médico do sexo oposto.
Uma médica explicou como contatou o médico sênior que trabalhava com ela para organizar uma troca de pacientes, acrescentando: "Concordo que a discriminação racial deve ser desestimulada."
Da mesma forma, um enfermeiro que trabalha no setor de tratamento intensivo comentou: "Ao longo de 13 anos, poucas pacientes do sexo feminino (geralmente idosas) pediram para ser atendidas por uma enfermeira. Sempre busquei garantir que isso fosse possível".
No entanto, uma idosa disse que, no início, ela teve “um certo preconceito com [a ideia de] ser tocada por um enfermeiro” e também se sentiu “constrangida". "Em seguida, eu tentei relaxar e deixá-lo fazer seu trabalho. Ele foi um dos enfermeiros mais compassivos, gentis e sensíveis que já me atenderam."
"Acho que em alguns casos", observou ela, "algumas mulheres podem ter vivido abusos por homens, seja sexual ou psicológico", mas, em outros casos, "é apenas uma preferência pessoal, não um preconceito".
Um médico assistente que trabalhava em um pronto-socorro rural contou que "havia apenas dois médicos nos turnos da tarde e da noite, geralmente dois homens brancos".
"Às vezes, é preciso lidar da melhor maneira possível com quem estiver disponível e, ao fazer isso", disse ele, "os pacientes podem acabar se surpreendendo positivamente".
Não leve para o lado pessoal, siga em frente
"Se um paciente não quer ser atendido por mim por qualquer motivo, prefiro não atendê-lo", foi uma frase dita por muitos leitores.
Os pacientes "devem se sentir à vontade com seu médico, mesmo que esse médico não seja eu", escreveu um leitor.
Uma médica entrou na discussão e disse: "Frequentemente, os idosos do sexo masculino não querem ser atendidos por mim. Apesar de ser irritante de muitas formas, reconheço que é uma escolha do paciente, respiro fundo e passo para o próximo atendimento".
"Há muito mais pacientes que pedem especificamente para serem atendidos por mim, então não perco tempo e energia ficando incomodada com aqueles que recusam [o meu atendimento]."
Da mesma forma, uma profissional de saúde mental, e ocasionalmente paciente, escreveu: "Se algum paciente me disser que prefere [ser atendido por] um homem ou por alguém de uma determinada raça, religião ou qualquer outra característica, eu não levo para o lado pessoal".
Uma médica de origem hispânica disse: "Sinceramente, se um paciente não quiser ser atendido por mim devido à minha raça, por mim tudo bem. Os pacientes precisam se sentir à vontade comigo para que o vínculo seja terapêutico e eficaz", disse ela.
"Forçar o paciente a ser atendido por mim é intensificar ainda mais uma ofensa a MIM! Sem falar no aumento da carga de trabalho, já que [o atendimento a] esse paciente exigirá muito mais tempo."
De forma semelhante, um médico ásio-americano comentou: "Existem pacientes que não querem ser atendidos por mim devido à minha etnia. Apesar disso, acredito fortemente que isso deve ser sempre uma escolha do paciente. Seja qual for o motivo, não force o paciente a ser atendido por você em nome da diversidade, da equidade, da inclusão ou por qualquer outro motivo que te sensibilize. Deixe-o seguir em frente".
Preconceito versus preferência
Um médico, referindo-se à experiência do Dr. Cleveland, sugeriu que "talvez houvesse uma oportunidade de conversar sobre esse preconceito diretamente com o paciente. Caso isso não fosse possível, o residente sênior ou o médico assistente deveriam ser informados e incluídos no processo [de decisão] e na discussão [sobre a escolha]".
"Se eu fosse rejeitado por um paciente por qualquer motivo", comentou outro médico, "eu aceitaria educadamente e esperaria que meu colega conscientizasse o paciente sobre o seu erro com muito cuidado".
"Pedir para um enfermeiro ou uma enfermeira perguntar ao paciente qual a sua necessidade em termos de estilo [de atendimento] sem mencionar raça, gênero, etc. pode ajudar a identificar se os problemas subjacentes são baseados na incompatibilidade de estilo ou de necessidades, ou [se é um caso] de preconceito", sugeriu um leitor.
Um médico comentou: "Geralmente garantimos aos pacientes que somos profissionais e sequer pensamos em situações que eles podem considerar desconfortáveis, nem percebemos que o nosso conforto não [necessariamente] se traduz no deles."
Talvez seja necessário usar outra estratégia
"Tendo sido alvo de preconceito muitas vezes", disse um leitor, "entendo a dor que isso causa. Infelizmente, uma política contra o preconceito, embora seja boa ideia, não irá evitar a discriminação por parte do paciente. Esse é um problema social muito maior. No entanto, podemos pelo menos dizer a eles que isso não está certo. Por outro lado, eu não gostaria de atender um paciente que tivesse preconceito contra mim e me tratasse com desdém".
"Não gosto de políticas de tolerância zero em nenhuma situação. Elas são muito categóricas", comentou outro leitor. "Às vezes, existem razões [para essas escolhas] e temos de ouvir nossos pacientes para saber o porquê. Não acho que uma política de tolerância zero resolverá o problema do racismo."
"Em vez de tentar ensinar as pessoas a não serem babacas", outro leitor sugeriu, "talvez seja mais fácil oferecer aulas eletivas para médicos e funcionários que se veem em risco de sofrer preconceito, proporcionando-lhes um conjunto de ferramentas e estratégias para que possam responder à discriminação [sofrida] em um dado momento, depois processar emocionalmente o evento e denunciar as ocorrências mais graves por meio de canais específicos".
Outro leitor concordou e escreveu: "Embora nós, como médicos, mereçamos e precisemos de proteção, também somos chamados a agir com compaixão. Portanto, em vez de pedir por um sistema de 'tolerância zero', seja para pacientes ou para médicos, poderíamos estimular nossos sistemas de saúde a fornecerem orientação, apoio e mediação a qualquer parte que se sinta prejudicada ou que sinta que não está sendo bem atendida. Esse modelo incluiria, por exemplo, apoio para médicos que foram vítimas de preconceito e agressões".
Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape
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Citar este artigo: 'Tolerância zero' com o preconceito do paciente: exagero? - Medscape - 16 de março de 2023.
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