No congresso do American College of Cardiology (ACC), organizado este ano em parceria com o World Congress of Cardiology (WCC), dois artigos foram reservados para a sessão de encerramento da apresentação dos ensaios clínicos mais recentes: “LIVE-HCM: Vigorous Exercise Not Associated With Increased Risk of Cardiac Events in Patients With HCM” e “Return-to-play for elite level athletes with sudden cardiac death predisposing genetic heart diseases”.
Nas últimas semanas, escutei pessoas a favor e contra liberação da atividade física para portadores de cardiodesfibridor implantável (CDI). Um evento on-line do Departamento de Ergometria, Exercício, Cardiologia Nuclear e Reabilitação Cardíaca (DERC) da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) debateu sobre retorno à prática de exercícios por estes pacientes. Ainda não chegamos a uma conclusão definitiva, por isso esperamos ansiosamente pelos resultados de novos estudos.
O estudo LIVE-HCM mostrou o acompanhamento de 1.660 pacientes portadores de cardiomiopatia hipertrófica, a maioria referenciados por associações de pacientes ou autocadastrados na pesquisa. A coleta de dados seguiu de maio de 2015 a fevereiro de 2019 em cinco países. No acompanhamento, os pacientes foram avaliados de seis em seis meses. O objetivo foi comparar se as pessoas que declararam praticar exercícios físicos de alta intensidade, ou até mesmo competitivo, apresentavam mais eventos cardiovasculares do que as sedentárias ou que afirmaram fazer esforços de intensidade leve a moderada.
Dos 699 pacientes no grupo de exercício intenso, 33 atingiram os desfechos primários (parada cardíaca, síncope, choque apropriado ou morte) versus 77 dos 961 pacientes no grupo de controle. O acompanhamento médio foi de 40 meses e os resultados foram semelhantes entre os grupos.
O segundo estudo fez uma busca retrospectiva de prontuários de 76 atletas de elite assintomáticos ou oligossintomáticos que retornaram à atividade física mesmo após contraindicação por critérios médicos. Eles tinham cardiomiopatia hipertrófica (52%) ou síndrome do QT longo (quase 25% dos pacientes), e havia também alguns participantes com cardiopatia arritmogênica de VD e outras doenças (< 25% do total de pacientes). Destes, 30% eram portadores de CDI. Neste grupo, aconteceram apenas três eventos (duas síncopes e uma terapia do CDI) no período de sete anos.
Os dois estudos são aparentemente semelhantes, mas, enquanto o LIVE-HCM registrou menos eventos, estes foram mais graves e afetaram uma população com doença cardiovascular mais grave. Neste estudo, 45% dos pacientes usavam CDI, e uma parcela considerável já tinha sido submetida a miectomia cirúrgica. Mais pacientes no grupo dos que não praticavam exercícios intensos tinham obstrução de via de saída e haviam passado por miectomia cirúrgica — talvez a limitação do exercício tivesse causa funcional, e a prescrição de atividade física para esse grupo não seria possível ou desejada. Não foi um estudo randomizado, mas um retrato de como esses pacientes apresentam diversos fenótipos e quais as suas características.
Restam algumas dúvidas
Pacientes com CDI estão mais protegidos de eventos cardiovasculares? Mais pacientes com o dispositivo receberam choques apropriados no grupo de exercício não competitivo em comparação ao grupo competitivo (ambos praticando exercício vigoroso) mas sem diferença associada a exercício intenso ou não intenso. Isso não é provável, e também não justifica essa linha de raciocínio com o que temos hoje. A incidência de morte, no entanto, também teve diferença não significativa, desfavorecendo o grupo que praticava exercício competitivo. Fibrose acima de 15% foi encontrada em apenas cerca de 7% dos pacientes, enquanto três quartos deles não apresentavam o problema. Talvez isso possa caracterizar um grupo menos grave à luz das recentes diretrizes de morte súbita e de tratamento de cardiomiopatia hipertrófica.
Um contraponto aos que hoje seguem as diretrizes (que contraindicam atividade competitiva ou intensa para pessoas com cardiomiopatia hipertrófica) seria a inexistência de evidência indicando aumento do risco de eventos cardiovasculares. Temos inferência de maior risco quando pensamos na fisiopatologia do exercício. Isquemia por maior consumo de oxigênio é frequente, e podemos encontrar diversos estudos em maratonistas com elevação de troponina causada pelo exercício. Pensando no paciente com miocárdio hipertrofiado — no qual a angiogênese causa um estado de isquemia crônica —, a magnificação desse cenário pode ser deletéria. Um contraponto é que o treinamento crônico leva a hipertonia vagal, controle de sintomas e redução de mortalidade em longo prazo em pessoas com cardiopatia isquêmica. Isso poderia ser protetor de alguma forma, mas é um exercício operacional randomizar pacientes para atividades intensas que sejam iguais em todos os seus componentes. Algumas atividades dificilmente podem ser classificadas como de resistência ou aeróbicas, caindo no grupo misto. E a escolha do exercício deve ser feita levando em consideração a preferência do paciente, criando um cenário onde cada atividade tem um perfil específico.
Em resumo, acredito que ainda vamos encontrar o grupo de pacientes para o qual o exercício é seguro, na maioria dos casos utilizando longos registros como esse. Talvez a avaliação genética e o acompanhamento da evolução da fibrose durante o exercício sejam as próximas etapas nessa decisão. Aguardemos os próximos anos.
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Citar este artigo: Exercícios em cardiomiopatia hipertrófica: chegou a hora de flexibilizar? - Medscape - 15 de março de 2023.
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