Por causa do elevado número de casos e mortes por dengue em 2022, ano em que foram notificados 1.450.270 casos confirmados (um aumento de 162,5% em relação ano anterior) e 1.016 mortes pela doença, [1] pesquisadores e médicos receiam um agravamento dessa epidemia no Brasil em 2023. O país nunca havia registrado tantas mortes pela doença. Até então, o ano com mais vidas perdidas por dengue tinha sido 2015, com 986 óbitos e 1.649.008 casos registrados.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, o Centro Estadual de Vigilância em Saúde emitiu, em 23 de janeiro, um comunicado de risco após verificar aumento de 59% nos números de casos de dengue nas primeiras três semanas de janeiro em relação ao mesmo período de 2022. [2] A incidência da doença ao longo do ano costuma atingir valores máximos depois do verão, por volta de abril e maio.
De modo geral, o país oferece condições propícias ao aumento dos casos: muitas chuvas e temperaturas elevadas nesta época do ano, grande quantidade de resíduos sólidos que se tornam criadouros do mosquito transmissor e dificuldades no controle de vetores. “Isso se soma a problemas crônicos [encontrados] no enfrentamento da doença em aspectos que vão de [dificuldades de] prevenção e controle de vetores à [falta de] capacidade de resposta assistencial”, disse ao Medscape o Dr. Rodrigo Angerami, coordenador no Núcleo de Vigilância Epidemiológica do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor no programa de pós-graduação em epidemiologia de doenças transmissíveis da Faculdade de Medicina da Unicamp.
Além disso, a circulação mais acentuada do sorotipo 2 do vírus da dengue (DEN-2), associada à maior gravidade dos sintomas, está entre os fatores que podem ter favorecido o recrudescimento da epidemia; em anos anteriores, circularam mais intensamente os sorotipos DEN-1 e DEN-3. Infecções subsequentes por cepas diferentes aumenta riscos: “Se você tiver dengue novamente por outro sorotipo, as chances de ter doença grave aumentam por volta de 30 vezes”, disse ao Medscape o Dr. Carlos Magno Fortaleza, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu (SP), onde coordena a pós-graduação em doenças tropicais. Esse é um dos motivos pelos quais as vacinas são tão esperadas.
Porém, uma vez que a quase totalidade das mortes por dengue é evitável com o atendimento e o tratamento corretos, os pesquisadores querem entender o que acarretou tantos óbitos em 2022. O que deixamos de fazer e o que precisa ser feito para evitar que mais pessoas sejam infectadas e mais vidas sejam perdidas para a doença em 2023?
“A mortalidade por dengue ter chegado a pouco menos de um por mil é muita coisa — sem contar a subnotificação. Um número tão grande de mortes por dengue indica problemas sérios em todos os níveis da assistência, da atenção básica até o atendimento hospitalar de maior complexidade”, avaliou o médico sanitarista Dr. Cláudio Maierovitch, do Núcleo de Vigilância em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em Brasília (DF).
Segundo o Dr. Carlos, o número recorde de mortes de 2022 revela que uma parte dos profissionais da saúde têm dificuldade de reconhecer os casos de dengue que podem se agravar. Além disso, eles provavelmente estão classificando de forma errada esses pacientes com chances de ter complicações decorrentes da doença. “Como a maioria dos casos evolui de forma benigna, muitos médicos perdem o olhar para os casos que podem evoluir mal. É justamente aí que está o perigo”, disse o pesquisador.
Do ponto de vista do Dr. Carlos, é em situações como essas que a ausência de ações contínuas de treinamento para tratar a dengue pode ser sentida com nitidez. “Estamos falando de uma rede [de saúde que tem sido] desafiada de várias formas e sobrecarregada pela covid-19. Os médicos precisam ser treinados e lembrados constantemente dos sinais de alerta e saber o timing para fazer uma hidratação venosa, internar [o paciente] e ficar avaliando a pressão arterial constantemente ou já internar em unidade de terapia intensiva com outras medidas mais drásticas de manutenção da pressão arterial ", disse o pesquisador. Antes do início da pandemia de covid-19, o Dr. Carlos era continuamente solicitado a dar treinamentos sobre o atendimento de dengue em prontos-socorros. “Depois que a [disseminação de] covid-19 começou no Brasil, nunca mais fui chamado para esse tipo de ação. Isso mostra o quanto a pandemia desviou o nosso foco da dengue”, disse.
O médico reiterou que as pessoas precisam ser atendidas no momento oportuno e de forma adequada pra que não morram de dengue. “A hidratação precoce e o cuidado adequado estratificado pela gravidade do paciente podem reduzir a letalidade [da doença] ao mínimo. Um trabalho feito em Cuba na década de 1980 mostrou que a instituição da hidratação precoce [nos centros de saúde] fez cair de 14% para 1% a letalidade das formas de choque da dengue”, citou o médico. Sobre esse tema, o Dr. Carlos recomendou a leitura do artigo “Why are people with dengue dying? A scoping review of determinants for dengue mortality”. [3]
Mas e quando falta o básico? “No ano passado, em municípios de diversos estados brasileiros, entre eles o estado de São Paulo, faltou soro fisiológico para hidratação, que é o carro-chefe para o tratamento de pacientes com dengue. Houve também locais em que faltou dipirona para o controle de dor e temperatura desses pacientes”, relatou o Dr. Rodrigo. De acordo com uma pesquisa on-line divulgada pela Confederação Nacional de Saúde no início de 2022, 62,4% das instituições que responderam ao levantamento estavam com dificuldade de adquirir dipirona injetável.
Outro sinal da precarização da saúde brasileira é a falta de profissionais, de médicos a técnicos em enfermagem, o que se reflete na qualidade da atenção ao paciente. “O tratamento habitual de dengue é, principalmente, hidratação. Mas é necessário acompanhar os pacientes de perto para ver se a hidratação funcionou, se a pressão está muito baixa, se há sinais de que o coração está falhando, se a pessoa está urinando ou não. Se todos estão sobrecarregados, o profissional até faz toda uma conduta correta, mas não consegue acompanhar o que está acontecendo com cada paciente. E se o caso se complicar?”, observou o Dr. Cláudio.
Se parar a disseminação da doença não é possível, quais seriam as medidas viáveis para impedir que ela avance ainda mais? “Não é um momento muito fácil, porque já estamos na curva ascendente da epidemia, mas ainda é possível intensificar a comunicação para tentar reduzir a quantidade de criadouros [de vetores]. Isso envolve não apenas comunicação de massa e de mídia, mas o trabalho das equipes de saúde da família, das equipes da atenção primária, mas esse é um trabalho, me parece, muito prejudicado atualmente pela falta de profissionais e de recursos”, avaliou o Dr. Cláudio. Ele mencionou ainda a necessidade de um chamamento aos gestores públicos para discutir a preparação da rede de saúde para o enfrentamento à dengue e prevenir problemas como a falta de medicamentos reidratantes.
A eliminação dos criadouros do mosquito Aedes aegypti é uma das grandes falhas no controle da doença, na opinião do Dr. Carlos. Com a pandemia de covid-19, o que já era complicado ficou ainda pior. Estima-se que cerca de 80% dos criadouros estejam nos domicílios, mas muita gente se recusou a abrir a porta de casa para os agentes de controle de endemias, que vistoriam os domicílios a fim de eliminar criadouros e orientar os moradores quanto aos cuidados para se proteger da dengue. “Não se pode colocar tudo na conta da pandemia [de covid-19]. Em vários aspectos, os programas de prevenção e controle da doença já se mostravam frágeis há muitos anos. Grande parte dos problemas com a dengue estão relacionados à falta de investimento suficiente e contínuo para a manutenção de boas políticas de controle vetorial”, disse o Dr. Rodrigo.
A comunicação sobre a doença é mais um problema. “Ainda comunicamos a população sobre o controle do vetor às vésperas ou já em vigência da epidemia, mas essa informação deveria chegar o ano todo, como pauta permanente de educação em saúde”, resumiu o Dr. Rodrigo. “Os tempos mudaram. As pessoas têm outras formas de buscar e de captar informação. Não adianta apenas focar em fotografias de pneus e no fumacê, porque isso, ano após ano, tem se mostrado limitado e insuficiente. Muitos não têm água encanada. Precisamos incluir o abastecimento de água e o tratamento dos resíduos sólidos no país como temas, de fato, prioritários na discussão sobre o enfrentamento da dengue”, disse o pesquisador.
O caminho para melhorar as respostas contra a dengue passa pela incorporação de novas tecnologias, segundo o Dr. Cláudio. Ele citou exemplos como a borrifação de inseticida residual dentro das casas e o uso de telas impregnadas com substância tóxica aos mosquitos. “São estratégias usadas contra a malária que têm potencial contra a dengue”, disse o pesquisador. Há mais recursos, como armadilhas com larvicidas e a implantação de colônias de mosquitos Aedes aegypti que carregam a bactéria do gênero Wolbachia. Ela impede que os vírus da dengue, da zika, da chikungunya e da febre amarela se desenvolvam dentro do mosquito, contribuindo para redução da transmissão destas doenças. Estudos recentes feitos na Indonésia mostraram resultados muito positivos dessa técnica. [4] No Brasil, a estratégia está ativa em cidades como Rio de Janeiro (RJ), Niterói (RJ), Campo Grande (MS), Petrolina (PE) e Belo Horizonte (MG).
“Precisamos ser mais ágeis. O país deu vários passos atrás nas diversas áreas de enfrentamento à doença. Precisamos olhar para tudo que ficou parado e para tudo que está em ritmo muito lento e retomar o quanto antes”, disse o Dr. Claudio.
Pesquisadores ao redor do mundo têm trabalhado no desenvolvimento de modelos matemáticos para predizer onde começarão os surtos de dengue e onde a epidemia poderá ser mais intensa. Em São Paulo, o grupo de pesquisa liderado pela Dra. Ester Sabino, professora associada no Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora no Instituto de Medicina Tropical da USP, trabalha em um modelo com essa finalidade. Ali, mais de 700 amostras do vírus da dengue foram sequenciadas para analisar as populações de mosquitos circulantes e descobrir como as arboviroses persistem em períodos não epidêmicos, entre outros aspectos. “A expectativa é que a unificação de informações de genômica e epidemiologia [da dengue] venha a fortalecer a base de evidências para ações de saúde pública e a capacidade do sistema de saúde brasileiro em responder às arboviroses emergentes”, explicou a Dra. Ester. Os dados obtidos estão em fase de análise no Reino Unido. Uma das descobertas já feitas é de uma possível rota de transmissão entre Brasil e Angola, na África, duas regiões com grande mobilidade e ecossistemas semelhantes. “Precisamos entender cada vez mais essas rotas [que ocorrem] dentro do Brasil”, disse a pesquisadora.
A chegada das vacinas é uma grande esperança para reduzir o número de casos da doença e salvar vidas. Aprovada em vários países, a QDenga (Takeda) foi aprovada pela Anvisa na noite do dia 2 de março. Os estudos de fase 3 da Butantan-DV (do Instituto Butantan em parceria com a farmacêutica MSD) serão concluídos em meados do ano que vem. No entanto, é importante lembrar que as vacinas não eliminarão a doença, tampouco a necessidade de recrudescer o controle de vetores. Além disso, seu impacto dependerá da proporção da população que terá acesso a elas, como observou o Dr. Rodrigo.
Iniciado recentemente, com a posse da ministra Nísia Trindade, o processo de reestruturação do Ministério da Saúde é outro foco de esperança. Nos últimos anos, a pasta perdeu muitos especialistas envolvidos no controle de endemias, e há forte expectativa de que o enfrentamento à dengue e a outras doenças endêmicas passe a ser feito de modo contínuo. “Se houver uma política para fazer o Sistema Único de Saúde funcionar, com repasse de recursos, insumos, capacitação de pessoas e gestores, a base da política de combate à dengue deve funcionar também”, disse o Dr. Cláudio.
Consultado pelo Medscape sobre as mudanças em discussão no combate à dengue, o Ministério da Saúde informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que acompanha com atenção a situação epidemiológica da doença e busca fortalecer as ações de combate à epidemia nos estados e municípios. Até o fechamento desta edição, ainda não havia retorno sobre a solicitação de uma entrevista com especialista da pasta a respeito do combate à dengue no país.
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Citar este artigo: Estamos preparados para evitar o crescimento da epidemia de dengue? - Medscape - 3 de março de 2023.
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