Discussão
A paciente, neste caso, tem sinais e sintomas de doença subjacente do tecido conjuntivo. Seu perfil de anticorpos e seus sinais e sintomas sugerem o diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico; portanto, a nefrite lúpica é uma possibilidade relevante como causa de sua lesão renal. No entanto, a ausência de hematúria nos exames de urina, que normalmente ocorre em cerca de 80% dos casos de nefrite lúpica, deve abrir o diagnóstico diferencial para a etiologia da lesão renal. [1]
Esta paciente tem história de coagulopatia, o que levanta a preocupação de síndrome antifosfolipídica, especificamente a nefropatia da síndrome antifosfolipídica. Além disso, com a piora da anemia, a suspeita de lúpus eritematoso sistêmico e a exposição a medicamentos, tanto a nefrite intersticial quanto a púrpura trombocitopênica trombótica devem ser consideradas no diagnóstico diferencial.
Em última análise, a biópsia é necessária para diferenciar os diagnósticos. A biópsia renal desta paciente demonstra que microangiopatia trombótica aguda é o principal achado histológico. A aparência normal dos glomérulos e a ausência de infiltrados celulares e cicatrizes tornam os achados da biópsia compatíveis com nefrite lúpica de classe Ib, que é a classificação de glomérulos normais com depósitos densos na microscopia eletrônica e não está associada ao grau de lesão renal visto neste caso. [2] Assim, a causa de sua lesão renal está provavelmente relacionada com a microangiopatia observada na biópsia. No contexto de sua história de coagulopatia, esse achado faz o diagnóstico de nefropatia da síndrome antifosfolipídica, ocorrendo no caso de lúpus eritematoso sistêmico de início recente, causa mais provável da deterioração da sua função renal.
A nefropatia da síndrome antifosfolipídica é uma das manifestações renais mais comuns da doença e refere-se à oclusão não inflamatória de pequenos vasos nos rins. Entre os pacientes com diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico, até 40% também têm anticorpos antifosfolipídicos e mais de 50% desses pacientes evoluem para síndrome antifosfolipídica, caraterizada por um episódio de coagulação ou um evento obstétrico. [3,4] A nefropatia da síndrome antifosfolipídica ocorre em cerca de 65% dos pacientes com essa síndrome e lúpus eritematoso sistêmico e a apresentação pode variar da forma geral assintomática com proteinúria a hipertensão arterial sistêmica grave, proteinúria nefrótica e sedimento urinário ativo. [4]
A identificação do diagnóstico correto tem implicações terapêuticas, pois a nefropatia trombótica aguda da síndrome antifosfolipídica exige tratamento com um esquema específico de anticoagulação com varfarina, segundo as diretrizes “Kidney Disease: Improving Global Outcomes” (KDIGO) de 2021. [5,6] Se não for tratada, a doença pode levar à insuficiência renal. A nefropatia da síndrome antifosfolipídica deve ser considerada no diagnóstico diferencial quando os pacientes apresentam comprometimento renal, proteinúria e hipertensão arterial, com ou sem diagnóstico de lúpus.
O diagnóstico de nefropatia da síndrome antifosfolipídica exige biópsia renal, pois nos estágios iniciais não é possível diferenciá-la da nefrite lúpica. Dos pacientes com nefrite lúpica preexistente, entre 1% e 14% têm nefropatia da síndrome antifosfolipídica concomitante, [4] e até 40% dos pacientes com lúpus eritematoso sistêmico que têm resultado positivo para anticorpos antifosfolipídicos têm nefropatia da síndrome antifosfolipídica. [6] Na biópsia, as lesões precoces da nefropatia da síndrome antifosfolipídica apresentam frequentemente as características patológicas da microangiopatia trombótica, como observado na paciente deste caso. Um exemplo é mostrado na figura abaixo.

Figura 1.
Pacientes com história de lúpus eritematoso sistêmico e nefropatia da síndrome antifosfolipídica têm maior prevalência de complicações trombóticas arteriais do que outras pessoas. [6] O fenótipo do anticorpo da síndrome antifosfolipídica tem importantes implicações prognósticas, pois os pacientes com história de positividade tripla (dois resultados positivos da sorologia IgG de anticorpos antifosfolipídicos, junto com um resultado positivo do teste de lúpus anticoagulante funcional no plasma) devem fazer anticoagulação com varfarina ou heparina. Estudos demonstraram maior número de episódios de trombose recorrente nos pacientes tratados com outros anticoagulantes. [7] Nos casos de síndrome antifosfolipídica catastrófica são usados anticoagulantes, além de corticoides e imunoglobulina intravenosa, para o tratamento; entretanto, a imunossupressão sem síndrome antifosfolipídica catastrófica é controversa sem outras indicações e não seria indicada para o tratamento da microangiopatia trombótica neste caso.
O diagnóstico clínico de microangiopatia trombótica é uma consideração importante para o diagnóstico diferencial, pois acarreta possíveis implicações terapêuticas. A microangiopatia trombótica é uma síndrome clínica e uma definição histológica (esta última demonstrada pela biópsia neste caso). A síndrome clínica de microangiopatia trombótica é uma categoria ampla que engloba causas primárias e secundárias. As manifestações abrangem evidências de anemia hemolítica microangiopática, trombocitopenia e lesão de órgãos-alvo. O componente histopatológico demonstra formação de trombo oclusivo com alterações caraterísticas no endotélio e na parede do vaso. [8]
A microangiopatia trombótica primária pode ser causada por fatores genéticos ou adquiridos, inclusive por púrpura trombocitopênica trombótica primária e síndrome hemolítico-urêmica mediada pelo complemento. A púrpura trombocitopênica trombótica pode ser hereditária ou adquirida e está relacionada a deficiências graves da ADAMTS13 (por formação de autoanticorpos contra a proteína ou anomalias genéticas adquiridas), que a separa das outras causas da microangiopatia trombótica. O diagnóstico de púrpura trombocitopênica trombótica depende, em última instância, do teste da atividade da ADAMTS13, pois a apresentação clínica pode variar de achados inespecíficos a déficits neurológicos substanciais. A mortalidade varia entre 5% e 16%, [9] o que torna crucial o diagnóstico em tempo hábil para o início do tratamento emergente por plasmaférese, pilar do tratamento da púrpura trombocitopênica trombótica. [8,9,10] Os pacientes com lúpus eritematoso sistêmico ou nefropatia da síndrome antifosfolipídica podem ter indícios de microangiopatia trombótica sistêmica. A microangiopatia trombótica mediada pelo complemento pode exigir inibição do complemento com eculizumabe, além de anticoagulação e imunossupressão, sendo importante considerá-la no diagnóstico diferencial.
O outro diagnóstico a considerar é a nefrite intersticial aguda. Ela pode ser farmacológica (em mais de 75% dos casos) ou relacionada com outras doenças, como os distúrbios autoimunitários (10% a 15% dos casos). [11] O critério convencional para o diagnóstico da nefrite intersticial é a biópsia renal, que revela infiltrado de células inflamatórias no próprio interstício renal. Isso costuma estar associado a edema, poupando os glomérulos e os vasos sanguíneos. A Figura 2 mostra a nefrite intersticial de outro paciente.

Figura 2.
O exame de urina costuma mostrar proteinúria, piúria e hematúria, embora os cilindros hemáticos sejam raros. A eosinofilúria é classicamente associada à nefrite intersticial aguda. A ausência desses achados não exclui o diagnóstico e sua utilidade geral é limitada; estudos demonstraram que eles têm valor preditivo positivo de 38% e valor preditivo negativo de 74%. [12]
O tratamento da nefrite intersticial aguda é feito pela remoção do agente deflagrador (quando a causa é farmacológica) ou pelo tratamento da doença subjacente. Embora as evidências para o uso de corticoterapia empírica para a nefrite intersticial aguda (nos casos induzidos por substâncias, ou nos casos de etiologia desconhecida) não sejam fruto de grandes ensaios clínicos randomizados e controlados, o uso empírico tem sido corroborado por pequenos estudos de caso. [12,13]
Concluindo, a nefropatia da síndrome antifosfolipídica é uma importante causa de disfunção renal, sendo uma consideração fundamental no diagnóstico diferencial da lesão renal para os pacientes com e sem lúpus eritematoso sistêmico. O diagnóstico requer biópsia renal para diferenciar as possíveis causas (inclusive a nefrite lúpica) e o tratamento depende do perfil do anticorpo da síndrome antifosfolipídica. Pacientes com síndrome antifosfolipídica triplo-positiva precisam fazer anticoagulação com varfarina e heparina. A síndrome antifosfolipídica pode apresentar microangiopatia trombótica associada e, nos casos refratários ao tratamento, a microangiopatia trombótica da síndrome antifosfolipídica pode exigir tratamentos complementares específicos, além da imunossupressão, para tratar o processo da doença subjacente.
Para a paciente deste caso, foi iniciado o tratamento com corticoides, micofenolato e hidroxicloroquina. Os resultados dos testes ADAMTS13 estavam dentro dos limites normais. Ela tinha história importante de resultados positivos para o anticoagulante lúpico (com 12 semanas de intervalo) e trombose venosa profunda recorrente; no entanto, não recebeu diagnóstico formal de síndrome antifosfolipídica. Diante de sua história médica pregressa, da positividade do anticoagulante lúpico, da trombose venosa profunda recorrente e da microangiopatia trombótica aguda renal, foram confirmados diagnósticos formais de síndrome antifosfolipídica e nefropatia aguda da síndrome antifosfolipídica. Assim, seu esquema foi trocado, no momento da alta, para varfarina para a anticoagulação em longo prazo.
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Citar este artigo: Desafio clínico: Assistente pedagógica com transtorno bipolar e problemas pulmonares - Medscape - 28 de fevereiro de 2023.
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