Aparentemente, é errado oferecer tratamentos eficazes para pacientes pediátricos com um quadro crônico que aumenta consideravelmente o risco de outras doenças crônicas, prejudica progressivamente a qualidade de vida e é a principal causa de bullying escolar.
Pelo menos foi o que concluí ao observar a repercussão das novas diretrizes para o tratamento da obesidade infantil publicadas pela American Academy of Pediatrics (AAP), que sugerem que crianças com obesidade grave recebam medicamentos ou sejam submetidas a cirurgia. Por que seria mais sensato não tentar tratar a obesidade infantil, visto que ela contribui para o surgimento de diabetes tipo 2, hipertensão arterial sistêmica, esteatose hepática e para a redução da qualidade de vida?
As reações não surpreendem. Alguns dos que estão insatisfeitos com as diretrizes têm carreiras clínicas ou científicas que dependem da defesa de suas próprias estratégias nutricionais favoritas, como se fossem mais eficazes e mais reprodutíveis do que décadas de estudos que comprovam uniformemente o oposto. Outros estão chateados, pois, por motivos que podem ser pessoais em alguns momentos e ambíguos em outros, acreditam que a obesidade não deve ser tratada e/ou que a perda de peso sustentada é impossível. Porém, de maneira geral, é provável que grande parte dessa confusão decorra do fato de a obesidade ser vista como uma falha moral. A noção de que os indivíduos que sofrem com esse problema são os culpados tem sido a visão predominante na sociedade por décadas, talvez séculos.
Ao trabalhar com famílias de crianças com obesidade grave o suficiente para que busquem ajuda, fica claro que, se bastasse força de vontade para resolver o quadro, não precisaríamos de diretrizes de tratamento, muito menos de medicamentos ou cirurgia. Quase sempre, pais e mães relatam que seus filhos sofrem bullying devido à obesidade e são extremamente concentrados no próprio peso.
E o que aqueles que pensam que crianças não devem receber um tratamento reprodutível e eficaz para a obesidade fazem a respeito disso? Muitos parecem acreditar que seria melhor que essas crianças adotassem dietas formais e, claro, que elas deveriam sair e brincar mais. Embora eu seja a favor de incentivar a melhora da qualidade da alimentação e do nível de atividade física de crianças, quem sugere que essas duas ferramentas sejam uma espécie de panaceia para a obesidade infantil não tem a menor ideia do que está dizendo. Sem mencionar que, na maioria dos casos, a melhora global da qualidade da alimentação, válida para pessoas com qualquer peso, geralmente não é o objetivo recomendado nessas dietas. Em vez disso, os tratamentos prescritos parecem ser uma combinação de dieta restritiva e excesso de exercícios, que, ao contrário da prescrição medicamentosa orientada e utilizada de maneira adequada e ponderada, pode aumentar o risco de a criança ter pensamentos disfuncionais sobre comida e forma física, além de possibilitar o surgimento de transtornos alimentares, sem mencionar o prejuízo à autoestima se os resultados das mudanças no estilo de vida forem insatisfatórios.
Isso nos leva a uma das interpretações mais bizarras de toda essa história: a de que os medicamentos são administrados de forma forçada e utilizados mesmo quando não são necessários. Não há dúvida de que isso possa ocorrer ocasionalmente, mas o problema é a prescrição exagerada por parte do médico, não as opções ou indicações terapêuticas. Considere a asma infantil, por exemplo. Não existe nenhuma preocupação ou polêmica em relação ao fato de que crianças com asma leve, sem impacto na qualidade de vida ou no risco significativo à saúde, sejam submetidas a diversos tratamentos, inclusive com corticoides inalatórios. Por quê? Porque os médicos aprenderam a avaliar imparcialmente as necessidades de tratamento da asma e a acompanhar a evolução da doença, em vez de simplesmente prescrever todo o arsenal terapêutico logo de uma vez.
É chocante, eu sei, mas como acontece com qualquer outra doença, acredito que os médicos consigam aprender e seguir um algoritmo com as indicações e opções de tratamento para obesidade infantil.
O que ocorre nesse caso também reflete o que é visto em qualquer outra doença crônica não transmissível com gravidade e impacto variáveis. Os médicos avaliam a criança com obesidade para verificar se a doença está tendo um efeito prejudicial sobre sua saúde e qualidade de vida. Em seguida, acompanham cada paciente para verificar se a obesidade está piorando e, quando necessário, solicitam exames complementares para descartar uma possível contribuição da doença para o surgimento de comorbidades comuns, como diabetes tipo 2, hipertensão arterial sistêmica e esteatose hepática. Além disso, quando apropriado, eles fornecem informações sobre as opções de tratamento disponíveis (desde mudanças de estilo de vida até o uso de medicamentos e cirurgia, explicando sobre os riscos, benefícios e expectativas realistas associadas a cada um deles). Então, sem julgamento, os médicos apoiam as escolhas terapêuticas de seus pacientes, visto que um diálogo claro, sem culpar o indivíduo, e uma prescrição acolhedora são, na verdade, a essência do nosso trabalho.
As pessoas parecem preferir ficar irritadas em vez de concentrar sua indignação no que realmente precisa ser feito nesse momento com relação à obesidade infantil. Em vez disso, elas deveriam olhar para o que nos trouxe até aqui: o nosso ambiente obesogênico. Nós e nossos filhos estamos lutando contra uma avalanche de calorias de alimentos ultraprocessados baratos que vêm sendo impostos a nós por uma cultura alimentar socialmente falida, que valoriza a conveniência e, simultaneamente, abraça a noção de que o conhecimento atual é compatível com os milhares de genes modificados e dezenas de hormônios presentes nos alimentos cada vez mais sofisticados rechaçados por profissionais de marketing e cientistas do setor alimentício. Para lutar contra essa avalanche, precisamos fazer mais do que simplesmente ensinar como andar na neve.
Como a asma, que pode ser exacerbada pela poluição ambiental dentro e fora de casa, a obesidade infantil é uma doença moderna, influenciada pelo ambiente e com uma penetrância variável, que nem sempre requer tratamento ativo. Também como a asma, a obesidade infantil não é uma doença que as crianças escolhem ter. Ela não é uma doença que pode ser eliminada apenas com força de vontade, nem responde de maneira uniforme, intensa e duradoura à dieta e ao exercício físico. Hoje em dia, felizmente temos várias opções de tratamento eficazes e disponíveis para a obesidade infantil, como ocorre com a asma, entretanto nosso viés social de peso ainda nos leva a pensar que essas ferramentas não são excelentes.
Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape
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Citar este artigo: Viés de peso e a percepção sobre as diretrizes para controle da obesidade infantil - Medscape - 13 de fevereiro de 2023.
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