Em 2022, os registros de casos de dengue no país aumentaram 162,5% em relação ao ano anterior. [1]No total, foram 1.450.270 casos (taxa de incidência de 679,9 casos por 100 mil habitantes). Houve também recorde de mortes, com a lamentável marca de 1.016 vidas perdidas por dengue e mais 109 casos ainda em investigação. Os estados com mais pessoas mortas pela doença foram São Paulo (282), Goiás (162), Paraná (109), Santa Catarina (88) e Rio Grande do Sul (66). Segundo especialistas ouvidos pelo Medscape, ainda que seja muito difícil estimar as dimensões da epidemia de dengue em 2023, existem indícios de que o número de casos poderá superar o de 2022.
Um dos motivos para esta preocupação é que a mesma combinação de fatores que parece ter impulsionado a incidência da doença no ano passado se mantém inalterada até o momento. Trata-se de um conjunto que abrange desde um verão marcado por temperaturas elevadas e fortes chuvas até a falta de investimento em campanhas para reforçar as medidas de prevenção contra a dengue e a inexistência de uma rotina de visitas de agentes de controle de endemias. Além disso, também houve atrasos na distribuição de larvicidas e inseticidas aos estados e municípios.
A soma de todos esses fatores costuma levar a um resultado previsível. No final de 2022, o 4º Levantamento Rápido de Índices para Aedes aegypti/ Levantamento de Índices Amostral (LIRAa/LIA) revelou que há 218 cidades com elevado risco de infestação pelo mosquito transmissor da dengue (e também da zika e da chikungunya).
Há mais alguns aspectos que podem contribuir para o agravamento da dengue no Brasil. Além da conhecida sazonalidade da doença, com picos em número de casos a cada três a cinco anos, foi detectada a circulação de um novo genótipo do sorotipo 2 do vírus da dengue (DEN-2) no país — até então, esta linhagem esteve presente em países da Ásia e da África, mas nunca havia sido encontrada no Brasil. A nova linhagem foi identificada no ano passado em Aparecida de Goiânia (GO) por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Laboratório Central de Saúde Pública de Goiás (Lacen-GO). Segundo o Instituto Butantan, foi o primeiro registro oficial dessa linhagem na América do Sul. Antes, fora detectada no continente durante o surto de dengue que acometeu o Peru em 2019. De modo geral, circulam atualmente no Brasil os sorotipos DEN-1 e DEN-2 genótipo III, também conhecido como genótipo asiático-americano.
A identificação da presença de uma nova linhagem do DEN-2 não é uma boa notícia. “Nossa preocupação é com a chegada do DEN-2 em uma população que há um bom tempo não tem uma epidemia por esse sorotipo. Como muitos podem ter sido expostos ao DEN-1, aumenta a possibilidade de haver número significativo de casos graves”, explica o Dr. Carlos Magno Fortaleza, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu (SP), onde coordena a pós-graduação em doenças tropicais. Um dos alvos de pesquisa do Dr. Carlos é a análise, por meio de modelos de simulação computacional, da efetividade das políticas públicas de vigilância e resposta no universo da covid-19.
O genótipo do DEN-2 recentemente identificado no Brasil, conhecido como “cosmopolita”, é uma linhagem mais agressiva, de acordo com o virologista Dr. Maurício Lacerda Nogueira, professor na Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP) e consultor no programa de vigilância epidemiológica da dengue no município do interior de São Paulo.
“O genótipo asiático-americano e o ‘cosmopolita’ são diferentes. O segundo está provocando casos apenas em algumas regiões do Brasil”, diz o especialista. Em São José do Rio Preto, por onde o DEN-2 circulou recentemente, o virologista diz que o subtipo “cosmopolita” provavelmente não vai causar grande impacto. O município está entre as áreas tradicionalmente mais atingidas pela dengue no país. Ali, a temperatura média anual chega a 25 ºC e a pluviosidade anual passa de 1.465 mm.
“Reunimos as condições propícias para o desenvolvimento do mosquito Aedes aegypti”, pontua o virologista, que participa dos estudos da vacina contra a dengue, em desenvolvimento pelo Instituto Butantan.
Por uma especificidade do vírus da dengue, a pessoa infectada pelo DEN-1, por exemplo, fica imunizada para o resto da vida contra essa cepa, mas continua sujeita à infecção por outros sorotipos. Quando isso ocorre, o organismo pode produzir anticorpos que protegem o vírus em vez de combatê-lo.
“Essa reação ajuda a entender por que uma segunda infecção por dengue aumenta o risco de doença grave”, observa o Dr. Carlos. Isso não significa que todos que tiverem dengue pela segunda vez manifestarão a forma mais grave da doença, mas há maiores chances de isso acontecer. Segundo o especialista, um estudo feito em Cuba mostrou que a incidência da síndrome do choque do dengue, que é a forma mais grave da doença, é de um em mil casos na primeira infecção. Se a pessoa é infectada novamente, a incidência passa a ser de 3% — 30 vezes maior.
Imunizantes a caminho
Ainda que as medidas de prevenção contra a dengue sejam bem conhecidas, o Aedes aegypti está de tal modo adaptado ao tecido urbano que se tornou praticamente impossível eliminá-lo. Por isso, a grande esperança dos cientistas para conter a escalada de casos e evitar mais mortes pela doença é o surgimento de uma vacina eficaz contra os quatro subtipos conhecidos do vírus.
Neste momento, o mundo dispõe de duas vacinas: a Dengvaxia® (Sanofi) e a Qdenga™ ou TAK-003 (Takeda). A Dengvaxia® é dada em três doses, a Qdenga™ é aplicada em duas doses e a Butantan-DV, que está em fase 3 de estudo, é administrada em dose única. Os pesquisadores ainda não sabem quanto tempo deve durar a proteção conferida por esses imunizantes.
A Dengvaxia® foi a primeira vacina contra a dengue a ser aprovada, em 2015. Ela combina o vírus atenuado da febre amarela com quatro sorotipos do vírus selvagem da dengue. “Apostávamos muito nela, mas, embora seja tetravalente, ela não gera imunidade com a mesma eficácia contra os quatro sorotipos do vírus da dengue. Assim, algumas pessoas que tiveram a doença após tomar essa vacina reagiram como quem tem dengue pela segunda vez, ou seja, tiveram uma doença mais grave”, descreve o Dr. Carlos. Por isso, em diversos países, entre eles os Estados Unidos e o Brasil, essa vacina só pode ser administrada a pessoas que tiveram uma infecção prévia por dengue.
O problema foi percebido quando foram feitas subanálises em todos os estudos clínicos para obtenção da autorização da vacina pelas agências internacionais regulatórias. As subanálises revelaram que, embora a incidência de dengue tivesse diminuído em algumas faixas etárias, o número de casos graves da doença havia crescido especificamente entre as pessoas que nunca tinham apresentado o quadro.
“Isso gerou uma mudança tanto nos organismos internacionais como na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que passou a indicar essa vacina somente pra quem já teve dengue antes”, explica o Dr. Carlos.
“Na prática, foi um problema grave, que limitou muito o uso da Dengvaxia® como a tão esperada medida de saúde pública”, diz o médico. No Brasil, apenas o Paraná comprou lotes dessa vacina, em 2016. Atualmente, o imunizante pode ser encontrado em clínicas particulares. A bula da vacina recomenda que seja realizado um teste laboratorial para avaliar se a pessoa já teve infecção pelo vírus da dengue. Segundo a Sanofi, não há estudos em andamento com testes da vacina em indivíduos sem infecção prévia.
Outro imunizante disponível é a TAK-003, da farmacêutica Takeda. No início de dezembro de 2022, ela foi aprovada com o nome de Qdenga™ para uso nos países da União Europeia. No Brasil, o pedido inicial de registro foi feito à Anvisa em abril de 2021, acompanhado da submissão de dados de eficácia e de segurança de fase 3 do Estudo de Eficácia da Imunização Tetravalente contra a Dengue. [2] Esta etapa do estudo incluiu mais de 28 mil participantes com idades entre quatro e 16 anos, provenientes de oito países na Ásia e na América Latina onde a dengue é endêmica, entre eles o Brasil. Segundo o estudo, que já foi concluído e traz informações de até três anos de acompanhamento, a eficácia geral da vacina é de 80,2%. O índice foi maior para a proteção contra hospitalização, chegando a 90,4% em 18 meses após a vacinação. Os dados indicam que a eficácia é maior para um tipo de vírus da dengue do que para outro. O pedido à Anvisa continua em avaliação. Em 10 de janeiro deste ano, foi realizado um painel técnico com especialistas técnicos da Anvisa e representantes da Takeda.
Também feita com vírus atenuados, a TAK-003 foi produzida com vírus DEN-2 alterados para que expressem antígenos também dos outros sorotipos. Nos estudos apresentados até agora, não houve problemas semelhantes aos relatados após a imunização com a Dengvaxia®, especialmente o risco de dengue grave em pessoas sem infecção prévia. O Dr. Carlos lembra, porém, que os problemas com a Dengvaxia® só foram notados depois da sua aprovação, já no estudo de fase 4, momento em que é feita a farmacovigilância.
Em desenvolvimento há cerca de uma década, a vacina Butantan-DV usa uma tecnologia licenciada em 2009 pelos National Institutes of Health (NIH) nos Estados Unidos, que cedeu patentes e os materiais biológicos das quatro cepas do vírus da dengue usados no imunizante. O acordo permite que o Instituto Butantan produza e distribua o fármaco no Brasil. Em 2018, o instituto fez um acordo com a farmacêutica multinacional MSD para acelerar o desenvolvimento e o registro do produto. O compromisso deu à companhia o direito de comercializar o imunizante no mundo.
Dados primários divulgados recentemente indicam que a Butantan-DV teria 79,6% de eficácia para evitar a dengue. As informações foram geradas por um estudo feito com mais de 16 mil voluntários de todo o Brasil em dois anos de acompanhamento.
“Em pessoas que contraíram a doença antes do estudo, a proteção foi de 89,2%. Para quem nunca teve contato com o vírus, a eficácia foi de 73,5%”, disse ao Medscape a Dra. Fernanda Castro Boulos, diretora médica no Instituto Butantan. O estudo será concluído em 2024, quando todos os indivíduos completarem cinco anos de acompanhamento. A fase 2 do ensaio clínico, que teve seus resultados publicados em artigo no periódico The Lancet Infectious Diseases , [3] mostrou que 80% dos voluntários produziram anticorpos contra os quatro sorotipos.
Os dados parciais da Butantan-DV já foram apresentados e discutidos com a Anvisa. Entretanto, há uma questão a ser resolvida: “A vacina foi desenhada para oferecer proteção também contra os sorotipos DEV-3 e DEV-4, mas não temos dados de eficácia contra eles, porque a circulação dessas cepas é muito pequena no Brasil”, explica a Dra. Fernanda. Segundo a médica, a agência reguladora está disposta a aceitar dados de regiões onde há maior circulação dessas cepas. Para suprir essa necessidade, a MSD fará um estudo em regiões da Ásia, mais atingidas por esses subtipos do vírus.
Como será produzida em uma fábrica instalada no próprio Instituto Butantan, também estão em andamento estudos de consistência de lotes e de biossegurança. A capacidade estimada de produção é de 50 milhões de doses da Butantan-DV por ano.
Siga o Medscape em português no Facebook, no Twitter e no YouTube
Créditos: Imagem principal: Dreamstime
Medscape Notícias Médicas © 2023 WebMD, LLC
Citar este artigo: Epidemia de dengue no Brasil deve se agravar em 2023 e vacinas ainda são promessa de melhora do cenário - Medscape - 3 de fevereiro de 2023.
Comente