No mundo, a relutância ou recusa a se vacinar contra a covid-19 caiu de 24,8% para 20,9% de 2021 para 2022, de acordo com levantamento publicado na revista científica Nature Medicine em 09 de janeiro. [1] O estudo que gerou esses dados, intitulado “A survey of COVID-19 vaccine acceptance across 23 countries in 2022”, envolveu 23 países selecionados por seu peso global na morbidade e na mortalidade pelo vírus SARS-CoV-2, agente causador da covid-19 – um grupo que responde por 60% da população mundial.
Apesar dos resultados positivos, os pesquisadores observaram que a relutância ou recusa à vacina anticovídica aumentou em oito países participantes do estudo: Reino Unido (+1%), China (+1%), Brasil (+3,3%), Turquia (+2,7%), Quênia (+8,5%), México (+9,4%), Gana (+13,8%) e África do Sul (+21,1%). O resultado do levantamento também mostrou que a hesitação dos pais em relação à vacinação de crianças e jovens menores de 18 anos diminuiu ligeiramente no planeta, passando de 32,4% para 30,5% no período analisado.
A pedido do Medscape, o médico epidemiologista Dr. André Ricardo Ribas Freitas, pesquisador e professor de bioestatística na Faculdade São Leopoldo Mandic em Campinas (SP), contextualizou os achados que se referem ao Brasil.
Terceiro estudo de uma série iniciada em 2020, com questionários anuais, a pesquisa em questão continha perguntas sobre o reforço vacinal e o uso de medicamentos para tratar a infecção causada pelo vírus SARS-CoV-2. Em cada país foram ouvidas mil pessoas com mais de 18 anos, totalizando 23 mil entrevistas. As informações foram coletadas entre 29 de junho e 10 de julho do ano passado, sob a coordenação do Instituto de Salud Global de Barcelona (ISGlobal). O estudo teve também a participação de pesquisadores da Graduate School of Public Health & Health Policy da City University of New York (CUNY), do O’Neill Institute for National and Global Health Law da Georgetown University, ambos nos Estados Unidos, e da Universiti Malaya, na Malásia. Neste trabalho, a aceitação da vacina anticovídica foi definida pela vacinação com pelo menos uma dose ou a disposição de tomar a vacina quando houvesse doses disponíveis. A hesitação foi definida como resposta negativa à pergunta sobre a intenção de tomar ao menos uma dose da vacina e respostas como “não tenho certeza/ não tenho opinião”, “discordo parcialmente” ou “discordo fortemente” quando questionados se tomariam a vacina quando o imunizante estivesse disponível.
A hesitação brasileira
Os novos dados sobre aceitação e hesitação vacinal [2] despertaram enorme interesse, pois foram divulgados no momento em que o mundo enfrenta o desafio de combater a desinformação e as notícias falsas sobre vacinas, ao mesmo tempo em que existe a necessidade de desenvolver novos imunizantes que protejam contra as variantes já conhecidas e futuras. No Brasil, a maioria das manchetes sobre os dados do estudo destacaram e valorizaram o aumento de 56,3% na hesitação de pais brasileiros em vacinar os filhos contra a covid-19 entre 2021 e 2022. O dado não está errado, e se refere ao aumento percentual da hesitação vacinal entre os pais obtido pela comparação do índice brasileiro apurado em 2021 (8,7%) com o resultado de 2022 (13,6%). Ou seja, um aumento de 4,9% que representou a variação de 56,3% entre os resultados. Segundo o Dr. André, o uso desse dado nas manchetes passou uma impressão errônea e exagerada da extensão da hesitação vacinal no país. Para ele, os autores do trabalho não fizeram uma boa escolha ao apostar nesse formato para divulgar os dados.
Preocupado com o índice de aumento da hesitação vacinal destacado por alguns veículos da imprensa, o Dr. André disse ao Medscape que ficou surpreso ao ler atentamente o estudo e constatar que a resistência à vacinação no Brasil cresceu, de fato, apenas 3,3% de um ano para outro. “Houve uma piora no indicador, e isto não é bom, mas não foi uma grande oscilação e provavelmente deve ter ficado dentro da margem de erro da pesquisa, que não está apresentada no estudo”, disse o especialista.
Em relação ao grupo de países participantes deste estudo, o índice brasileiro de 13,6% de hesitação dos pais em vacinar seus filhos figura entre os menores, mas supera o de nações como Equador (12,2%), Índia (6.4%), Cingapura (13,3%) e China (0,1%). Na África do Sul, 60,8% dos pais hesitam sobre a vacinação de crianças e adolescentes, índice que chega a 33,1% nos Estados Unidos e 40,8% no Reino Unido.
As informações sobre a hesitação vacinal dos pais também levam a dúvidas sobre o impacto desse comportamento na vacinação infantojuvenil. “Considerando que 13,6% dos pais têm resistência a vacinar os filhos, cerca de 86,4% teriam a intenção de imunizá-los. Porém apenas 39,67% das crianças de três a 11 anos foram totalmente vacinadas até 05 de janeiro. Por quê?”, questiona o médico. “Para tratar uma doença, é necessário fazer o diagnóstico adequado. A nossa baixa cobertura vacinal entre crianças não pode ser creditada exclusivamente à hesitação dos pais. Ela envolve dificuldades de comunicação, falta de vacinas nos estoques e questões de logística, tanto que a nova ministra da Saúde foi corretamente negociar com os fabricantes a antecipação de lotes de imunizantes para crianças”, disse o médico.
Tabela 1: Postura pessoal em relação à vacinação [1,2]
Hesitação vacinal nas pesquisas | Variação de 2022 em relação às pesquisas anteriores | ||||
---|---|---|---|---|---|
|
2020 |
2021 |
2022 |
2022-2020 |
2022-2021 |
Brasil |
14,6% |
9,8% |
12,8% |
- 1,8% |
3,0% |
França |
41,1% |
36,5% |
18,3% |
- 22,8% |
- 18,2% |
México |
23,7% |
18,8% |
26,4% |
2,7% |
7,6% |
EUA |
24,6% |
33,4% |
19,8% |
- 4,8% |
- 13,6% |
Mundo |
28,5% |
24,8% |
20,9% |
- 7,6% |
- 3,9% |
Tabela 2: Postura em relação à vacinação dos filhos [1,2]
Hesitação vacinal nas pesquisas |
Variação de 2022 em relação a 2021 |
||
---|---|---|---|
|
2021 |
2022 |
2022-2021 |
Brasil |
8,7% |
13,6% |
4,9% |
França |
51,1% |
40,9% |
- 10,2% |
México |
26,8% |
19,7% |
- 7,1% |
EUA |
42,4% |
33,1% |
- 9,3% |
Mundo |
32,4% |
30,5% |
- 1,9% |
Rejeição à dose de reforço é pequena, mas cobertura vacinal segue baixa
No Brasil, apenas 3,6% dos respondentes vacinados demonstraram hesitação em tomar as doses de reforço, o que leva o país para a terceira posição entre as nações com percentuais mais baixos de hesitação. Fatores como idade, sexo, escolaridade e renda tiveram influência variável na hesitação em tomar o reforço vacinal em cada país. Nos Estados Unidos, essa resistência chega a 13%. Na Rússia, foi de 28,9% e na França, de 26,1%. A média global de resistência para tomar as doses de reforço foi 12,1%.
Segundo os autores do estudo, os mesmos fatores que influenciam a hesitação em aceitar a dose inicial da vacina anticovídica também levam à hesitação em tomar o reforço. Entre esses fatores, estão desconfiança no governo e nas autoridades de saúde, preocupações com a qualidade e a segurança da vacina e, em alguns países, pertencer a determinados grupos etários ou de raça/etnia minoritárias.
“A eficácia limitada das atuais vacinas na prevenção da infecção por novas variantes circulantes também pode influenciar a aceitação [do imunizante contra a covid-19]”, escreveram os pesquisadores. Já a crença na capacidade de proteção de uma vacina contra a covid-19, na sua segurança e a confiança na ciência envolvida na produção da vacina permaneceram fortemente correlacionadas com a aceitação em todos os países, segundo os autores.
No estudo em tela, apesar de o Brasil apresentar apenas 3,6% de resistência diante do reforço vacinal, somente 58,11% da população receberam a terceira dose ou dose de reforço até 17 de janeiro. [3] O que explicaria a baixa adesão da população adulta ao reforço mesmo confiando na vacina? Na avaliação do Dr. André, um dos fatores que certamente contribuem para que isso ocorra é a comunicação ineficaz. “São muitos subgrupos com diferentes esquemas vacinais e mudanças de recomendação ao longo do tempo sem uma comunicação social suficiente. Muitas pessoas já não entendem se podem tomar a dose adicional ou se precisam esperar”, disse o epidemiologista.
“A comunicação precisa ser feita de uma maneira mais simples e direta e os calendários devem ser homogêneos nos diferentes estados. Talvez já esteja na hora de se estabelecer um esquema de vacinação periódico — a cada seis meses, por exemplo — para aqueles que tenham esquema inicial completo, em vez de ficar contando o número de doses que a pessoa tomou”, opinou o especialista.
A falsa percepção de que a pandemia acabou ou de que a covid-19 não é mais uma doença tão grave e mortal — efeito causado justamente pela proteção vacinal — também interfere na vacinação e se soma às notícias falsas sobre os imunizantes. Bombardeada por informações conflitantes, a população fica confusa e mais vulnerável à desinformação. Afinal, as evidências sugerem que a resposta humoral à vacinação é substancialmente reduzida após seis meses, ressaltaram os pesquisadores. Além disso, novas subvariantes, a exemplo da XBB.1.5, continuam surgindo.
“A pandemia de covid-19 persiste apesar das reduções na gravidade da doença, nas hospitalizações e mortes desde a introdução das várias vacinas e dos produtos farmacêuticos para tratamento dos seus sintomas. No entanto, a hesitação e a recusa vacinal continuam a impedir a eficácia dessas intervenções”, escreveram os autores do estudo.
As respostas a uma das perguntas do estudo refletem um certo desinteresse da população em relação às informações sobre o coronavírus e as vacinas. Conforme os autores, quase dois em cada cinco (38,6%) entrevistados disseram que agora prestam menos atenção às novas informações sobre as vacinas anticovídicas do que um ano atrás. No Brasil, a população entre 18 e 29 anos representa 28,4% das pessoas que declararam esse comportamento. Já o grupo acima de 60 anos corresponde a 8,3% dos indivíduos que cabem nessa descrição.
Confiança na vacina e uso de medicamentos
Neste estudo, a aceitação das vacinas no Brasil atingiu a marca de 87,2% da população, à frente de Estados Unidos (80,2%), Reino Unido (80,4%), Turquia (72%), Suécia (79,2%), Polônia (64,1%), Nigéria (71,9%), México (73,6%), Itália (84,6%), Alemanha (78,1%) e França (81,7%). “Apesar das dificuldades que enfrentamos na vacinação contra a covid-19, muitas delas em consequência da gestão equivocada da pandemia pelas autoridades federais desde o início, em 2020, até recentemente, ainda somos um país onde a confiança nas vacinas continua entre as mais altas do mundo”, disse o Dr. André. Até 19 de janeiro, 82,17% da população brasileira foi completamente vacinada contra a covid-19. [3]
No Brasil, a aceitação das vacinas está associada à crença de que a covid-19 é uma séria ameaça à saúde (OR = 5,67; IC de 95% de 3,03 a 10,61), que pode ser prevenida por uma vacina (OR = 3,40; IC de 95% de 2,41 a 4,79), e que as vacinas disponíveis são seguras (OR = 7,80; IC de 95% de 4,39 a 13,85), índices entre os mais elevados no grupo de países estudados. A influência da confiança na ciência também é fundamental na aceitação das vacinas e o Brasil segue a tendência mundial (OR = 4,47; IC de 95% de 2,86 a 6,98), a confiança de que o governo brasileiro conseguiria entregar vacinas a todos não influenciou na aceitação da vacina (OR = 1,08; IC de 95% de 0,75 a 1,55).
Dois terços de todos os entrevistados (66,6%) ainda preferem a vacinação para prevenir a covid-19 — 40% responderam o mesmo na África do Sul e 91,4% na China. De modo geral, 36,6% dos entrevistados tiveram a doença durante o ano passado e 16,7%, há mais de um ano, totalizando 46,7% dos entrevistados. O Brasil é o terceiro país desse ranking, com 53,2% das pessoas entrevistadas dizendo que foram infectadas ou tiveram familiares infectados no último ano antes da pesquisa, e 17,5%, há mais de um ano. Apenas 29,3% dos participantes afirmaram que nem eles mesmos nem seus familiares contraíram a doença.
Globalmente, 36,6% de todos os entrevistados relataram covid-19 (pessoal ou em familiares) e 24% disseram ter recebido tratamento com produtos farmacêuticos —6,2% na Alemanha e 68,9% em Gana relataram o mesmo. Entre os medicamentos usados, foram citados anticorpos monoclonais (baricitinibe) (27,2%), ivermectina (27%), Paxlovid® (nirmatrelvir/ritonavir) (25,8%) e molnupiravir (20%).
No Brasil, 38,6% usaram medicamentos, sendo que deste total 7,7% utilizaram a medicina tradicional ou fitoterapia e outros tratamentos, 13,6% não souberam responder e 47,8% disseram não ter tomado medicamentos. Nos Estados Unidos, 23,2% da população disse ter tomado medicamentos para tratar a covid-19.
Dentre aqueles que tomaram medicamentos no país, apenas 8,73% disseram ter recebido o medicamento antiviral Paxlovid®, índice entre os menores do mundo nesta amostra. Na mesma linha, apenas 3,3% foram tratados com o medicamento molnupiravir; 8,4% receberam anticorpos monoclonais (baricitinibe). Chama a atenção o fato de 79,5% dos brasileiros que fizeram tratamento farmacológico terem usado a ivermectina, para uma média global de 27% — o Brasil teve a segunda maior proporção entre todos os países estudados. O Dr. André destacou que “no período ao qual o estudo se refere já havia demonstração da ineficácia da ivermectina pela ciência há no mínimo um ano. O amplo uso deste medicamento no Brasil com certeza se deve à campanha de desinformação estimulada, inclusive, pelo governo federal à época”.
O uso de ivermectina tão frequente entre os entrevistados, apesar de o remédio não ser recomendado para prevenir ou tratar a covid-19 nem pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nem por outras agências importantes na área preocupou os autores.
“Os entrevistados que relataram o uso de ivermectina tendiam a residir em países de baixa ou média renda. Mais esforços serão necessários para desencorajar o uso de ivermectina e outros produtos farmacêuticos sem eficácia comprovada e toxicidade potencial”, concluíram os pesquisadores.
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Citar este artigo: Um olhar crítico para os novos dados sobre hesitação vacinal - Medscape - 24 de janeiro de 2023.
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