COMENTÁRIO

Tratamento farmacológico da demência: há evidências robustas?

Mauricio Wajngarten

9 de janeiro de 2023

O enorme impacto dos transtornos cognitivos nos mais diversos aspectos da saúde individual e coletiva ressalta a relevância da busca por tratamentos eficazes para prevenir a ocorrência e/ou evitar a evolução desses transtornos.

Recentemente, a Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos aprovou em caráter acelerado (i.e., sem reunião formal do comitê consultivo) o uso do lecanemabe, um anticorpo monoclonal experimental capaz de eliminar a proteína amiloide, para o tratamento da doença de Alzheimer. [1] Assim como o aducanumabe, os benefícios associados ao lecanemabe foram modestos e o medicamento apresentou alguns eventos adversos preocupantes, mas o clamor por algum tratamento é tão grande que a Alzheimer's Association considerou a aprovação da FDA como uma “conquista histórica”.

Evidentemente, isso destaca a carência de evidências dos tratamentos utilizados até o momento, como veremos a seguir.

Evidências da falta de evidências robustas

Em 2018, as Diretrizes da American Academy of Neurology[2] tinham como única recomendação nível A (forte) discutir com pacientes e responsáveis a falta de evidências dos inibidores da colinesterase.

Em 2020, o Dementia prevention, intervention, and care: 2020 report of the Lancet Commission Lancet[3] concluiu que os inibidores da colinesterase têm um papel modesto na doença de Alzheimer leve a moderada e que a memantina pode ser prescrita (isolada ou em combinação) para doença moderada e grave, mas oferece apenas um pequeno benefício.

Em 2021, uma revisão da Cochrane, como sempre minuciosa, enfatizou que os inibidores da colinesterase (donepezil, galantamina e rivastigmina) e a memantina são medicamentos prescritos para aliviar os sintomas e retardar a progressão das demências. Diante das incertezas em relação aos benefícios e os efeitos adversos associados ao uso desses medicamentos, a revisão procurou avaliar vários efeitos da suspensão ou da manutenção dos inibidores da colinesterase, da memantina, ou de ambos, em pessoas com demência ─ dados até outubro de 2020. [4]

Foram analisados sete estudos cujos participantes tinham demência por doença de Alzheimer leve a moderada, moderada a grave ou muito grave. Seis trabalhos investigaram os efeitos da interrupção de um inibidor da colinesterase. Um estudo investigou a interrupção do donepezil ou da memantina; seus resultados não foram agrupados aos dos outros seis estudos. Os efeitos foram avaliados em diferentes períodos e analisados separadamente: nos primeiros dois meses (curto prazo), entre 3 e 11 meses (médio prazo) e a partir de um ano (longo prazo).

Em resumo, os resultados sugerem que a manutenção do tratamento com um inibidor da colinesterase comparada à sua interrupção:

  • Para a capacidade de raciocínio e a memória, pode ser benéfica em curto e médio prazos e, provavelmente, também em longo prazo.

  • Para a capacidade de realizar atividades diárias, pode conferir pouco ou nenhum efeito em curto prazo, incerto em médio prazo e é provavelmente benefício em longo prazo.

  • Para questões de humor e comportamentais, pode trazer benefícios em curto e médio prazos, mas não em longo prazo.

  • Para a saúde física ou o risco de morte, não foram encontradas evidências claras.

  • Para a qualidade de vida ou a probabilidade de internação em casa de repouso, as evidências foram insuficientes.

Não foram encontrados estudos que investigassem isoladamente a interrupção da memantina. Não foram identificadas evidências em relação a outros tipos de demência, além da doença de Alzheimer. Não foi possível obter conclusões específicas quanto a continuação ou a interrupção do tratamento em diferentes estágios da doença.

Os autores concluíram que apesar da incerteza em relação aos resultados, devido a limitações metodológicas dos estudos analisados, a maioria das evidências indica benefícios da continuação do tratamento com inibidores da colinesterase.

Em 2022, uma revisão sistemática de 24 estudos com acompanhamento médio de pacientes com demência de 6 a 120 meses indicou que há evidências de qualidade moderada a alta de uma associação consistente entre o tratamento prolongado com inibidores da colinesterase e uma redução na mortalidade por todas as causas. [5] Porém, esse estudo não exclui a possibilidade de vieses relacionados a ausência de publicação de ensaios com resultados negativos. Além disso, a maior preocupação dos pacientes e de seus familiares costuma ser a qualidade de vida, e não a mortalidade.

Implicações práticas

Assim como a Alzheimer’s Association, os pacientes e os seus familiares anseiam por um tratamento para demências ─ nada mais justo sob o ponto de vista emocional. Racionalmente, porém, faltam evidências robustas dos benefícios dos fármacos disponíveis até o momento.

Na prática, como clínicos, devemos:

  • priorizar a prevenção dos fatores de risco cardiovasculares;

  • promover atividades sociais, exercício da memória, o tratamento da depressão e da surdez;

  • identificar as causas de demências, que eventualmente são reversíveis;

  • restringir o uso de medicamentos com efeitos anticolinérgicos;

  • realizar, periodicamente, a avaliação básica da cognição e da funcionalidade; e 

  • encaminhar os pacientes para serviços especializados quando necessário. [6]

Se decidimos prescrever inibidores da colinesterase ou memantina, é absolutamente necessário conhecer os possíveis efeitos adversos e os cuidados recomendados. Como já foi dito, devemos comunicar a carência de evidências ao paciente e/ou seus familiares e compartilhar a decisão terapêutica.

O tratamento pode ser interrompido diante de falta de adesão, persistência da velocidade de deterioração cognitiva, baixa expectativa de vida, intolerância aos fármacos e preferência do paciente ou da família.

O impacto relacionado às demências pode estar subestimado. Foi identificada uma nova entidade, a Limbic-Predominant Age-Related TDP-43 Encephalopathy (LATE), uma proteinopatia TDP-43 estereotípica em idosos associada a uma síndrome de demência amnéstica que imita a demência do tipo Alzheimer em autópsias. Em coortes de autópsia baseadas na comunidade, 25% dos cérebros apresentaram carga de LATE-NC associada ao comprometimento cognitivo . Com o envelhecimento populacional, essa condição pode representar um impacto em expansão, ainda pouco reconhecido na saúde pública. [7]

Mais do que nunca, precisamos de opções terapêuticas eficazes!

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