A maioria das pessoas passa por duas mudanças de voz na vida: a primeira na puberdade, quando as cordas vocais ficam mais espessas e a ressonância da voz migra para a laringe, e a segunda quando o envelhecimento provoca mudanças estruturais que podem enfraquecer a voz.
Algumas pessoas também podem apresentar outro ponto de mudança vocal: quando uma doença é deflagrada ou a saúde mental comprometida. E, por isso, mais médicos vêm analisando a voz como um biomarcador de saúde.
Sinais vitais como pressão arterial ou frequência cardíaca "podem dar uma ideia geral do quão doentes estamos, mas são inespecíficos para certas patologias", disse a Dra. Yael Bensoussan, médica, diretora no Health Voice Center da University of South Florida e copesquisadora responsável pelo projeto Voice as a Biomarker of Health dos National Institutes of Health (NIH).
"Estamos aprendendo que existem padrões" nas alterações vocais, que podem indicar uma série de doenças, inclusive doenças do sistema nervoso e transtornos psiquiátricos, disse ela.
Falar é complicado e engloba muitas partes do corpo, desde os pulmões e a laringe até a boca e o cérebro. "O colapso de qualquer uma dessas estruturas pode modificar a voz", disse a Dra. Maria Powell, Ph.D., professora assistente de cirurgia de cabeça e pescoço na Vanderbilt University, EUA, que está trabalhando no projeto dos NIH.
Você ou as pessoas ao seu redor podem não notar essas alterações, mas os pesquisadores dizem que a análise da voz como parte do atendimento médico de rotina pode ajudar na identificação precoce daqueles que precisam de assistência.
Muitas vezes, basta ter um celular à mão — "algo barato, pronto para uso e que todos conseguem usar", disse a Dra. Ariana Anderson, Ph.D., diretora no Laboratory of Computational Neuropsychology da University of California em Los Angeles (UCLA), nos EUA.
"As pessoas podem fornecer dados de voz enquanto estão sentadas no sofá de pijama", disse o Dr. Frank Rudzicz, Ph.D., cientista da computação no projeto do NIH. "Não exige equipamentos complexos ou caros, e não é necessário ter muita experiência para isso." Além disso, várias amostras podem ser coletadas ao longo do tempo, dando informações mais precisas da saúde do que um único teste cognitivo, por exemplo.
Nos próximos quatro anos, a equipe do projeto Voice as a Biomarker receberá cerca de 18 milhões de dólares para reunir uma enorme quantidade de dados de voz. O objetivo é atingir entre 20 mil e 30 mil amostras, junto com dados da saúde de cada pessoa estudada. O resultado será um extenso banco de dados que os cientistas poderão usar para gerar algoritmos que relacionem as doenças à forma como falamos.
Nos dois primeiros anos, novos dados serão coletados exclusivamente nas universidades e nas clínicas com alto volume de atendimento para controlar a qualidade e a acurácia do projeto. Em um segundo momento, as pessoas serão convidadas a enviar suas próprias gravações de voz, criando um conjunto colaborativo de dados. "Google, Alexa, Amazon — todos eles têm acesso a milhares de dados de voz", disse a Dra. Yael. "Mas não são clinicamente utilizáveis, pois não estão vinculados a informações sobre a saúde [dos usuários]."
A Dra. Yael e seus colaboradores esperam preencher essa lacuna com aplicativos avançados de rastreamento de voz, que podem ser especialmente valiosos em comunidades distantes que não têm acesso a especialistas ou como um utilitário para a telemedicina. No futuro, dispositivos portáteis com análise de voz poderão alertar as pessoas com doenças crônicas quando elas estiverem precisando de atendimento médico.
"O relógio dirá: 'Analisei sua respiração e sua tosse, e hoje você realmente não está passando bem. Você precisa ir para o hospital’", disse a Dra. Yael, prevendo um dispositivo portátil para pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica. "[O dispositivo] poderia avisar rapidamente para as pessoas que as coisas estão piorando."
A inteligência artificial pode ser melhor do que o cérebro para identificar a doença certa. A fala arrastada, por exemplo, seria indício de doença de Parkinson, acidente vascular cerebral ou esclerose lateral amiotrófica, entre outras doenças.
"Podemos manter cerca de sete informações por vez em nossa mente", disse o Dr. Frank. "É muito difícil para nós obter uma imagem geral usando dezenas ou centenas de variáveis de uma só vez." Mas um computador pode considerar toda uma gama de marcadores vocais ao mesmo tempo, reunindo-os para uma avaliação mais precisa.
"O objetivo não é que [o computador] seja melhor que o médico", disse a Dra. Yael. No entanto, o potencial sem dúvida existe: em um estudo recente com pacientes com câncer de laringe, uma ferramenta automatizada de análise de voz sinalizou a doença com mais precisão do que os especialistas.
"Os algoritmos têm uma base de treinamento maior", disse a Dra. Ariana, criadora do ChatterBaby, um aplicativo que analisa o choro infantil. "Temos um milhão de amostras à nossa disposição para treinar os algoritmos. Acho que não ouvi um milhão de bebês diferentes chorando em toda a minha vida."
Então, quais doenças são mais promissoras para a análise da voz? O projeto Voice as a Biomarker vai se concentrar em cinco categorias.
Distúrbios vocais
(Tumores de laringe, paralisia das cordas vocais e lesões benignas na laringe)
Obviamente, as alterações vocais são indícios dessas doenças, que causam ruídos respiratórios ou "rouquidão", um tipo de irregularidade vocal. A rouquidão que se mantém por pelo menos duas semanas costuma ser um dos primeiros sinais do câncer de laringe. No entanto, pode levar meses — um estudo descobriu que a média foi de 16 semanas — para os pacientes consultarem um médico depois de notar as alterações. Mesmo assim, os otorrinolaringologistas diagnosticaram incorretamente alguns casos de câncer ao confiar apenas em indícios vocais.
Agora imagine um cenário diferente: o paciente fala em um aplicativo para celular e, em seguida, um algoritmo compara a amostra vocal com as vozes de pacientes com câncer de laringe. Por fim, o aplicativo mostra as chances estimadas de câncer de laringe, ajudando os médicos a decidir se devem encaminhar o paciente para o atendimento especializado.

Coletar dezenas de milhares de amostras de voz — o que pode ser feito por meio de um aplicativo para celular — é o primeiro passo para a Dra. Yael Bensoussan (à esquerda) e seus colaboradores, que esperam estabelecer as bases de algoritmos que podem ajudar a diagnosticar doenças pela voz.
Ou considere a disfonia espasmódica, distúrbio neurológico da voz que provoca espasmos nos músculos da laringe, causando uma voz tensa ou ofegante. Os médicos que não têm experiência com distúrbios vocais podem não identificar a doença. É por isso que o diagnóstico leva uma média de quase quatro anos e meio, de acordo com um estudo publicado no periódico Journal of Voice , e pode englobar desde o teste de alergia até a avaliação psiquiátrica, disse a Dra. Maria. A tecnologia da inteligência artificial treinada para reconhecer a doença pode ajudar a eliminar esses exames desnecessários.
Distúrbios neurológicos e neurodegenerativos
(Doença de Alzheimer, doença de Parkinson, acidente vascular cerebral e esclerose lateral amiotrófica)
Nas doenças de Alzheimer e de Parkinson, "uma das primeiras mudanças perceptíveis é a da voz", que geralmente aparece antes do diagnóstico formal, disse a Dra. Anais Rameau, médica, professora assistente de laringologia no Weill Cornell Medical College e também participante do projeto dos NIH. A doença de Parkinson pode suavizar a voz ou torná-la monótona, enquanto a doença de Alzheimer pode mudar o conteúdo da fala, levando a um aumento de hesitações e à preferência pelos pronomes em vez dos substantivos.
Na doença de Parkinson, as alterações vocais podem ocorrer décadas antes do comprometimento motor. Se os médicos estivessem aptos a detectar a doença nesta fase, antes do aparecimento dos tremores, conseguiriam encaminhar os pacientes para uma intervenção precoce, disse o Dr. Max Little, Ph.D., diretor de projeto da Parkinson's Voice Initiative. "Esse é o 'Santo Graal' da busca pela cura."
Novamente, o celular tem potencial. Em um estudo australiano de 2022 , um aplicativo alimentado por inteligência artificial foi capaz de identificar pessoas com doença de Parkinson por meio de breves gravações de voz, embora o tamanho da amostra tenha sido pequeno. Em uma escala maior, a Parkinson's Voice Initiative coletou cerca de 17 mil amostras de pessoas de todo o mundo. "O objetivo era detectar remotamente aqueles com a doença por meio de uma chamada telefônica", disse o Dr. Max. A proposta teve cerca de 65% de acurácia. "Embora isso não seja suficientemente preciso para uso clínico, mostra o potencial da ideia", pontuou ele.
O Dr. Frank trabalhou na equipe responsável pelo Winterlight, um aplicativo para iPad que analisa 550 aspectos da fala para detectar demência e doença de Alzheimer, bem como doenças mentais. "Nós implementamos o dispositivo em instituições de cuidados de longa duração", disse, com a intenção de identificar os pacientes que precisam de uma revisão mais aprofundada de sua capacidade mental. O acidente vascular cerebral é outra área de interesse, uma vez que a fala arrastada é uma medida altamente subjetiva, disse a Dra. Ariana. A tecnologia da inteligência artificial poderia fornecer avaliações mais objetivas.
Transtornos do humor e psiquiátricos
(Depressão, esquizofrenia e transtornos bipolares)
Não existem biomarcadores comprovados para o diagnóstico da depressão. No entanto, se você está se sentindo mal, há uma boa chance de que seus amigos possam identificar isso — até mesmo pelo telefone.

O aplicativo ChatterBaby usa aprendizado de máquina para analisar as frequências e os padrões do choro de um bebê a fim de determinar se ele está chorando porque está estressado, com fome ou com dor.
"Nós mostramos muito do nosso humor através da voz", disse a Dra. Maria. O transtorno bipolar também pode alterar a voz, que se torna mais alta e mais rápida durante es episódios maníacos, depois mais lenta e silenciosa nas crises depressivas. O episódio catatônico da esquizofrenia muitas vezes cursa com "uma voz muito monótona, robótica", disse a Dra. Ariana. "Tudo isso são dados que um algoritmo pode medir."
Já estão sendo usados aplicativos — muitas vezes experimentais — para monitorar vozes durante chamadas telefônicas, analisando velocidade, ritmo, volume e tom, a fim de prever alterações do humor. Por exemplo, o projeto PRIORI da University of Michigan está desenvolvendo um aplicativo de celular para identificar alterações do humor em pessoas com transtorno bipolar, especialmente alterações que possam aumentar o risco de suicídio.
O conteúdo da fala também pode deixar pistas. Em um estudo da UCLA, publicado no periódico PLoS One, pessoas com doenças mentais responderam pelo telefone a perguntas programadas por computador (similares a "como você esteve nos últimos dias?"). Um aplicativo analisou as escolhas de palavras, concentrando-se em suas mudanças ao longo do tempo. Os pesquisadores descobriram que a análise de humor pela inteligência artificial se alinhava bem com as avaliações dos médicos e que alguns participantes realmente se sentiam mais confortáveis conversando com um computador.
Distúrbios respiratórios
(Pneumonia e doença pulmonar obstrutiva crônica.)
Além da fala, os sons respiratórios como engasgo ou tosse podem apontar para doenças específicas. "A tosse do enfisema é diferente, a tosse da doença pulmonar obstrutiva crônica é diferente [da tosse causada por outras patologias]", disse a Dra. Yael. Os pesquisadores estão tentando descobrir se a covid-19 está ligada a uma tosse distinta.
Os ruídos respiratórios também podem servir como sinais. "Emitimos sons diferentes quando não conseguimos respirar", disse a Dra. Yael. Um deles é o estridor, um sibilo agudo muitas vezes resultante de algum bloqueio nas vias respiratórias. "Vejo muitas pessoas [com estridor] sendo mal diagnosticadas por anos — dizendo que têm asma, mas não têm", disse a médica. A análise desses sons pela inteligência artificial pode ajudar os médicos a identificar mais rapidamente as doenças respiratórias.
Doenças infantojuvenis da voz e da fala
(Atrasos de fala e linguagem, autismo)
Os bebês que posteriormente recebem diagnóstico de autismo choram de forma diferente já aos seis meses de idade, portanto um aplicativo como ChatterBaby pode ajudar a detectar crianças que precisam de intervenção precoce, disse a Dra. Ariana. O autismo está ligado a vários outros diagnósticos, como a epilepsia e os distúrbios do sono. Assim, analisar o choro de uma criança poderia levar os pediatras a procurar por uma série de doenças.
O ChatterBaby tem sido "incrivelmente preciso" em identificar quando os bebês estão com dor, afirmou a pesquisadora, porque a dor aumenta a tensão muscular, resultando em um choro mais alto e mais enérgico. O próximo objetivo: "Estamos coletando vozes de bebês de todo o mundo", disse a pesquisadora, e depois rastreando essas crianças por sete anos, avaliando se os sinais vocais precoces poderiam predizer distúrbios do desenvolvimento. Amostras vocais de crianças pequenas podem servir a um propósito semelhante.
E isso é apenas o começo
Por fim, a inteligência artificial consegue identificar alterações de voz imperceptíveis aos médicos e que podem estar relacionadas com doenças. Em um novo estudo da Mayo Clinic, certas caraterísticas vocais detectáveis pela inteligência artificial — mas não pelo ouvido humano — estavam ligadas a três vezes mais chances de acúmulo de placa nas artérias.
"A voz é um enorme espectro de vibrações", explica o médico e autor do estudo Dr. Amir Lerman. "Nós captamos apenas uma pequena parte [deste espectro]."
Os pesquisadores não sabem ainda por que doenças cardíacas causam alterações na voz, mas o sistema nervoso autônomo pode ter algum papel nessa mudança, já que ele regula a laringe, bem como a pressão arterial e a frequência cardíaca. O Dr. Amir disse que outras patologias, como doenças neurológicas e intestinais, podem alterar a voz de forma semelhante. Além do rastreamento do paciente, essa descoberta poderia ajudar os médicos a ajustar remotamente as doses de medicamentos, de acordo com esses sinais vocais inaudíveis.
"Espero que nos próximos anos isso seja colocado em prática", disse o Dr. Amir.
Mesmo diante dessa esperança, restam preocupações com a privacidade. A voz é um identificador protegido nos Estados Unidos pelo Health Insurance Portability and Accountability Act, lei federal que garante a privacidade de informações pessoais de saúde. Essa é uma das principais razões pelas quais ainda não existem grandes bancos de dados de voz, disse a Dra. Yael — e isso torna a coleta de amostras de crianças especialmente complexa. Mais preocupante talvez seja o potencial de diagnosticar doenças apenas pela voz. "Essa ferramenta pode ser usada em qualquer pessoa, de funcionários até o presidente", alertou a Dra. Anais.
O principal obstáculo é o fornecimento ético de dados para assegurar a diversidade das amostras vocais. Para o projeto Voice as a Biomarker, os pesquisadores estabelecerão cotas de voz para diferentes raças e etnias, garantindo que os algoritmos possam analisar com precisão uma variedade de sotaques. Também serão coletados dados de pessoas com dificuldades de fala.
Apesar desses desafios, os pesquisadores estão otimistas. "A análise vocal vai ser um grande equalizador e vai melhorar os desfechos na saúde", prevê a Dra. Ariana. "Estou muito feliz por estarmos começando a entender a força que a voz tem."
Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape.
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Fontes
Dra. Yael Bensoussan, médica, diretora no Health Voice Center da University of South Florida.
Dra. Maria Powell, Ph.D., professora assistente de cirurgia de cabeça e pescoço da Vanderbilt University.
Dra. Ariana Anderson, Ph.D., diretora no Laboratory of Computational Neuropsychology da UCLA.
Dr. Frank Rudzicz, Ph.D., cientista da computação no projeto Voice as a Biomarker of Health.
Dra. Anais Rameau, médica, professora assistente de laringologia na Weill Cornell Medical College.
Dr. Max Little, Ph.D., diretor na Parkinson's Voice Initiative.
Dr. Amir Lerman, médico, professor de medicina na Mayo Clinic Graduate School of Medicine.
Journal of Clinical Medicine: "Convolutional Neural Network Classifies Pathological Voice Change in Laryngeal Cancer with High Accuracy."
Journal of Voice: "Diagnostic Delays in Spasmodic Dysphonia: A Call for Clinician Education."
Acesso IEEE: "Parkinson's Disease Detection Using Smartphone Recorded Phonemes in Real World Conditions."
PLoS ONE: "Clinical state tracking in serious mental illness through computational analysis of speech."
Créditos:
Imagem principal: Fizkes/Dreamstime
Imagem 1: USF Health Voice Center
Imagem 2: Ariana Anderson
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Citar este artigo: A voz como um importante biomarcador de saúde - Medscape - 21 de dezembro de 2022.
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