Ao longo dos últimos 50 anos, os tratamentos do mieloma múltiplo evoluíram muito, e o transplante de medula óssea foi fundamental para isso. Mas qual é o papel desse tipo de transplante hoje em dia? E o das novas terapias? Essas e outras questões foram debatidas por especialistas durante sessão científica do XXIII Congresso Brasileiro de Oncologia Clínica (SBOC 2022), realizado no Rio de Janeiro.
O transplante de medula óssea deve necessariamente ser a primeira linha terapêutica para os pacientes elegíveis?
Para o Dr. Garles Miller Matias Vieira, médico hematologista afiliado ao Centro Paulista de Oncologia (CPO) ― Grupo Oncoclínicas de São Paulo, para pacientes com mieloma múltiplo em bom estado geral de saúde, o transplante de medula óssea autólogo é o tratamento de primeira linha.
Em sua apresentação no evento, o Dr. Garles defendeu o uso do transplante de medula óssea autólogo. Ele afirmou que, de acordo com a literatura, essa estratégia aumenta a sobrevida, principalmente para pacientes de alto risco. E o benefício se estende aos pacientes tratados com esquemas de indução menos potentes, capazes de provocar respostas menos profundas antes do transplante. [1,2,3]
Segundo o médico, o que se tem visto até o momento é que os novos esquemas de indução seguidos de transplante autólogo podem causar respostas mais profundas e maior ganho de sobrevida livre de progressão da doença. No entanto, pontuou Dr. Garles, nenhum esquema terapêutico sem transplante se mostrou superior.
Coube ao Dr. Daniel Goldberg Tabak, coordenador do setor de onco-hematologia na Dasa Oncologia do Rio de Janeiro, fazer um contraponto sobre o papel do transplante de medula óssea no tratamento de pacientes com mieloma múltiplo.
Para o Dr. Daniel, o transplante de medula óssea precoce talvez seja uma estratégia supervalorizada. Ele chamou a atenção, por exemplo, para a doença residual mínima (DRM). Segundo o palestrante, a literatura mostra que pacientes que atingem DRM negativa apresentam melhor evolução, tendo ou não sido submetidos ao transplante. [4] “Talvez a questão não seja o transplante, mas sim atingir a DRM negativa”, ressaltou.
Além disso, ressaltou que a literatura indica que o transplante de medula óssea não aumenta a sobrevida global dos pacientes com mieloma múltiplo, embora prolongue a sobrevida livre de progressão. O período sem tratamento também não é estendido pelo transplante. E, no que diz respeito a remissões mais profundas, apesar de serem possíveis, o Dr. Daniel destacou que ainda não se sabe exatamente o impacto da indução com quatro medicamentos.
Dados de uma revisão do JAMA Oncology [5] chamam a atenção, segundo o médico, porque mostram que pacientes tratados com protocolo intenso — terapia combinada de carfilzomibe, lenalidomida, dexametasona e daratumumabe — tiveram, no período de um ano de acompanhamento, taxa de sobrevida livre de progressão de quase 100%. E a taxa de detecção de DRM negativa alcançou quase 50%. “É possível, então, que tratamentos mais eficazes produzam o mesmo resultado do transplante”, destacou o Dr. Daniel.
Para o Dr. Angelo Maiolino, médico na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e no Oncologia Americas, a decisão acerca do transplante deve levar em consideração alguns aspectos, como a idade do paciente, se ele apresenta bom estado geral de saúde, se é de alto risco e também se tem acesso às novas terapias. Ele pontuou, ainda, que lenalidomida e daratumumabe não estão disponíveis no sistema público de saúde do Brasil, e os profissionais ainda enfrentam dificuldades para realizar transplantes.
Segundo o coordenador da sessão, Dr. Vanderson Rocha, professor no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), médico na Rede D'Or e consultor na University of Oxford, quando se trata do contexto brasileiro, o transplante tem papel especialmente importante nos tratamentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). E, mesmo no âmbito da saúde suplementar, o custo é um ponto relevante. “O preço do transplante é ínfimo quando comparado com o tratamento com lenalidomida e daratumumabe”, lembrou, acrescentando que os médicos muitas vezes enfrentam dificuldades de entrar em acordo com os convênios para estabelecer o que consideram o melhor tratamento.
Novas terapias
O Dr. Edvan Crusoe, médico hematologista da Universidade Federal da Bahia (UFBA), destacou o papel de novos fármacos, como os anticorpos monoclonais biespecíficos, que têm se tornado essenciais para ganho de sobrevida, principalmente para pacientes com mieloma múltiplo triplo-refratário, ou seja, um tipo de tumor refratário a inibidores de proteassoma, a imunomoduladores e a anticorpo monoclonal anti-CD38.
O belantamabe mafodotina, um medicamento anti-BCMA (contra o antígeno de maturação de linfócitos B), por exemplo, teve taxa de resposta geral de cerca de 30% no estudo DREAMM-2. [6] A dosagem de 2,5 mg/kg do fármaco foi associada à sobrevida global de quase 15 meses. O Dr. Edvan destacou que “até então, esses indivíduos morriam em até 12 meses e, agora, ultrapassaram essa barreira com o uso isolado desse medicamento”.
Outro exemplo citado pelo médico foi o teclistamabe, um anticorpo biespecífico direcionado contra o CD3 e o BCMA, aprovado pela European Medicines Agency (EMA) e pela Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos. Nesse caso, estudos apontaram taxas de resposta acima de 60% e de resposta completa de cerca de 45%. [7]
Apesar dos benefícios observados, o Dr. Edvan ressaltou que os resultados desses novos tratamentos foram obtidos em pesquisas clínicas, ou seja, em testes feitos com pacientes selecionados, o que difere da prática clínica. No mundo real, os pacientes frequentemente apresentam complicações como disfunção renal, envolvimento do sistema nervoso central e leucemia de células plasmocitárias.
No cenário de novas estratégias, vem ganhando destaque a terapia com células CAR-T.
Segundo a Dra. Lucila Kerbauy, médica hematologista no Hospital Israelita Albert Einstein, o tratamento com células CAR-T anti-BCMA tem mostrado resultados surpreendentes. É o que ocorre, por exemplo, com o idecabtagene vicleucel, [8] que hoje em dia já é comercializado nos EUA e se mostra promissor mesmo em ensaios feitos com pacientes comuns. [9]
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o primeiro tratamento com células CAR-T: o ciltacabtagene autoleucel. [10]No entanto, a Dra. Lucila lembrou que ele ainda não foi precificado, portanto ainda não está disponível no mercado.
Ela ainda destacou que instituições brasileiras têm participado de estudos clínicos, como o CARTITUDE-5, [11]e também existem iniciativas acadêmicas para desenvolver um medicamento de CAR-T anti-BCMA próprio.
Além disso, a palestrante afirmou que cientistas de todo o mundo estão trabalhando em estratégias de tratamento com CAR-T em outros alvos. Contra GPRC5D, por exemplo, eles também têm encontrado resultados animadores. [12]
Ao comparar os tratamentos com anticorpos monoclonais biespecíficos com as terapias que usam células CAR-T, o Dr. Edvan destacou que o primeiro já está pronto para uso, o que facilita sua aplicação. Por outro lado, é uma terapia contínua, enquanto a terapia com CAR-T é feita com uma única infusão.
De qualquer forma, apesar dos benefícios, vale lembrar que os novos tratamentos também têm sido associados a efeitos colaterais. A síndrome de liberação de citocinas e a síndrome de neurotoxicidade associada ao efeito imune celular, estão entre os eventos adversos observados tanto com o uso de anticorpos monoclonais biespecíficos quanto com células CAR-T e, segundo os palestrantes, “deve-se estar atento para tais eventos”.
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Citar este artigo: Transplante de medula óssea permanece relevante no tratamento do mieloma múltiplo? - Medscape - 1 de dezembro de 2022.
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