COMENTÁRIO

O que esperar do AHA 2022: 5 estudos selecionados a dedo pelo Dr. Mandrola

Dr. John M. Mandrola

Notificação

4 de novembro de 2022

Aqui, a minha seleção dos cinco estudos a serem apresentados nas sessões científicas da American Heart Association (AHA), em Chicago, que mais valem a pena comentar.

Torasemida vs. Furosemida: batalha de plebeus

Eu prefiro a torasemida à furosemida. É um instinto, consequência de anos prescrevendo diuréticos para pacientes com insuficiência cardíaca. A torasemida é mais potente, tem melhor absorção gastrointestinal e sua meia-vida é maior.

Na primeira sessão de Late-Breaking Clinical Trials da AHA, ficaremos a par dos resultados do ensaio clínico TRANSFORM-HF, que randomizou uma grande e diversa amostra de pacientes com insuficiência cardíaca para receber a apresentação oral de um dos dois fármacos.

Diferentemente dos ensaios clínicos sobre insuficiência cardíaca típicos, o TRANSFORM-HF foi concebido para pegar leve com os pacientes e os centros; o acompanhamento foi feito por telefone e o tratamento, pelo médico assistente do paciente.

Talvez a melhor parte seja os desfechos: morte é o desfecho primário, e o total de hospitalizações (não apenas as hospitalizações por insuficiência cardíaca) é um desfecho secundário. O total de hospitalizações sempre deve constar entre os desfechos avaliados em ensaios clínicos sobre insuficiência cardíaca, pois o ideal para o paciente é que não haja internações.

Acho improvável que a torasemida influencie a mortalidade total, mas para descobrir é preciso estudá-la. Escolhi este como o principal estudo porque os médicos usam esses medicamentos quase todos os dias.

Escolha de diuréticos pelo especialista vs. pelo médico assistente

Os pareceristas (especialistas) que elaboram as diretrizes recomendam a clortalidona em vez da hidroclorotiazida como tratamento de primeira linha da hipertensão arterial sistêmica. No entanto, ainda não havia sido realizado nenhum ensaio clínico comparando os dois medicamentos.

Quase todos os médicos que conheço usam hidroclorotiazida em vez da clortalidona. Os médicos atuantes sabem mais do que os pareceristas que elaboram as diretrizes?

Vamos descobrir quando o Veterans Affairs Diuretic Comparison Project (DCP) divulgar os resultados de um ensaio clínico randomizado pragmático comparando os dois medicamentos. O desfecho primário é um composto de eventos cardiovasculares não fatais e morte, exceto por câncer.

Além de testar se o diurético preferido pelos especialistas é melhor, outra razão para gostar deste ensaio clínico é que está incorporado no prontuário eletrônico e todos os dados são obtidos através das dispensações.

Se um médico já vai prescrever diuréticos e há muitas opções, faz sentido simplesmente randomizar os pacientes no local de atendimento. Então, em vez de seguir o instinto dos médicos mais velhos, obtemos dados. Convém que os nossos prontuários eletrônicos façam mais do que otimizar o faturamento.

Aguardo com expectativa tanto os dois resultados e como a discussão sobre os métodos do estudo DCP.

Corra e faça a ablação: PROGRESSIVE-AF

A AHA vai apresentar mais um estudo sobre ablação precoce em pacientes com fibrilação atrial de início recente. O ensaio clínico PROGRESSIVE-AF compara o isolamento da veia pulmonar por crioablação a antiarrítmicos para a prevenção da fibrilação atrial persistente. Os desfechos secundários são o tempo em fibrilação atrial, a qualidade de vida e a utilização dos serviços de saúde.

Tenho grande respeito pelo primeiro autor, o médico Dr. Jason Andrade e seus colaboradores. A minha crítica não deve ser levada para o lado pessoal, mas os ensaios clínicos sobre ablação precoce da fibrilação atrial não estão fazendo o campo avançar. Já sabemos que o isolamento da veia pulmonar leva a menos fibrilação atrial do que os antiarrítmicos.

Nosso platô de 20 anos no tratamento da fibrilação atrial não se deve a quão cedo ou quão bem destruímos o miocárdio atrial. Trata-se de um problema de conhecimento.

Precisamos resolver as causas da fibrilação atrial urgentemente. Até onde sabemos, os episódios de fibrilação atrial no eletrocardiograma (ECG) são um sintoma, não uma doença. A ablação pode simplesmente visar um sintoma, o que seria bom se soubéssemos que é melhor do que o placebo. Mas não sabemos.

Também não sabemos como a ablação precoce se sairia comparada a um tratamento clínico multidisciplinar da fibrilação atrial, usando orientação, segurança, controle dos fatores de risco e um pouco de tempo antes de abrir os cateteres.

É provável que o PROGRESSIVE-AF traga bons resultados. Depois, a ablação precoce vai ganhar ainda mais impulso. A indústria venderá mais produtos; os médicos e os hospitais lucrarão mais.

No entanto, temo que a forma terapêutica precoce engesse ainda mais um campo que costumava ser conhecido pela sua capacidade de compreender a fisiopatologia da arritmia.

IRONMAN testa coisas que fazem sentido

Pacientes com insuficiência cardíaca geralmente têm baixos níveis de ferro, algo associado a piores sintomas e prognóstico reservado, mesmo na ausência de anemia franca. O ferro é essencial para a transferência do oxigênio, de modo que faz sentido repô-lo quando os níveis estiverem baixos.

No entanto, ensaios clínicos menores encontraram apenas uma discreta melhora dos sintomas. O AFFIRM-AHF, um ensaio clínico que avaliou a administração de dose única de ferro antes da alta, mal conseguiu alcançar seu desfecho primário de morte de origem cardiovascular e hospitalização por insuficiência cardíaca.

O ensaio clínico aberto, com o simpático nome IRONMAN, designou aleatoriamente pacientes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida e deficiência de ferro para receberem, além do tratamento recomendado pelas diretrizes, derisomaltose férrica intravenosa ou nenhuma infusão. As infusões foram feitas a cada quatro meses se a deficiência de ferro persistisse.

O desfecho primário é um composto de hospitalizações por insuficiência cardíaca e morte de origem cardiovascular. O ensaio clínico foi feito em 70 hospitais do Reino Unido. Os pesquisadores visaram manter as reservas de ferro dos pacientes durante todo o processo, o que o diferencia dos ensaios clínicos sobre reposição de ferro anteriores.

Eu destaco o IRONMAN porque qualquer resultado pode contribuir para o nosso conhecimento: seria bom se o ferro trouxesse benefícios clinicamente significativos. O problema, naturalmente, é que o tratamento da insuficiência cardíaca já é muito bom. Resultados insignificativos ou a ocorrência de algum prejuízo também agregariam ao nosso conhecimento, reforçando a noção de que tratamentos que fazem sentido na teoria nem sempre dão certo nos ensaios clínicos randomizados.

CRISPR /Cas9 para amiloidose por transtirretina: a promessa da ciência

O último estudo que comento nem chega a ser um ensaio clínico. É a descrição da edição CRISPR/Cas9 do gene TTR em pacientes com amiloidose por transtirretina com miocardiopatia pela primeira vez em humanos.

A miocardiopatia amiloide por transtirretina é uma causa cada vez mais reconhecida de cardiomiopatia restritiva. O problema é o acúmulo de fibrilas de transtirretinas mal dobradas no interior do miocárdio.

A transtirretina é uma proteína circulante transportadora de vitamina A e tiroxina, sendo principalmente produzida no fígado. A transtirretina normalmente circula no organismo em forma tetramérica composta por monômeros ricos em camada 4 β.

Na amiloide por transtirretina hereditária, mutações no gene TTR, localizado no cromossomo 18, podem levar a alterações estruturais no TTR, o que predispõe ao desdobramento. Este desdobramento anômalo leva à deposição na pele e no coração, o que então causa as manifestações clínicas. A amiloide por transtirretina selvagem, a forma mais comum de amiloide por transtirretina, ocorre quando o processo normal de envelhecimento causa desdobramento da proteína transtirretina.

No ano passado, um grande grupo de pesquisadores mostrou que poderia alterar a codificação genética de proteínas transtirretinas anômalas e reduzir sua concentração em um paciente com neuropatia por transtirretina hereditária.

Isto é possível pelo sistema CRISPR/Cas9. É formado por um ácido ribonucleico (ARN) mensageiro de encapsulamento de nanopartículas lipídicas para Cas9 e um ARN de guia único visando a transtirretina.

Na AHA, saberemos os resultados dessa técnica de modificação do ácido desoxirribonucleico (ADN) em um paciente com miocardiopatia amiloide por transtirretina hereditária. Este artigo não vai influenciar a prática de amanhã, mas diante do potencial de modificar genes para curar doenças pode ser que a gente esteja na iminência de algo grande.

Lembre-se, ninguém poderia ter imaginado como seria após a descoberta dos antibióticos ou após a internet. Estamos em um momento desses com a tecnologia de reescrita genética?

A AHA apresenta muitos ensaios clínicos e estudos para cobrir em um panorama. Eu estarei no evento e espero encontrar alguns de você por lá. Por favor, me dê um oi caso a gente se encontre pelos corredores.

John Mandrola é eletrofisiologista cardíaco em Kentucky, EUA; é também escritor e podcaster para o Medscape. Ele adota uma abordagem conservadora do exercício da medicina. Participa de pesquisas clínicas e escreve frequentemente sobre as evidências clínicas disponíveis. 

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As opiniões acima pertencem ao autor e não necessariamente refletem o ponto de vista da WebMD ou do Medscape.

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