A esclerose múltipla é uma doença autoimune do sistema nervoso central (SNC) caracterizada por inflamação crônica, desmielinização, gliose e perda neuronal. O curso dessa doença pode ser recorrente-remitente ou progressivo.
Os medicamentos modificadores da doença são a base do tratamento da esclerose múltipla. O tratamento precoce deve ser iniciado após a confirmação do diagnóstico, com o objetivo de reduzir a atividade inflamatória da doença, o que, por sua vez, diminui o risco de novas lesões e novos sintomas, retarda a evolução para formas progressivas e, dessa forma, preserva a funcionalidade dos pacientes por mais tempo.
Várias modalidades de tratamentos não farmacológicos também têm sido estudadas e são frequentemente preconizadas no manejo clínico desses pacientes. Os tratamentos não farmacológicos são voltados tanto para sintomas específicos, como alterações cognitivas e fadiga, quanto para contribuir com o controle da atividade inflamatória. O papel de diferentes dietas tem sido explorado tanto em modelos animais quanto em humanos com esclerose múltipla.
A maioria dos estudos realizados em humanos até o momento foram pequenos e não controlados, limitando a generalização dos achados. A maioria também foi de curta duração, limitando a capacidade de encontrar alterações clinicamente significativas. Portanto, ainda não há evidências suficientes para recomendar o uso rotineiro de uma dieta específica. Há ensaios clínicos em andamento avaliando muitas dietas, incluindo a dieta cetogênica.
A dieta cetogênica é rica em gordura e pobre em carboidratos, e tem sido usada há décadas como uma abordagem não farmacológica para tratar distúrbios metabólicos e formas de epilepsia pediátrica refratária. Nos últimos anos, o entusiasmo em relação à dieta cetogênica aumentou na comunidade científica, devido à evidência de que a adoção dessa dieta reduziu, em modelos animais, alterações patológicas associadas a doenças neurológicas, como esclerose múltipla, acidente vascular cerebral, lesão da medula espinhal, doença de Parkinson e doença de Alzheimer.
Os principais corpos cetônicos (beta-hidroxibutirato, acetoacetato e acetona) têm propriedades neuroprotetoras potenciais, além de produzirem efeitos diretos sobre proteínas inflamatórias específicas, fatores de transcrição, espécies reativas de oxigênio, mitocôndrias, modificações epigenéticas e a composição do microbioma intestinal. Os níveis típicos de corpos cetônicos circulantes no sangue são de 100 a 250 μM; e a cetose fisiológica ou nutricional reduz esses níveis para a faixa de 0,5 a 5,0 mM. Em contraste, os níveis séricos de corpos cetônicos na cetoacidose patológica podem atingir até 15 a 25 mM. Os níveis de cetonas no sangue e na urina são frequentemente medidos para avaliar a adesão à dieta, embora a concentração de cetonas nem sempre esteja correlacionada com melhores resultados.
Em relação à esclerose múltipla, as primeiras evidências experimentais e clínicas começam a ser mostradas. Em um modelo murino com encefalomielite autoimune, pesquisadores mostraram que ciclos periódicos de três dias de uma “fast mimicking diet” (FMD) foram eficazes na melhora da desmielinização e dos sintomas. A FMD reduziu a gravidade clínica em todos os camundongos e reverteu completamente os sintomas em 20% dos animais. Essas melhoras foram associadas ao aumento dos níveis de corticosterona e números de células T reguladoras, e à redução dos níveis de citocinas pró-inflamatórias, células TH1 e TH17 e células apresentadoras de antígenos. Além disso, a FMD promoveu a regeneração de células precursoras de oligodendrócitos e a remielinização, sugerindo efeitos na supressão da autoimunidade e na remielinização.
Com base nesses resultados experimentais, surgiram as primeiras propostas de uso clínico. Um estudo-piloto avaliou a segurança e a tolerabilidade de uma dieta de Atkins modificada, um tipo de dieta cetogênica, em indivíduos com esclerose múltipla remitente-recorrente (EMRR). Foram incluídos 20 pacientes com EMRR em um estudo aberto, de braço único, com seis meses de duração. A adesão à dieta de Atkins modificada foi monitorada objetivamente por meio de testes de urina diários para a verificação dos níveis de cetona. Escores de fadiga e depressão, e adipocinas em jejum, foram obtidos no início do estudo e ao longo do uso da dieta. Os participantes foram submetidos a uma ressonância magnética intracraniana no início do estudo e a outra após seis meses.
Nenhum paciente teve piora da doença após o início da dieta. Dezenove indivíduos (95%) seguiram a dieta de Atkins modificada por três meses e 15 (75%) por seis meses. Foram observadas melhoras antropométricas, com redução no índice de massa corporal. Os escores de fadiga e depressão também melhoraram. Houve redução significativa da leptina sérica. Esse estudo-piloto mostrou que a dieta de Atkins modificada é segura e bem tolerada por indivíduos com EMRR, melhorando a fadiga e a depressão, além de promover perda ponderal e reduzir as adipocinas pró-inflamatórias.
O mesmo grupo de pesquisadores realizou um estudo de fase II, publicado este ano no periódico Journal of Neurology, Neurosurgery, and Psychiatry, para avaliar o uso da dieta cetogênica por pacientes com EMRR. O estudo incluiu 65 pacientes com EMRR ao longo de seis meses. A adesão foi monitorada por meio de testes de urina diários para a verificação dos níveis de cetona. Foram avaliados escores de fadiga, depressão e qualidade de vida, além de adipocinas em jejum e variáveis clínicas relacionadas à esclerose múltipla. Oitenta e três por cento dos participantes aderiram à dieta cetogênica durante o estudo.
Os indivíduos exibiram reduções significativas na massa gordurosa e mostraram um declínio de quase 50% nos escores de fadiga e depressão. Houve melhora significativa da qualidade de vida física e mental, bem como na Expanded Disability Status Scale (de 2,3 ± 0,9 para 1,9 ± 1,1; p < 0,001) caminhada de seis minutos e teste dos nove buracos e pinos. Também houve melhora das concentrações das adipocinas.
Esse estudo de fase II confirma os dados do estudo-piloto, mostrando melhora na fadiga, depressão, qualidade de vida, incapacidade neurológica e inflamação relacionada ao tecido adiposo em pacientes com EMRR quando submetidos ao tratamento com a dieta cetogênica.
Os dados iniciais mostram boa segurança, tolerabilidade e aceitação dessa modalidade de dieta nessa população de pacientes. As evidências iniciais mostram um potencial benefício terapêutico da dieta cetogênica, justificando novos estudos prospectivos e controlados.
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Citar este artigo: Dieta cetogênica para pacientes com esclerose múltipla remitente-recorrente: primeiras evidências - Medscape - 3 de novembro de 2022.
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