Digite no Google a palavra "dopamina" e você vai descobrir que seus apelidos são o "hormônio da felicidade" e a "molécula do prazer", e que está entre os produtos químicos mais importantes em nossos cérebros. Com o jornal The Guardian chamando-a de "a Kim Kardashian dos neurotransmissores", a dopamina tornou-se uma verdadeira coqueluche da ciência – pessoas no mundo inteiro tentam melhorar o seu estado de espírito com jejum de dopamina e molhos de dopamina.
Há um século, no entanto, a dopamina recém-descoberta era vista como um produto químico pouco inspirador, nada mais do que um precursor da noradrenalina. Foram necessários vários cientistas teimosos e diligentes para mudar essa noção.
Levodopa: um precursor indiferente
Quando Casimir Funk, bioquímico polonês que descobriu as vitaminas, sintetizou pela primeira vez o precursor da dopamina levodopa em 1911, ele não tinha ideia de quão importante a molécula viria a ser para a farmacologia e a neurobiologia. Markus Guggenheim, o bioquímico suíço que isolou a levodopa das favas (Vicia faba) em 1913, também não fazia ideia. Guggenheim administrou 1 g de levodopa em um coelho, sem consequências negativas aparentes. Ele então preparou uma dose maior (2,5 g) e testou-a em si mesmo. "Dez minutos depois, eu me senti muito nauseado, vomitei duas vezes", escreveu em seu artigo. No organismo, a levodopa é convertida em dopamina, que pode ter ação emética – um efeito que Guggenheim não compreendeu. Ele simplesmente abandonou seu estudo humano, erroneamente concluindo, com base em sua pesquisa animal, que a levodopa era "farmacologicamente bastante indiferente".
Na mesma época, vários cientistas de toda a Europa sintetizaram com sucesso a dopamina, mas essas descobertas foram arquivadas sem grande alarde. Nas próximas três décadas, a dopamina e a levodopa foram empurradas para a obscuridade acadêmica. Pouco antes da Segunda Guerra Mundial, um grupo de cientistas alemães mostrou que a levodopa é metabolizada em dopamina no organismo, enquanto outro pesquisador alemão, Hermann Blaschko, descobriu que a dopamina é uma intermediária na síntese da noradrenalina. Mesmo esses achados, contudo, não foram imediatamente aceitos.

Detetives da dopamina. Linha superior, da esquerda para a direita: Casimir Funk, Arvid Carlsson, Oleh Hornykiewicz. Linha inferior: Markus Guggenheim, Bernard Brodie, Hermann (Hugh) Blaschko.
A história da dopamina ganhou velocidade no pós-guerra, com a observação de que o hormônio estava presente em vários tecidos e líquidos orgânicos, embora em nenhum lugar de modo tão abundante quanto no sistema nervoso central. Intrigado, Blaschko, que (depois de fugir da Alemanha nazista, mudar o seu nome para Hugh, e começar a trabalhar na Oxford University no Reino Unido) levantou a hipótese de que a dopamina poderia não ser um precursor comum da noradrenalina – precisaria de algumas funções fisiológicas próprias. Ele pediu ao seu colega de pós-doutoramento, Oleh Hornykiewicz, para testar algumas ideias. Hornykiewicz logo confirmou que a dopamina reduziu a pressão arterial em cobaias, provando que tinha, de fato, uma atividade fisiológica independente de outras catecolaminas.
Reserpina e orelhas de coelhos
Enquanto Blaschko e Hornykiewicz estavam intrigados com o papel fisiológico da dopamina no organismo, do outro lado do Atlântico, no National Heart Institute em Maryland, Estados Unidos, o farmacologista Bernard Brodie e seus colaboradores criavam as bases para a descoberta do papel da dopamina no cérebro.
Alerta de spoiler: O trabalho de Brodie mostrou que um novo fármaco psiquiátrico conhecido como reserpina era capaz de esgotar inteiramente os depósitos cerebrais de serotonina e ― o que é ainda mais importante, como acabou vindo à tona — de mimetizar os sintomas neuromusculares típicos da doença de Parkinson. Sua relação com a dopamina foi feita pelo novo colega de laboratório Arvid Carlsson, que mais tarde ganharia o Prêmio Nobel.
Derivada da pimenta-do-diabo, cujo nome científico é Rauwolfia serpentina (planta que por séculos foi usada na Índia para o tratamento de doenças mentais, insônia e mordidas de cobra), a reserpina foi introduzida no ocidente como tratamento da esquizofrenia.
Fez maravilhas. Em 1954, a imprensa elogiou os resultados “surpreendentes” e aparentemente “incríveis” no tratamento de pacientes “irremediavelmente insanos”. Entretanto, a reserpina tinha uma desvantagem. Os relatos rapidamente mudaram de tom sobre os graves efeitos colaterais do medicamento, dentre os quais cefaleia, tonturas, vômitos e, muito mais preocupantes, sinais e sintomas mimetizando a doença de Parkinson, da rigidez muscular aos tremores.
Brodie observou que, ao injetar a reserpina, os animais ficaram completamente imóveis. A serotonina quase desapareceu de seus cérebros, mas estranhamente, as substâncias que estimulam a produção da serotonina não reverteram a imobilidade dos coelhos.
Carlsson percebeu que outras catecolaminas deveriam fazer parte dos efeitos colaterais da reserpina, e começou a procurar as responsáveis. O cientista voltou para a Suécia, seu país de origem, e providenciou um espectrofotofluorímetro. Numa de suas experiências, Carlsson injetou reserpina em dois coelhos, o que fez com que os animais ficassem catatônicos, com as orelhas caídas. Após os pesquisadores injetarem levodopa nos animais, em 15 minutos, os coelhos estavam pulando, com as orelhas orgulhosamente eretas. "Estávamos tão entusiasmados quanto os coelhos", Carlsson recordou mais tarde em uma entrevista em 2016. Carlsson se deu conta de que, como não havia noradrenalina nos cérebros dos coelhos, a depleção da dopamina deve ter sido diretamente responsável pela produção dos efeitos inibitórios motores da reserpina.
Os céticos são silenciados
Em 1960, entretanto, a comunidade médica ainda não estava pronta para aceitar que a dopamina não era nada mais que um intermediário desinteressante entre a levodopa e a noradrenalina. Em um prestigiado simpósio de Londres, Carlsson e dois colaboradores apresentaram a hipótese de que a dopamina poderia ser um neurotransmissor, implicando-a assim na doença de Parkinson. Eles receberam duras críticas. Alguns especialistas disseram que a levodopa não era nada além de um veneno. Mais tarde, Carlsson lembrou que enfrentou "um ceticismo profundo e quase unânime em relação aos [seus] pontos de vista".
Isso mudaria rapidamente. Hornykiewicz, o bioquímico que havia descoberto antes os efeitos hipotensores da dopamina, testou as ideias de Carlsson, utilizando os cérebros post mortem de pacientes com doença de Parkinson. Parecia que Carlsson tinha razão: diferentemente dos cérebros saudáveis, o corpo estriado das pessoas com doença de Parkinson não continha praticamente nenhuma dopamina. A partir de 1961, em colaboração com o neurologista Walther Birkmayer, Hornykiewicz injetou levodopa em 20 pacientes com doença de Parkinson e observou uma melhora "milagrosa” (embora temporária) da rigidez, da imobilidade e da afasia.
No final da década de 1960, a levodopa e a dopamina estavam nas manchetes dos jornais. Um artigo do New York Times de 1969 descreveu melhoras espetaculares semelhantes nos pacientes com doença de Parkinson tratados com levodopa. Um paciente que tinha chegado ao hospital afásico, com os punhos cerrados e fácies cérea, foi subitamente capaz de caminhar até o consultório do médico e até mesmo de correr. "Eu posso dizer que sou um ser humano", disse aos repórteres. Embora o tratamento fosse caro – equivalente a 210 dólares em 2022 – os médicos sofreram um dilúvio de pedidos de "dopa". Até hoje, a levodopa continua sendo o padrão-ouro do tratamento da doença de Parkinson.
Ainda mal compreendida
No entanto, a história da dopamina não se refere apenas à doença de Parkinson, mas estende-se ao tratamento da esquizofrenia e da dependência química. Quando, na década de 1940, um cirurgião militar francês começou a dar um novo anti-histamínico, a prometazina, para evitar o choque nos soldados submetidos à cirurgia, ele notou um efeito secundário bizarro: os soldados ficavam eufóricos, mas estranhamente calmos ao mesmo tempo.
Depois do fármaco ter sido modificado pelo acréscimo de um átomo de cloro e renomeado clorpromazina, rapidamente se tornou um tratamento da psicose. Na época, ninguém fez a relação com a dopamina. Os médicos à época acreditavam que o medicamento acalmava as pessoas a partir da redução da temperatura corporal (antigamente, envolver pacientes com doenças mentais em lençóis frios e molhados era uma abordagem terapêutica comum). No entanto, tal como a reserpina, a clorpromazina produziu uma gama de efeitos secundários nocivos que mimetizaram a doença de Parkinson. Isso levou um farmacologista holandês, Jacques van Rossum, à hipótese de que o bloqueio do receptor de dopamina poderia explicar os efeitos antipsicóticos da clorpromazina – uma ideia que ainda é amplamente aceita.
Na década de 1970, a dopamina fora associada à dependência química com base em pesquisas realizadas em roedores, e esta ideia inovadora conquistou a imaginação das pessoas ao longo das décadas seguintes. Um artigo sobre a dopamina, intitulado "Como nos viciamos” (How We Get Addicted), foi capa da Time em 1997.

No entanto, à medida que a ligação entre a dopamina e dependência se difundiu, também foi simplificada demais. Segundo um artigo de 2015 publicado na Nature Reviews NeuroScience, a seguir houve uma onda de pesquisas de baixa qualidade (irreplicáveis e sem poder estatístico), que levou os autores a concluírem que somos "viciados na teoria da dopamina do vício". Quase todos os prazeres do universo estavam sendo atribuídos à dopamina, desde [os prazeres associados a] comer alimentos gostosos e jogar jogos de computador até ao sexo, à música e aos banhos quentes. Como a ciência recente mostra, entretanto, a dopamina não está simplesmente relacionada com o prazer, está relacionada com a previsão de recompensa, a resposta ao estresse, à memória, ao aprendizado, e até mesmo ao funcionamento do sistema imunitário. Desde a sua primeira síntese, no início do século XX, a dopamina tem sido muitas vezes mal compreendida e excessivamente simplificada, e parece que a história se está se repetindo agora.
Em uma de suas últimas entrevistas, Carlsson, que faleceu aos 95 anos em 2018, alertou para não “ficarem brincando com a dopamina”, especialmente quando se trata de prescrever medicamentos com ação inibitória neste neurotransmissor. "A dopamina participa de tudo o que acontece nos nossos cérebros, de todas as funções importantes", disse o ganhador prêmio Nobel.
Devemos ter cautela com a forma de lidarmos com um sistema tão delicado e ainda tão pouco desvendado.
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Imagem principal: Getty Images
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Citar este artigo: A verdade sobre o 'hormônio da felicidade': por que não 'brincar' com a dopamina - Medscape - 19 de outubro de 2022.
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