Até a segunda metade do século XX, acreditava-se que a cavidade uterina era estéril. Desde quando os avanços tecnológicos facilitaram o estudo do microbioma, inclusive do trato genital, [1] o papel desses microrganismos na fertilidade das mulheres em idade reprodutiva vem sendo motivo de pesquisa. Existe um “microbioma ideal” para a fertilidade? Modificar o microbioma da cavidade uterina pode aumentar a fertilidade? Ainda não há uma resposta científica definitiva para essas perguntas.
Alguns estudos concluíram que o microbioma uterino considerado saudável é composto principalmente de bactérias do gênero Lactobacillus, mas outros não observaram predominância dos Lactobacillus na cavidade uterina em microbiomas uterinos saudáveis. A presença de outros microrganismos, como Gardnerella vaginalis, foi associada a maus desfechos após tentativas de fertilização in vitro como, por exemplo, falha na implantação do embrião e abortamento espontâneo.
Também é possível que um microbioma endometrial fisiológico seja saudável mesmo na presença de poucas bactérias patogênicas. E devem ser consideradas as respostas do hospedeiro, pois estas modulam muitos aspectos da concepção humana, sendo que variações do microbioma se correlacionam com idade, alterações hormonais, etnia, atividades sexuais e presença de dispositivo intrauterino. [2]
Em ocasião do XXVI Congresso Brasileiro de Reprodução Assistida, o ginecologista e obstetra, Dr. Carlos Simón, professor na Universitat de València, na Espanha, no hospital universitário da Harvard University e no Baylor College of Medicine, os dois últimos nos Estados Unidos, esteve em São Paulo e conversou com o Medscape em português. Dr. Carlos, que é espanhol, é referência internacional em estudos do microbioma uterino, e criou um teste de receptividade endometrial.
“O que se sabe é que há um microbioma no útero humano. Graças ao sequenciamento de próxima geração (NGS do inglês, Next-Generation Sequencing), temos o ADN dos micróbios. Há um microbioma que, se alterado, afeta a implantação [embrionária]. Identificamos que os Lactobacillus são os [microrganismos] bons, mas se houver estreptococos, Gardnerella ou outros micróbios, a implantação [do embrião] é afetada.”
No ano de 2018, a equipe do Dr. Carlos publicou um estudo-piloto que avaliou o microbioma de 30 pacientes durante o tratamento de fertilização. Verificou-se que, quando houve alteração do microbioma, a taxa de implantação caiu pela metade e a taxa de abortamento duplicou. [] 3]
Após essa pesquisa, também em 2018, a equipe publicou um estudo multicêntrico, prospectivo e observacional. Foi utilizada a técnica de sequenciamento genético de 16S ARNr para analisar amostras de fluido endometrial e biópsia antes da transferência de embriões em uma coorte de 342 pacientes inférteis e sem sintomas de infecção. As participantes foram submetidas à uma técnica de fertilização em 16 centros. Os casos de falha foram associados a disbiose endometrial, com a presença de Atopobium, Bifidobacterium, Chryseobacterium, Gardnerella, Haemophilus, Klebsiella, Neisseria, Staphylococcus e Streptococcus. Em contraste, Lactobacillus foi consistentemente enriquecido em pacientes com desfechos de nascidos vivos. Os autores concluíram que a composição da microbiota endometrial antes da transferência de embriões é um útil biomarcador de desfechos reprodutivos. [4]
“Você vê uma assinatura de micróbios nas pacientes que engravidam, outro naquelas que não ficam grávidas e outro em quem [sofre] abortamento”, resumiu o Dr. Carlos. “Conhecendo a assinatura, é preciso analisar o microbioma e tratá-lo para que estabilize antes da transferência do embrião.”
O que fazer
O estudo do microbioma não utiliza cultura bacteriana, é feito com NGS de amostra endometrial. Isto porque o gene ribossomal 16S, presente em bactérias, apresenta regiões variáveis, que servem de marcadores para identificar os germes presentes.
Diante da constatação de que um microbioma está pouco saudável, teoricamente é possível alterar a sua composição para aumentar as chances de sucesso da reprodução assistida. A administração de antibióticos e probióticos vaginais são duas abordagens terapêuticas.
De acordo ao Dr. Carlos, o tratamento é específico do germe (metronidazol, e se falhar, rifampicina para Gardnerella, amoxicilina e ácido clavulânico para estreptococos). Tendo tratado o germe patogênico, podem se dar os probióticos. “Estando tudo bem, vai-se em frente”, afirmou.
O Dr. Carlos lembrou que, no que tange o tratamento, o conhecimento ainda é limitado e fundamentalmente baseado no relato de casos. “Você procura quando a paciente falha e não há outra causa”, sublinhou. “Existe um aspecto microbiológico da reprodução, afeta o útero humano, e é bom conhecê-lo para melhorar os resultados. Quando há várias falhas de implantação [do embrião], sugerimos uma biópsia endometrial para identificar a janela de implantação e saber se o microbioma está bem ou não. E se houver alguma alteração no microbioma, ele é tratado.”
Ainda há muitas perguntas em aberto, como, por exemplo, quanto tempo dura “o microbioma bom” após a antibioticoterapia. “Sugerimos que, após o tratamento [com antibióticos], isso seja verificado antes de implantar o embrião.”
Mesmo na ausência de consenso sobre como a microbiota endometrial se relaciona com os desfechos reprodutivos, o estudo e a modificação do microbioma já vem sendo oferecido na prática clínica como forma de aumentar as chances de concepção. A Dra. Márcia Riboldi., Ph.D., especializada em genética, que atua como Country Manager do Brasil e da Argentina da empresa Igenomix, que oferece os testes, dá uma ideia do mercado no Brasil. “Fazemos cerca de 500 testes por mês”, disse ela, complementando que a grande maioria é de pacientes com história de falha na implantação [embrionária] ou abortamento.
O especialista e fertilização in vitro (FIV) Dr. Matheus Roque compartilhou dois relatos de casos em FIV realizado na Clínica de Reprodução Humana Mater Prime, localizada na zona sul de São Paulo, ressaltou que a avaliação do microbioma foi uma decisão tomada somente após múltiplas falhas.
“Com os resultados que os médicos começaram a ver, mudou um pouco o paradigma”, garantiu a Dra. Márcia. “Por que esperar uma paciente falhar a transferência [embrionária]? Vamos estudar o endométrio, ver o momento ideal para transferir, ver se é receptivo ou não, se está sem doenças e com Lactobacillus”, propôs. “Precisa-se de educação e conscientização médica, para ser usada em escala”, afirmou a Dra. Márcia. “Temos os testes. Os médicos precisam conhecê-los e saber quando e como usá-los.” A análise do microbioma custa cerca de 2.000 reais mais as despesas com o procedimento médico.
Ainda é cedo?
Diretor geral e fundador do Instituto Ideia Fértil de Saúde Reprodutiva, além de ginecologista e obstetra especializado em reprodução humana, o Dr. Caio Parente Barbosa compartilhou que fez algumas experiências. “Mas eu diria que ainda é muito cedo para afirmar que [o estudo do microbioma] efetivamente traz resultados”, disse em entrevista ao Medscape.
O Dr. Caio, que também é pró-reitor de pós-graduação, pesquisa e inovação da Faculdade de Medicina do ABC, destacou que ainda há muito pouca experiência mundial [com esses testes]. “Existem dúvidas no mundo se isso efetivamente traz resultados efetivos. Os trabalhos científicos são absolutamente controversos.”
Ele afirmou que alguns profissionais indicam o estudo do microbioma para as “pacientes que não sabem mais o que fazer”, mas que já existe demanda de pacientes com outros perfis, que pesquisam nas redes sociais e no YouTube. “Mas, dentre as demandas, é a menor. As pacientes ainda não se preocupam tanto com isso.”
O Dr. Caio reconheceu que a ideia a de individualizar cada vez mais o tratamento é uma tendência inevitável; ele acredita que a pesquisa e o tratamento do microbioma terá mais importância no futuro, mas acha que ainda “não tem utilidade nenhuma”.
O Dr. Caio ressaltou que o aspecto financeiro também deve ser considerado. “Se agregarmos todos esses exames à pesquisa da paciente, o tratamento fica estupidamente caro.” Ele pontuou que o profissional precisa ter o cuidado de fazer a propedêutica mínima. “Nós já agregamos alguns exames, como o cariótipo, a essa pesquisa mínima de todas as pacientes.”
O Dr. Carlos respondeu às críticas afirmando: “O custo é sempre maior de repetir ciclos do que de fazer um trabalho bem-feito e saber o que está acontecendo. Nada é garantido, mas se a minha filha ou esposa precisasse, eu gostaria de ter o máximo de informações e poder decidir sobre isso.”
Os Drs. Caio Parente Barbosa e Carlos Simón informaram não ter conflitos de interesses. A Dra. Márcia Riboldi é Country Manager da Igenomix Brasil e Argentina, empresa que oferece os testes.
Roxana Tabakman é bióloga, jornalista freelancer e escritora residente em São Paulo, Brasil. Autora dos livros A Saúde na Mídia, Medicina para Jornalistas, Jornalismo para Médicos (em português) e Biovigilados (em espanhol). A acompanhe no Twitter: @roxanatabakman.
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Citar este artigo: O papel do microbioma uterino na fertilidade - Medscape - 20 de setembro de 2022.
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