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Uma descrição detalhada – e inédita – da atuação do SARS-CoV-2 no cérebro humano foi realizada por cientistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de São Paulo (USP). Duas pesquisas brasileiras publicadas na mesma semana em revistas científicas de impacto descrevem o processo que pode explicar melhor o espectro de efeitos da infecção pelo novo coronavírus no sistema nervoso central (SNC).
De acordo com os dados, o SARS-CoV-2 atravessa a barreira hematoencefálica, chega ao cérebro e provoca disfunção ou morte neuronal através de uma série de processos que afetam células da glia, principalmente os astrócitos. Os estudos indicam que o vírus também faz com que as células infectadas consumam metabólitos importantes (p. ex., a glutamina) e secretem moléculas neurotóxicas, resultando no aumento da morte neuronal e contribuindo para a redução da espessura da camada cortical.
Sequestro de astrócitos
A pesquisa publicada no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) dos Estados Unidos [1]mostrou que, mesmo os pacientes que tiveram covid-19 leve, apresentaram alterações neurológicas importantes, com redução na espessura da camada cortical.
No cérebro, o vírus infecta os astrócitos e os “sequestra”, tomando controle das principais vias metabólicas. Astrócitos são os principais reservatórios de energia do cérebro, estando envolvidos na absorção, síntese e distribuição de metabólitos cerebrais. Essas células têm um importante papel na resposta protetora ao comprometimento celular causado por processos infecciosos ou inflamatórios. As células infectadas pelo SARS-CoV-2, no entanto, reduzem os metabólitos usados para alimentar neurônios e a produção de neurotransmissores, sendo uma das alterações mais críticas a diminuição dos níveis de lactato. Além do seu papel no ciclo do carbono, o lactato é essencial como agente neuroprotetor, bem como um sinal-chave para regular o fluxo sanguíneo.
Os pesquisadores, liderados pelo professor da Unicamp, Dr. Daniel Martins de Souza, Ph.D., mostraram também que a porta de entrada do SARS-CoV-2 para os astrócitos não é o clássico receptor ACE, mas um outro, a neuropilina 1.
O estudo publicado no periódico Journal of Neurochemistry[2] foi coordenado pelo Dr. Jean Pierre Schatzmann Peron, Ph.D., pesquisador afiliado ao Laboratório de Interações Neuroimunes do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e da Plataforma Científica Pasteur USP (SPPU). Esse trabalho corrobora os achados do estudo anterior, mas vai além. Entre as moléculas alteradas em consequência da infecção estão as relacionadas ao metabolismo de carbono (da via de glicólise e do ciclo de Krebs), mas também da glutamina, que convertida em glutamato é o neurotransmissor mais abundante e importante do SNC. A glutamina é essencial para o funcionamento de sinapses excitatórias, principalmente na formação de memória, como ocorre na região hipocampal. Os pesquisadores observaram que, assim como o vírus da imunodeficiência humana, o vírus da vaccínia e o citomegalovírus, o SARS-CoV-2 utiliza a glutamina como fonte de energia.
“Achamos que, para sintetizar as partículas virais, os astrócitos precisam de muita energia e, para isso, o vírus o altera, fazendo com que utilize a glutamina como fonte energética para sua replicação”, explicou Dr. Jean Pierre.
Os autores sugerem que o efeito sobre a glutamina se correlaciona com o comprometimento neurológico observado durante a covid-19, como perda de memória, confusão mental e comprometimento cognitivo.
Endossando a hipótese, o artigo cita o caso de um paciente de 29 anos que desenvolveu déficit de atenção transitório e problemas de memória durante a infecção pelo SARS-CoV-2. A espectroscopia por ressonância magnética revelou uma redução de glutamato, glutamina e N-acetil-aspartato no córtex pré-frontal dorsolateral. Depois de três meses, quando os sintomas neurológicos haviam resolvido, os níveis de glutamato/glutamina também haviam sido restabelecidos. [3]
“Aos neurologistas e psiquiatras, eu recomendo que avaliem os pacientes com quadro de memória e confusão mental, pensando que possa estar relacionado com essas alterações neuroquímicas, principalmente em relação ao metabolismo do glutamato-glutamina”, disse o Dr. Jean Pierre.
Este conhecimento pode se transformar em terapia. Dr. Jean Pierre assinalou para o Medscape que alguns medicamentos que modulam o metabolismo de glutamina-glutamato (p. ex., inibidores de recaptação ou de receptor de glutamato) já são usados em doenças neurológicas e psiquiátricas, e podem beneficiar os pacientes com essas alterações. Vale mencionar que não foi observada alteração na expressão dos receptores ou transportadores dessas moléculas.
Ciência de ponta
Para estudar as bases morfológicas, celulares e moleculares da infecção pelo SARS-CoV-2 no cérebro, os pesquisadores combinaram diversos métodos.
A investigação translacional [1] incluiu dados clínicos, imagens de ressonância magnética 3T de alta resolução, testes cognitivos e sintomas neuropsiquiátricos de pacientes vivos, avaliação de amostras cerebrais post mortem e modelos pré-clínicos in vitro e ex vivo. O trabalho envolveu pesquisadores de diferentes áreas, que definiram a assinatura molecular das células infectadas, criaram tecidos neuronais partir de células tronco de pacientes, estudaram as alterações neuropatológicas e bioquímicas mediante comparações bioinformáticas, realizaram análises de proteômica para identificar as vias alteradas após a infecção controlada e de interactômica para identificar quais processos biológicos e redes regulatórias foram afetados pela infecção.
“Antes da pandemia, nós trabalhávamos com esquizofrenia. Estávamos habituados a cultivar diversos tipos de células neurológicas ou transformar células tronco em células neuronais. Assim que foram divulgados os primeiros casos de pessoas com perda olfativa, estávamos entre os muitos [pesquisadores] que quiseram contribuir. Acredito que umas 200 pessoas participaram da força-tarefa da Unicamp para estes estudos”, disse ao Medscape um dos autores do estudo, Dr. Victor C. Carregari, Ph.D., afiliado ao Departamento de Bioquímica e Biologia Tecidual do Instituto de Biologia da Unicamp.
O segundo trabalho foi realizado em modelo murino. [2] Os autores pontuaram que os astrócitos dos modelos murinos infectados pelo SARS-CoV-2 apresentam as mesmas alterações que as observadas nos pacientes que morreram em decorrência da covid-19. As vias metabólicas alteradas foram consistentes com doenças neurológicas, como doença de Parkinson, esclerose múltipla e depressão, que também apresentam diferenças na expressão de proteínas do metabolismo. A pesquisa se complementou com estudos de microscopia eletrônica, metabolômica e transcriptômica.
Está tudo explicado?
Os cientistas têm confiança para afirmar que os achados podem explicar, ao menos em parte, o comprometimento neuropatológico e os sintomas neuropsiquiátricos observados na covid-19. O vírus é capaz de penetrar a barreira hematoencefálica e se replicar no tecido cerebral, especificamente na glia, e seu impacto na função neurológica tornou-se inquestionável.
“Em uma doença sistêmica, como a covid-19, é muito complexo isolar os sintomas direcionados aos mecanismos em nível molecular”, comentou Dr. Victor.
Ainda há lacunas no conhecimento. O impacto das distintas variantes do SARS-CoV-2 no cérebro humano ainda é desconhecido. “Hoje, mesmo com a vacinação, os quadros neurológicos continuam. Parece uma relação de susceptibilidade – resistência do indivíduo mais do que da variante. Mas é especulativo, difícil de afirmar”, disse Dr. Jean Pierre.
“Apesar dos avanços, ainda há muito a aprender sobre as rotas que o SARS-CoV-2 pode tomar para invadir o cérebro, e como o vírus navega por diferentes regiões cerebrais”, assinalou Dr. Victor.
Também não foi definido se os efeitos virais são apenas diretos, ou consequência de alterações inflamatórias ou hemodinâmicas secundárias à infecção periférica. “Acreditamos que grande parte dos sintomas e sequelas cognitivas estejam relacionados de forma direta à infecção do sistema nervoso central (...) mas não descartamos a possibilidade outros fatores também estarem ocasionando sintomas neurológicos secundários”, disse Dr. Victor.
Ele comentou que nem todos os pacientes com covid-19 estudados apresentaram infecção cerebral. “De 26, detectamos a presença do vírus em cinco. Alguns vírus atravessaram a barreira [hematoencefálica], e outros provavelmente não”, ponderou. A pesquisa não exclui a possibilidade de outras regiões cerebrais, que não foram estudadas, apresentarem alterações histopatológicas relacionadas à covid-19.
Desde o início da pandemia há relatos de casos e estudos de coorte apontando para sinais e sintomas de alterações neurológicas como anosmia, ageusia, leptomeningite, acidente vascular cerebral, dano microvascular, cefaleia grave, encefalopatia. Algumas, como fadiga crônica, declínio cognitivo, perda da memória, transtornos de humor, depressão e a chamada "névoa mental", são características residuais em pacientes que se recuperaram da covid-19 ou apresentam covid-19 prolongada.
“Atacar as alterações com inibidores de recaptação ou inibidores de receptor pode ser promissor (...) Mas seria uma possibilidade terapêutica paliativa, visando a melhorar o quadro de confusão mental ou a perda de memória do paciente, e não a infecção”, afirmou Dr. Jean Pierre
“Nossa contribuição foi importante. Agora estamos retornando aos estudos sobre esquizofrenia e espero que outros laboratórios que praticam pesquisa aplicada consigam utilizar as informações que obtivemos e avançar em um tratamento ou em moléculas que sejam capazes de prevenir a invasão e/ou a replicação do SARS-CoV-2 no SNC”, concluiu Dr. Victor.
Os Drs. Victor C. Carregari e Jean Pierre Schatzmann Peron informaram não ter conflitos de interesses relevantes ao tema.
Roxana Tabakman é bióloga, jornalista freelancer e escritora residente em São Paulo, Brasil. Autora dos livros A Saúde na Mídia, Medicina para Jornalistas, Jornalismo para Médicos (em português) e Biovigilados (em espanhol). A acompanhe no Twitter: @roxanatabakman.
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Citar este artigo: Como a covid-19 danifica o cérebro - Medscape - 18 de agosto de 2022.
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