Os ensaios clínicos de fármacos antineoplásicos com controle ativo são ‘manipulados’?

Megan Brooks

Notificação

2 de agosto de 2022

Mais da metade dos estudos que testam fármacos antineoplásicos com controle ativo têm regras sobre a modificação da dose e os fatores de crescimento mieloide que favorecem o braço do fármaco experimental, sugere nova análise.

Este tipo de desenho de ensaio "injusto" ou "desigual" deixa em aberto se os novos fármacos são de fato melhores do que os antigos ou se os desfechos se devem a uma posologia mais agressiva ou a um apoio de fator de crescimento, ponderaram os autores.

Em outras palavras, alguns ensaios clínicos podem ser "viciados", de forma que o novo tratamento pareça mais eficaz, disse o primeiro autor do estudo, Dr. Timothée Olivier, médico dos Hôpitaux Universitaires de Genève, na Suíça, e da University of California, San Francisco (UCSF), nos EUA, para o Medscape. "É decepcionante que essa prática seja tão comum."

Junto com os pesquisadores da UCSF, Dra. Alyson Haslam, Ph.D., e o médico Dr. Vinay Prasad, o Dr. Timothée publicou os achados no periódico European Journal of Cancer.

"Muito preocupante"

Ao testar novos fármacos antineoplásicos, as diferentes regras de modificação de medicamentos ou a orientação de uso do fator de crescimento podem influenciar os resultados dos ensaios clínicos controlados e randomizados.

Para o estudo em tela, Dr. Timothée e colaboradores fizeram uma análise transversa de todos os 62 ensaios clínicos randomizados de registro de fármacos antineoplásicos com controle ativo na doença avançada ou metastática que levaram à aprovação do fármaco experimental pela Food and Drug Administration (FDA) dos EUA entre 2009 e 2021.

Os autores compararam as regras de modificação da dose ou as recomendações do fator de crescimento mieloide nos braços do estudo, e avaliaram potenciais desequilíbrios nas regras de modificação do fármaco, nas recomendações do fator de crescimento mieloide ou em ambos.

A equipe descobriu que 40 dos 62 ensaios (65%) tinham regras desiguais para a dose do medicamento, o uso de fator estimulador de colônias de granulócitos (G-CSF, do inglês Granulocyte Colony-Stimulating Factor) ou ambos.

Seis ensaios (10%) tinham regras favoráveis ao braço de controle, enquanto 34 (55%) tinham regras favoráveis ao braço experimental. Destes, 50% tinham regras de modificação de medicamentos desiguais, 41% tinham regras de uso do G-CSF desiguais e 9% tinham ambas.

Por exemplo, os autores indicaram o ensaio KEYNOTE-042, que comparou a quimioterapia de primeira linha com pembrolizumabe versus a quimioterapia com platina para câncer pulmonar avançado ou metastático amicrocítico. Os pacientes do grupo controle não receberam G-CSF profilático, o que pode ter levado a pior toxicidade ou pior desfecho em geral. Além disso, os pesquisadores observaram que alguns ensaios clínicos podem ser projetados para aumentar a intensidade da dose apenas no braço experimental.

"É claro que muitos desses agentes são muito ativos, prolongam a sobrevida e poderiam ter produzido resultados superiores mesmo que as regras fossem iguais; entretanto, a literatura existente não nos diz quais medicamentos são melhores e quais medicamentos foram bem-sucedidos apenas por causa do aumento da dose", escreveram os autores.

Globalmente, os resultados desta análise são "muito preocupantes", disse o Dr. Timothée. Ao investigar o efeito de um novo fármaco, "a intenção não é ter uma falsa noção do seu efeito em função de outros fatores que não estão diretamente relacionados com sua eficácia".

Há remédio?

O Dr. Timothée disse que o fato de a maioria dos ensaios clínicos de registro serem patrocinados pela indústria provavelmente constitui a razão precípua dessas descobertas.

"Os ensaios clínicos patrocinados pela indústria podem ser elaborados de modo a que o novo fármaco tenha mais oportunidade de sair ‘ganhando’, porque isto significa mais ações no mercado e mais lucro para a empresa que fabrica o medicamento", observou o Dr. Timothée.

A indústria farmacêutica funciona com um modelo de negócios que, "naturalmente, visa ganhar a maior fatia do mercado e obter mais lucro", disse o pesquisador. E "é o papel e o dever dos reguladores conciliar os incentivos da indústria com os melhores para os pacientes". No entanto, ele observou, o acúmulo de dados mostra que os reguladores não estão fazendo isso.

A solução deste problema provavelmente exigirá a compra de várias partes interessadas.

A identificação do problema é o primeiro passo, e a compreensão da influência dos incentivos comerciais no desenvolvimento da droga também é fundamental, disse o Dr. Timothée.

O Comitê de Ética em Pesquisa e os reguladores de medicamentos poderiam avaliar sistematicamente a modificação da dose dos medicamentos e as regras relativas aos medicamentos de suporte antes de um ensaio clínico começar a ser feito. Os reguladores também poderiam incentivar as empresas a implementarem regras equilibradas entre os braços, não concedendo a aprovação de medicamentos com base em ensaios clínicos que tenham essas falhas.

No entanto, impor este nível de supervisão pode ser um desafio, e os potenciais conflitos de interesse predominam. Por exemplo, um estudo recente do coautor Dr. Vinay descobriu que quando os revisores médicos da hematologia e oncologia que trabalham na FDA deixam a agência, mais da metade vai trabalhar ou prestar consultoria para a indústria farmacêutica.

"Há conflitos de interesses financeiros em muitos níveis do desenvolvimento de medicamentos", disse o Dr. Timothée.

Eur J Cancer. Publicado on-line em 10 de julho de 2022. Texto completo

O estudo foi financiado pela Arnold Ventures LLC através de uma subvenção paga à UCSF. O Dr. Timothée Olivier e a Dra. Allison Haslam não têm conflitos de interesses financeiros relevantes. O Dr. Vinay Prasad recebe royalties da Arnold Ventures.

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