Uma equipe de cirurgiões transplantou com sucesso corações suínos geneticamente modificados em duas pessoas recentemente falecidas cujos corpos estavam sendo mantidos em suporte ventilatório. O procedimento foi feito não com o objetivo de que elas voltassem à vida, mas como um experimento de prova de conceito sobre xenotransplantes que poderia amenizar a escassez crítica de órgãos para doação.
As cirurgias foram realizadas nos dias 16 de junho e 6 de julho de 2022, utilizando corações suínos de animais geneticamente modificados para evitar a rejeição dos órgãos e promover a imunidade adquirida em receptores humanos.
"Desde o início, nosso objetivo era conseguir criar um modelo onde realmente imitássemos o que é feito clinicamente no transplante humano, sem utilizar dispositivos, técnicas ou medicamentos não aprovados", disse o médico Dr. Nader Moazami, diretor cirúrgico de transplante cardíaco e chefe da divisão de transplante de coração e pulmão e suporte circulatório mecânico da New York University (NYU) Langone Health, nos Estados Unidos.
Durante 72 horas de monitoramento pós-operatório "avaliamos o coração quanto à funcionalidade e a função cardíaca estava completamente normal, com excelente contratilidade", disse ele em uma coletiva de imprensa que anunciou os primeiros resultados do programa experimental.
Ele reconheceu que, no primeiro procedimento, foi necessária alguma modificação cirúrgica do coração suíno, principalmente devido às diferenças de tamanho entre o doador e o receptor.
"No entanto, aprendemos muito com a primeira cirurgia e, quando essa experiência foi transferida para a segunda cirurgia, o resulto foi ainda melhor", disse ele.
O médico Dr. Alex Reyentovich, diretor médico de transplante cardíaco e diretor do programa avançado de insuficiência cardíaca da NYU Langone Health observou que "existem 6 milhões de indivíduos com insuficiência cardíaca nos Estados Unidos. Cerca de 100.000 desses indivíduos têm insuficiência cardíaca em estágio terminal, e só fazemos cerca de 3.500 transplantes cardíacos por ano nos Estados Unidos, ou seja, temos uma deficiência enorme de órgãos e muitas pessoas morrem esperando por um coração".
Protocolos infecciosos
Até o momento, houve apenas um xenotransplante de coração suíno geneticamente modificado em um receptor humano vivo. O nome do paciente era David Bennett, de 57 anos. A cirurgia, realizada na University of Maryland, nos Estados Unidos, em janeiro de 2022, inicialmente foi bem-sucedida. O paciente foi capaz de se sentar no leito alguns dias após o procedimento e o coração funcionava "super bem", de acordo com o cirurgião especialista em transplantes, Dr. Bartley Griffith.
No entanto, o paciente morreu 2 meses após o procedimento devido a um comprometimento do órgão por uma causa ainda indeterminada. Uma das suspeitas é que tenha ocorrido uma infecção cardíaca por citomegalovírus (CMV) suíno.
A equipe da NYU, atenta a essa possível complicação, utilizou exames mais sensíveis para detectar o CMV suíno nos órgãos doados, além de ter implementado protocolos para prevenir e monitorar a possível transmissão zoonótica de retrovírus endógenos suínos.
O procedimento foi realizado em uma sala cirúrgica dedicada e utilizou equipamentos que não serão mais usados em procedimentos clínicos, enfatizou a equipe.
Um especialista em transplante de órgãos, que não participou do estudo, comentou que podem ocorrer surpresas indesejadas até mesmo utilizando os protocolos de profilaxia infecciosa mais rigorosos.
"Acredito que essas medidas sejam importantes, mas não resolvam o problema do risco infeccioso. Em algumas ocasiões, vírus ou infecções latentes só se manifestam mais tarde", disse o médico Dr. Jay A. Fishman, diretor associado do Massachusetts General Hospital Transplant Center, nos Estados Unidos, e diretor do programa de doenças infecciosas pós-transplante e hospedeiros imunocomprometidos desse mesmo hospital.
"Penso que essas medidas sejam importantes, porém, como vocês devem se lembrar do transplante cardíaco experimental em Maryland, quando ocorreu a reativação do citomegalovírus suíno, já havia se passado muito tempo desde o transplante, portanto, não sabemos se poderia ter ocorrido outra reativação posteriormente", disse ele em uma entrevista.
O Dr. Jay observou que as experiências com xenotransplantes na University of Maryland e em outros centros sugeriram que os esquemas imunossupressores utilizados após transplantes entre humanos podem não ser adequados para enxertos de animais em humanos.
Os corações foram retirados de porcos geneticamente modificados com a inativação de quatro genes suínos para evitar a rejeição (incluindo um gene relacionado a um hormônio de crescimento que, se ativo, faria com que o coração continuasse a crescer no tórax do receptor) e com a adição de seis transgenes humanos que codificam a expressão de proteínas reguladoras de vias biológicas que poderiam ser interrompidas por incompatibilidades entre as espécies.
Veterano da Guerra do Vietnã
Os receptores dos órgãos eram pacientes recentemente falecidos que expressaram claramente o desejo de serem doadores de órgãos, mas cujos órgãos eram, por razões clínicas, inadequados para transplante.
O primeiro destinatário foi Lawrence Kelly, um veterano da Guerra do Vietnã e soldador, que morreu de insuficiência cardíaca aos 72 anos.
"Ele era um doador de órgãos e ficaria muito feliz em saber o quanto a sua contribuição para esta pesquisa ajudará pessoas que, como ele, possuem essa doença cardíaca. Ele foi um herói a vida inteira e partiu, também, como um herói", disse Alice Michael, companheira de Lawrence há 33 anos, que também falou na coletiva de imprensa.
"Foi, na minha opinião, uma das coisas mais incríveis ver um coração suíno batendo no tórax de um ser humano", disse o médico Dr. Robert A. Montgomery, Ph.D., diretor do NYU Transplant Institute, nos Estados Unidos, e, ele próprio, um receptor de transplante cardíaco.
O Dr. Jay informou não ter conflitos de interesse.
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Créditos
Imagem principal: Joe Carrotta for NYU Langone Health
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Citar este artigo: Corações suínos transplantados com sucesso em receptores com morte encefálica - Medscape - 21 de julho de 2022.
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