O caso de raiva humana, ou hidrofobia, em um adolescente no Distrito Federal, onde não se tinha registro da doença há 44 anos, não foi a primeira infecção pelo vírus rábico notificada no Brasil em 2022: quatro casos já haviam sido registrados em Minas Gerais, segundo o Ministério da Saúde. Apesar da acentuada queda no número de casos vista nas últimas décadas e da ausência de casos de raiva de origem canina desde 2015, essa antropozoonose não fora erradicada do país.
“O Brasil teve muito sucesso nas últimas décadas em relação ao controle da raiva por meio das extensas campanhas para a vacinação dos animais domésticos, mas esses casos em Minas Gerais e no DF chamam atenção ao fato de a raiva estar aparecendo em locais em que há muitos anos, ou décadas, não era notificada. Nos últimos anos, houve casos em humanos no Rio de Janeiro e em Angra dos Reis, locais onde já não se tinha uma notificação há muito tempo. Então [a doença] vem aparecendo em locais inesperados”, disse ao Medscape o epidemiologista Dr. Marco Horta, Ph.D., pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Dr. Marco é um pesquisador reconhecido nas áreas da epidemiologia e vigilância epidemiológica de doenças emergentes e reemergentes. Recentemente, ele publicou um trabalho alertando sobre a mudança no perfil epidemiológico da raiva no Brasil, com os morcegos como principais reservatórios da doença, e como isso impacta nas ações de vigilância e controle.[1]
De acordo com o Dr. Marco, hoje, as raivas canina e felina talvez não tenham mais tanta importância. Mesmo nos acidentes com felinos, os gatos não estão mais transmitindo o vírus do animal doméstico, mas uma variante desse vírus, proveniente do morcego. A profilaxia antirrábica deve ser realizada em caso de acidente (mordida ou arranhão, por exemplo) não apenas com cães, gatos e morcegos (de qualquer espécie), mas também com saguis, macacos, raposas, guaxinins, quatis, gambás e capivaras, mesmo quando domesticados. [2]
O epidemiologista destacou que os médicos precisam saber que essa doença tem aparecido em locais improváveis e, portanto, é importante atentar aos sinais e sintomas, bem como suspeitar do diagnóstico de raiva durante o atendimento.
Teste seus conhecimentos
A profilaxia pós-exposição (PEP) é necessária para prevenir a raiva, que é uma doença infecciosa viral com letalidade de aproximadamente 100% causada pelo vírus do gênero Lyssavirus, da família Rabhdoviridae. A PEP deve ser administrada sempre que houver suspeita de infecção no animal mordedor. O preparo dos profissionais da atenção primária, que são os primeiros a interagir com as vítimas de ataques de animais, está longe, porém, de ser ótimo.
Uma pesquisa que avaliou mais de 4 milhões de consultas médicas por ataque de cachorros no Brasil entre 2014 e 2019 evidencia o despreparo dos profissionais. O procedimento profilático foi inadequado em 42,2% dos casos (n = 1.582.411). Esses erros médicos resultaram na morte do paciente ou no desperdício de produtos imunobiológicos. [3]
O desconhecimento também se fez visível em outro estudo, que aplicou questionários a profissionais de saúde que administram a PPE em três estados brasileiros: Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Rio Grande do Norte. A maioria não soube identificar um cão "suspeito" de ser portador do vírus da raiva de acordo com as diretrizes do Ministério da Saúde. A análise da condição de saúde do cão e das características da lesão são essenciais para orientar a indicação de PEP. Nessa pesquisa, apenas 11% dos profissionais demostraram que saberiam prescrever a PEP adequadamente em diversos cenários envolvendo mordida de cachorros. [4]
O Brasil enfrenta problemas tanto em relação ao uso excessivo da PEP como à baixa disponibilidade. Os autores da análise de 10 anos dos dados de vigilância nacional sobre mordidas de cães (2008 e 2017) estimaram que o Brasil poderia economizar até 6 milhões de dólares por ano se reduzir o número de doses administradas na PEP e seguir as últimas recomendações da OMS. Essa mesma análise evidenciou que casos falso-positivos são frequentemente notificados ao sistema de vigilância nacional. [5]
Na última atualização do “protocolo de profilaxia pré, pós e reexposição da raiva humana no Brasil”, o Ministério da Saúde disponibiliza todas as recomendações para os profissionais de saúde e orienta que o esquema de PEP com o soro antirrábico ou imunoglobulina humana antirrábica seja de quatro doses: dias 0, 3, 7 e 14. [2]
Não perder os ganhos
Apesar da mudança epidemiológica, a vacinação de cachorros e gatos domésticos não pode parar. “Se houver falhas nas campanhas, há um risco imenso de a raiva voltar”, alertou o Dr. Marco.
A vacinação contra a raiva não é preconizada para a população geral, porque a taxa de incidência em humanos é muito baixa, mas deve ser realizada em casos de agressão por animal suspeito de raiva na região e em pessoas com risco de exposição ao vírus, como veterinários, biólogos, técnicos agropecuários, funcionários de clínicas veterinárias e pet shops, guias de ecoturismo, entre outros profissionais.
A quantidade de imunizantes administrados em humanos anualmente vem diminuindo nos últimos anos. De 2015 a 2020, o número de doses administradas foi de 1 milhão, 583 mil, 443 mil, 335 mil, 260 mil e 127 mil, respectivamente. Preocupa ainda o risco de escassez de estoque, visto que alguns municípios adiaram ou suspenderam a vacinação em humanos em razão da falta de vacinas, que devem ser enviadas pelo Ministério da Saúde aos governos estaduais, ou das interrupções no recebimento durante os momentos mais críticos da pandemia. [1]
Outra crise sanitária na porta?
Controlar a circulação do vírus entre os animais silvestres é muito complicado, “praticamente impossível em função das questões ambientais”, segundo o Dr. Marco.
A ampliação de áreas geográficas sem registro prévio da doença poderia estar associada a um sistema multifatorial, que inclui desmatamento, uso da terra, troca de ecossistemas naturais por pastagem para produção intensiva de gado ou efeitos das mudanças climáticas. Nestes cenários, as diferentes espécies de morcegos podem estar expandindo seu território, levando à ocorrência de casos de raiva humana em locais sem notificação prévia da doença. [1]
Uma pesquisa recente em mamíferos silvestres do estado de São Paulo mostrou que seis das 24 espécies avaliadas apresentavam resultados positivos, indicando exposição ao vírus da raiva (soroprevalência de 1,7% entre as 24 espécies pesquisadas). [5]
A Universidade Estadual Paulista (Unesp) Botucatu, em colaboração com a University of Glasgow, na Escócia, publicou um estudo sobre a abordagem de vigilância em “One Health” para apoiar a eliminação da raiva no Brasil. O termo, que está relacionado ao impacto das doenças zoonóticas em pessoas, animais e meio-ambiente, é hoje considerado chave para prevenir a dispersão destas doenças. Ainda sem definição precisa, o conceito de One Health baseia-se em vários princípios fundamentais que incluem a eco-saúde e saúde planetária. [6]
“A raiva hoje tem tudo a ver com o conceito de One Health”, afirmou o Dr. Marco. “Na sua epidemiologia atual, a doença é resultado direto dos impactos da humanidade, que está chegando cada vez mais perto do morcego e está trazendo o morcego para mais perto das cidades. É a má qualidade da saúde ambiental que está trazendo a raiva de volta para a população humana.”
O Dr. Marco Horta informou não ter conflitos de interesses.
Roxana Tabakman é bióloga, jornalista freelancer e escritora residente em São Paulo, Brasil. Autora dos livros A Saúde na Mídia, Medicina para Jornalistas, Jornalismo para Médicos (em português) e Biovigilados (em espanhol). A acompanhe no Twitter: @roxanatabakman.
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Citar este artigo: Raiva humana em Brasília e um alerta de mudanças epidemiológicas - Medscape - 12 de julho de 2022.
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