COMENTÁRIO

Doença de Chagas: prioridade regional

Dr. Julio Croda

Notificação

19 de maio de 2022

O dia 14 de abril foi oportunamente instituído como Dia Mundial de Combate à Doença de Chagas durante a 72ª Assembleia Mundial da Saúde, realizada em 2019. Endêmica em 21 países da América Latina, a doença de Chagas é a quinta doença infecciosa mais letal na região (~10 mil mortes por ano), superando todas as demais doenças parasitárias, inclusive a malária. Estima-se que entre 6 e 7 milhões de pessoas sejam portadoras do Trypanosoma cruzi, e que 7 a cada 10 pessoas infectadas desconheçam o diagnóstico.

O nome da doença remete ao biólogo e médico sanitarista Dr. Carlos Chagas, talvez o brasileiro que tenha chegado mais perto de ganhar o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina. Foi indicado duas vezes ao prêmio, e só não ganhou porque sofreu grande oposição de médicos brasileiros, que muitas vezes duvidaram da existência da doença e da autoria da descoberta. [1] Em 1921, viajou para os Estados Unidos, onde recebeu o título de Doctor Honoris Causa pela Universidade de Harvard, tornando-se o primeiro brasileiro a obter o título honorífico.

O perfil epidemiológico da doença de Chagas mudou desde a sua descoberta. Antes restrita à zona rural e associada a condições de moradia, atualmente os surtos são decorrentes da transmissão oral, via ingestão de alimentos contaminados pelo inseto transmissor do Trypanosoma cruzi, o barbeiro, principalmente na região Norte do Brasil, e da transmissão vertical.

Nas últimas décadas, houve uma migração populacional maciça de pessoas infectadas para as grandes metrópoles, principalmente para as grandes comunidades carentes, e a maioria desses migrantes não tinha ciência de que estava infectada. Hoje, a perpetuação da transmissão nessas comunidades ocorre principalmente por meio da transmissão vertical. Gestantes que não são submetidas ao exame específico para Chagas durante o pré-natal e, portanto, transmitem a doença para os recém-nascidos.

De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), somente na América Latina, estima-se que 1,12 milhão de mulheres em idade fértil estejam infectadas pelo protozoário, e entre 8.000 e 15.000 bebês nasçam infectados por ano.

No Brasil, não há recomendação oficial de triagem pré-natal para a doença de Chagas. [2,3] Alguns estados incorporaram o exame no pré-natal realizado nas unidades de saúde públicas, mas a falta de um testes rápidos dificultou a expansão dessa estratégia para todo o país. A triagem de gestantes é fundamental para identificar os recém-nascidos em risco, bem como para a investigação diagnóstica e o tratamento apropriado, a fim de interromper as consequências da infecção nessas comunidades.

Mais de 100 anos após a descoberta da doença de Chagas, esta é considerada uma doença negligenciada e com grande impacto regional. Nos últimos cinco anos, obtivemos, no entanto, alguns avanços que merecem ser destacados:

Em 2018, foi aprovado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) no Sistema Único de Saúde (SUS), o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas Doença de Chagas, [4] que recomenda formalmente o uso de benzonidazol e nifurtimox para todos os pacientes com menos de 50 anos diagnosticados com a forma aguda e indeterminada da doença. Apesar da recomendação, apenas 1% dos pacientes diagnosticados com a doença de Chagas recebe tratamento específico.

Em 2020, conseguimos incluir a doença de Chagas crônica na lista de notificação compulsória de doenças. Portanto, nos próximos anos iremos conhecer a real carga da doença no país.

Também em 2020, foi aprovado o maior financiamento internacional para pesquisa da doença dos últimos 100 anos. Com financiamento da Unitaid, o projeto “CUIDA Chagas – Comunidades Unidas para Inovação, Desenvolvimento e Atenção para a doença de Chagas”, coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que tem como objetivo, através de dois ensaios clínicos, reduzir o tempo entre a triagem, o diagnóstico e a completude do tratamento específico. O primeiro ensaio vai demonstrar a relevância de um teste rápido desenvolvido pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), da Fiocruz, e aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no Brasil, bem como pelas agências regulatórias da Bolívia, da Colômbia e do Paraguai. O outro, avaliará tratamentos curtos para doenças de Chagas.

Mesmo com grandes avanços, ainda temos um longo caminho até eliminar a doença de Chagas das áreas endêmicas. Somente com a incorporação de uma estratégia ampla e universal do test and treat, já empregadas em outras doenças, como o HIV e as hepatites virais, conseguiremos avançar no real controle da doença. A esperança é que, nos próximos cinco anos, possamos testar e tratar cada vez mais pacientes recém-infectados, para evitar a progressão para formas crônicas cardíacas e gastrointestinais, além de evitar a transmissão vertical.

Siga o Medscape em português no Facebook, no Twitter e no YouTube

Comente

3090D553-9492-4563-8681-AD288FA52ACE
Comentários são moderados. Veja os nossos Termos de Uso

processing....