Se o coração de uma pessoa pula um batimento, as empresas de tecnologia querem que ela saiba disso. Começando com a Apple e agora a Fitbit, que pertence ao Google, as empresas de dispositivos eletrônicos portáteis estão vendendo dispositivos vestíveis que checam o ritmo cardíaco e alertam os usuários quando algo está fora de sincronia.
Esses produtos envolvem algumas proezas da tecnologia. Muitos usam sensores ópticos sofisticados que “espiam” sob a pele para monitorar alterações do volume sanguíneo (quase como rastrear as marés) e, assim, registrar os batimentos cardíacos. Outros dispositivos têm embutido um eletrocardiógrafo em miniatura, que registra a atividade elétrica do coração. Qualquer um dos métodos pode detectar batimentos cardíacos irregulares – e potencialmente fibrilação atrial (FA), um distúrbio que afeta cerca de 2,7 milhões de americanos (no mundo, a prevalência chega a 481,5 por 100 mil pessoas) e aumenta o risco de acidente vascular cerebral (AVC) e insuficiência cardíaca (IC).
Ainda assim, embora tais dispositivos sejam uma conquista técnica, alguns cardiologistas dizem que as informações por eles geradas nem sempre são úteis. As notificações não são diagnósticos definitivos. É um dilema com consequências para o sistema de saúde. Dezenas de milhões de pessoas estão munidas desses dispositivos e, se uma fração delas, mesmo que pequena, receber um alerta, isso pode significar muito mais cuidados e custos para o sistema.
“A tecnologia nos ultrapassou”, disse o Dr. Rod Passman, cardiologista da Northwestern University, nos Estados Unidos, colaborador em um estudo que examina a capacidade do Apple Watch de monitorar as condições do ritmo cardíaco. “A indústria começou a produzir essas coisas porque ela pode. Agora estamos tentando recuperar o atraso e descobrir o que fazer com essa informação.”
Os sensores de ritmo cardíaco estão entre as muitas ferramentas integradas a esses dispositivos. Eles podem contar passos, monitorar o sono e analisar a marcha dos usuários. Alguns produtos ligam para o serviço de emergência se o usuário sofrer um acidente de carro ou uma queda grave.
O objetivo desses recursos é tornar os pacientes protagonistas na manutenção da própria saúde. Durante um evento de divulgação da função de fibrilação atrial do Fitbit, o cofundador da empresa, James Park, disse que se tratava de um dos vários recursos das pulseiras de rastreamento da marca que estão “deixando, sem esforço, os usuários no controle da própria saúde e bem-estar”.
O alerta de fibrilação atrial do dispositivo – um “exame que não é solicitado por um médico”, disse o Dr. Rod – diz aos pacientes que há algo potencialmente irregular. Em última análise, porém, a prescrição de qualquer tratamento é deixada a cargo dos médicos.
As consultas iniciais nem sempre fornecem respostas rápidas. Para confirmar uma notificação, um cardiologista aplica nos pacientes dispositivos diagnósticos de nível médico – um patch ou um monitor volumoso – que são mais precisos do que os dispositivos vestíveis (o Apple Watch, por exemplo, é liberado pela Food and Drug Administration (FDA) dos EUA “apenas para uso informativo”). Esses dispositivos mais sofisticados podem ter de operar por um tempo para capturar um batimento perdido momentaneamente. Tal espera significa mais tempo e dinheiro, gastos em mais consultas médicas.
Obter um diagnóstico “pode ser uma odisseia”, disse o Dr. Ethan Weiss, cardiologista da University of California, San Francisco (UCSF), nos EUA. Os pacientes podem ficar ansiosos ao longo do processo.
Fóruns de mídia social, como o Reddit, mostram que muitos usuários se questionam sobre quem é mais confiável: seu relógio ou seu médico. “Ainda está me assustando”, escreveu um usuário do Apple Watch, mesmo depois de um médico ter dito que ele provavelmente estava bem.
“Haverá um período de incerteza”, reconheceu Tony Faranesh, cientista pesquisador da Fitbit. Segundo ele, a empresa fornece material educativo aos usuários alertados sobre uma possível arritmia.
Estudos sobre a prevalência de ansiedade resultante de alertas de fibrilação atrial são difíceis de encontrar. A Fitbit coletou essas informações como parte de uma pesquisa enviada à FDA para liberação do dispositivo da empresa, disse Tony à KHN. Mas os resultados completos do estudo, que coletou informações de 455 mil pacientes, ainda não estão disponíveis.
Ter o diagnóstico não é o mesmo que saber qual deve ser o melhor tratamento. Por exemplo, tratar pacientes saudáveis com anticoagulantes, o tratamento padrão para fibrilação atrial, pode expô-los a efeitos colaterais desnecessários.
De acordo com médicos entrevistados pela KHN, a fibrilação atrial é um quadro clínico amplo. Alguns pacientes têm muitas crises em um determinado ano e sintomas como fadiga ou dispneia; outros pacientes não percebem nada.
No passado, uma fibrilação passageira não teria sido detectada, muito menos tratada. E os usuários de tecnologias vestíveis, em geral, são mais saudáveis e ricos do que o típico paciente com FA. Um novo Apple Watch custa cerca de US$ 400; o Fitbit mais barato custa US$ 50 (fontes oficiais da empresa não souberam informar quais dispositivos Fitbit teriam a função de detecção de fibrilação atrial, embora tenham dito que estavam comprometidos em tornar a tecnologia amplamente disponível).
A combinação de pouca gravidade desse quadro clínico com pacientes mais saudáveis resulta na incerteza dos cardiologistas a respeito do que fazer com essa coorte de pacientes. Entre a ansiedade e o desconhecido, as empresas de tecnologia, no entanto, inseriram o sistema de saúde em um experimento científico em massa.
Uma grande quantidade de pessoas adotou os dispositivos vestíveis. Analistas da Counterpoint Research disseram que o Apple Watch, que conta com o recurso de monitoramento de fibrilação atrial desde 2018, ultrapassou 100 milhões de usuários em todo o mundo no verão passado. O Fitbit provavelmente tem dezenas de milhões de usuários a mais. Quantos deles terão o novo recurso de monitoramento de FA, assim que estiver disponível, ainda não se sabe.
Mais empresas estão chegando. “Todo mundo quer integrar sensores de grau médico de maior calibre” aos seus aparelhos de consumo, disse o Dr. Justin Klein, sócio-gerente da Vensana Capital, uma empresa de capital de risco. Isso “levará os pacientes às clínicas para confirmar os diagnósticos”, disse ele.
As empresas estão ampliando ainda mais a capacidade dos produtos vestíveis. O Dr. Justin disse que grandes empresas de tecnologia e startups estão de olho em mais quadros clínicos sobre os quais os usuários possam ser passivamente alertados, desde níveis de oxigênio no sangue até hipertensão. Cabe aos pacientes e aos médicos descobrir o que fazer com essas novas bugigangas.
O Dr. Rod se considera um otimista quando se trata do potencial dos dispositivos. Em entrevista, ostentando um Apple Watch no pulso, o cardiologista disse que os dispositivos podem ajudar médicos e pacientes a cuidar de alguns distúrbios e a responder rapidamente quando houver algum alerta estranho. E os médicos podem usar os dispositivos para confirmar se o tratamento para fibrilação atrial está sendo eficaz, segundo outros cardiologistas.
Ainda assim, é provável que o recurso traga alguma dor de cabeça aos cardiologistas. “O recurso causou um aumento na carga de trabalho para lidar com telefonemas e com as consultas médicas”, disse o Dr. Ethan, e tudo por um benefício ainda não muito claro.
KHN (Kaiser Health News) é a redação da KFF (Kaiser Family Foundation), que produz jornalismo em profundidade sobre questões de saúde. Junto com Análise de Política e Pesquisas, a KHN é um dos três principais programas da KFF. A KFF é uma organização sem fins lucrativos que fornece informações sobre saúde.
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Citar este artigo: Tecnologias de monitoramento de batimentos cardíacos aumenta preocupações em pacientes e médicos - Medscape - 28 de abril de 2022.
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