Estudo desenvolvido por pesquisadores do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) e colaboradores revela elevado acometimento psiquiátrico pós-covid-19. Avaliações feitas entre seis e nove meses após a alta hospitalar mostraram que os sobreviventes da covid-19 apresentaram alta prevalência de depressão, transtorno de ansiedade generalizada, transtorno de estresse pós-traumático, assim como queixas cognitivas frequentes, principalmente relacionadas à memória. Os achados publicados no início do ano no periódico General Hospital Psychiatry[1] corroboram dados de pesquisas anteriores[2,3,4,5,6], porém, desta vez, o resultado é ainda mais expressivo, uma vez que os diagnósticos foram estabelecidos com base em entrevistas presenciais utilizando instrumentos objetivos e validados de avaliação psiquiátrica.
A pesquisa foi conduzida com pacientes da “coorte pós-covid-19 do HCFMUSP”, que foi constituída para facilitar estudos multidisciplinares de longo prazo nessa população. Para a investigação em questão, os pesquisadores fizeram um corte transversal, abrangendo 425 adultos hospitalizados no HCFMUSP entre março e setembro de 2020 com as formas moderada e grave da covid-19. A idade média dos participantes foi 55,7 anos e 51,5% eram mulheres.
Avaliações do estado mental e da função cognitiva foram feitas por meio de entrevistas presenciais conduzidas por psiquiatras, psicólogos, neuropsicólogos e estudantes de medicina, entre seis e nove meses após a alta hospitalar. Para tanto, os autores utilizaram os seguintes instrumentos: Clinical Interview Schedule – Revised Version (CIS-R), Structured Clinical Interview for DSM-5 Disorders, Research Version (SCID-5-RV), Hospital Anxiety and Depression Scale (HAD), Ask Suicide-Screening Questions (ASQ), Post-Traumatic Stress Disorder Checklist (PCL-C), Alcohol Use Disorder Identification Test (AUDIT), Memory Complaint Scale (MCS), Temporal and Spatial Orientation (conforme obtido do Mini-Mental State Examination), Trail Making Test (TMT) – Part A, Verbal Fluency Test (VFT), Clinical Frailty Scale (CFS), International Physical Activity Questionnaire (IPAQ) – Short Version.
Os resultados revelaram que 32,2% dos participantes tinham transtorno mental comum, 8% depressão, 15,5% transtorno de ansiedade generalizada e 13,6% transtorno de estresse pós-traumático. Houve ainda a detecção de sintomas psicóticos, com 8,7% dos participantes referindo alucinações e 12,5% delírios de qualquer natureza ao longo da vida.
Quando os especialistas consideraram apenas novos diagnósticos, ou seja, aqueles cujos sintomas iniciaram em menos de um ano, constataram prevalência de 2,56% de depressão, 2,79% de fobia específica, 8,14% de transtorno de ansiedade generalizada e 1,4% de transtorno obsessivo-compulsivo.
Quanto à cognição, os autores observaram prejuízos em vários domínios, especialmente déficits executivos e de atenção. Mais da metade da amostra (51,1%) queixou-se de declínio da memória.
Em entrevista ao Medscape, o Dr. Orestes V. Forlenza, médico psiquiatra do HCFMUSP, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e um dos autores do estudo, falou sobre os resultados.
De acordo com ele, não há dúvidas quanto à relação de causalidade entre a infecção por SARS-CoV-2 e o acometimento psiquiátrico no pós-covid-19, mas lembrou que a agressão que a doença provoca se soma à predisposição do indivíduo. “Uma pessoa que é mais propensa a ter depressão sem dúvida vai ser mais suscetível a apresentar depressão pós-covid-19. De qualquer modo, existe uma parcela menor de indivíduos que nunca tiveram depressão e que terão pela primeira vez após a covid-19”, disse, ressaltando que, em geral, essa é a tendência que se observa para as doenças de natureza orgânica.
Fase aguda e desfecho neuropsiquiátrico tardio
Além de investigar a frequência do comprometimento psiquiátrico e cognitivo no pós-covid-19, os autores analisaram a possível existência de uma relação entre a gravidade da fase aguda da covid-19 e o desfecho neuropsiquiátrico tardio.
Segundo o Dr. Orestes, o grupo imaginava que aqueles que tiveram doença mais grave ou situações de alto impacto, de ameaça à vida e que receberam procedimentos mais invasivos apresentariam maior acometimento neuropsiquiátrico no pós-covid-19. No entanto, não foi o que aconteceu. “Na verdade, nenhum elemento indicativo da gravidade da doença aguda se correlacionou ou foi capaz de predizer o desfecho psiquiátrico tardio, o que, por um lado, é surpreendente, mas, por outro, nos faz pensar que existem mecanismos biológicos relacionados à própria doença e ao tipo de resposta que o indivíduo apresenta que podem estar por trás disso”, destacou.
Agora, o grupo está dando seguimento à pesquisa, a fim de testar essa hipótese. A nova análise investigará dados biológicos e alguns marcadores inflamatórios sistêmicos específicos para determinar se os participantes que tiveram resposta inflamatória mais intensa ou mais específica à infecção por SARS-Cov-2 apresentaram maior acometimento neuropsiquiátrico tardio. Mas, segundo o Dr. Orestes, é importante lembrar que, mesmo que haja uma correlação entre esses fatores, ainda é necessário considerar a predisposição individual para a doença psiquiátrica.
Além desse novo passo, o grupo está dando continuidade ao acompanhamento da coorte. “Esse estudo foi publicado com uma amostra preliminar de 50% da casuística final e, agora, temos visto que os dados se mantêm na casuística final de cerca de 900 pacientes”, afirmou o psiquiatra. A equipe pretende ainda reavaliar os participantes para verificar como evoluíram, se o déficit neuropsiquiátrico permanece e com qual gravidade.
A constituição da “coorte pós-covid-19 do HCFMUSP” foi uma iniciativa coordenada pelo prof. Dr. Geraldo Busatto. “É um esforço institucional bem-sucedido que conseguiu agrupar um grande número de especialistas de diversas áreas”, ressaltou o Dr. Orestes, que faz parte do grupo de psiquiatria que foi liderado pelo Prof. Dr. Rodolfo Furlan Damiano.
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Citar este artigo: Mais de 30% das pessoas que tiveram covid-19 moderada ou grave apresentam transtorno mental após a alta hospitalar - Medscape - 1 de abril de 2022.
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