COMENTÁRIO

Hemoglobina glicada ou glicosilada?

Dra. Carla Vorsatz

Notificação

9 de março de 2022

Nota da Editora: A série Ambulatório das Palavras da Dra. Carla Vorsatz, analisa questões relacionadas com a linguagem médica em geral e com as traduções assimiladas, nem sempre corretamente. A ênfase é na formação das palavras do vocabulário médico e destina-se aos estudantes de medicina e a todos os médicos que se interessam pela linguagem. Boa leitura!

Os níveis da hemoglobina glicada são um dos principais parâmetros de diagnóstico e acompanhamento da eficácia terapêutica nos casos de diabetes mellitus tipo 2.

Também conhecida pelas siglas HbA1c e, mais recentemente, apenas A1c, em geral é assim que é escrita nos textos de língua inglesa. Antes de usar qualquer sigla, é recomendável escrever por extenso na primeira vez que o termo aparece no texto e seguida da sigla entre parênteses, p. ex. hemoglobina glicada (HbA1c); a partir daí pode usar somente a sigla.

De onde vem a sigla?

Em termos bioquímicos, a glicose reage com as cadeias β da hemoglobina do tipo A (α2β2). Na designação hemoglobina A1c, o “c” representa a fração da hemoglobina glicada separada do restante da hemoglobina que não sofreu glicação.

Entretanto, os textos médicos estão repletos da denominação hemoglobina glicosilada, usada como se fosse sinônimo perfeito de hemoglobina glicada, inclusive nos textos originais inglês (glycosylated hemoglobin). Não é.

Hoje em dia já começam a aparecer timidamente glycated hemoglobin nos textos de língua inglesa.

Glicação e glicosilação

A glicação e a glicosilação são dois processos bioquímicos inteiramente distintos, que ocorrem em compartimentos diferentes do organismo.

A glicação é uma ligação covalente de um carboidrato a uma proteína ou a um lipídio; é um processo espontâneo, não é enzimático e não é controlado: quanto maior a exposição da hemoglobina aos carboidratos, maior a ligação. Ocorre principalmente na corrente sanguínea com a glicose, a frutose e a galactose. A glicação é um processo irreversível e diretamente proporcional à exposição da hemoglobina à glicose no sangue. É isso que a torna um parâmetro laboratorial confiável para refletir a atividade do diabetes mellitus, exatamente por ser um processo irreversível e ocorrer no sangue, compartimento onde também ocorre a hiperglicemia.

É o mecanismo perfeito para dosagem dos níveis glicêmicos no sangue durante um período prologado, já que o tempo médio de vida de uma hemácia é de aproximadamente 120 dias. Se durante este período houve hiperglicemia, houve ligação irreversível à hemoglobina, que se tornou glicada (ou seja, contendo glicose). Assim, o percentual de glicação pode nos informar com fidedignidade sobre a intensidade da hiperglicemia e, consequentemente, a gravidade da doença.

Já a glicosilação é um processo enzimático dependente de ATP, que se refere à ligação de um carboidrato a proteínas e lipídios transformando-os em glicoproteínas e glicolipídios. Ocorre principalmente no compartimento intracelular, no retículo endoplasmático concomitantemente à tradução da proteína, sendo finalizada no complexo de Golgi.

A glicosilação, contrariamente à glicação, é um processo reversível, o que já não a qualifica como um bom parâmetro de avaliação da glicemia; além do mais, o processo é intracelular, não ocorre no sangue onde a hiperglicemia é patognomônica da doença. Assim, não pode se ligar à glicose sérica e, mesmo se o fizesse, essa ligação seria reversível. Por isso a glicosilação da hemoglobina não é um parâmetro laboratorial de controle do diabetes mellitus.

De onde vem a confusão?

A literatura médica no início usava glycosylated por não saber ao certo qual era o processo em curso, até que a realização de pesquisas esclareceu a diferença em 1984.[1]

Desde então, vem sendo recomendado o uso exclusivo do termo glycated hemoglobin, que tem aumentado consideravelmente enquanto há diminuição do uso de glycosilated hemoglobin (Figuras 1 e 2).

Figura 1 - Glycosilated hemoglobin

 

Figura 2 - Glycated hemoglobin

Então, mesmo que o original inglês tenha glycosylated, em bom português o termo correto é hemoglobina glicada.

Do jeito que a gente diz.

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