Mortalidade de crianças com síndrome congênita associada a infecção por Zika é cerca de 12 vezes maior do que em crianças sem a síndrome

Mônica Tarantino

Notificação

23 de fevereiro de 2022

Ainda que cerca de 80% das pessoas infectadas pelo vírus Zika (ZIKV) não apresentem manifestações clínicas, a ciência já mostrou que a infecção tem potenciais teratogênicos quando é adquirida durante a gestação e está na origem de inúmeros casos de microcefalia e de outros comprometimentos neurológicos.

A grande quantidade de Aedes aegypti nas cidades brasileiras, somada a problemas sociais, facilitou a disseminação da zika a ponto de o Brasil registrar o maior número de notificações de crianças com a síndrome congênita causada pelo vírus Zika entre os países atingidos pela doença no período entre 2015 e 2018. Desde então, os pesquisadores investigam o impacto do problema e as medidas necessárias para lidar com ele. 

Um dos achados mais contundentes já feitos sobre o dramático legado do Zika no país foi anunciado nesta quarta-feira (23) por um grupo de pesquisadores brasileiros. Depois de acompanhar um total de 11.481.215 crianças nascidas vivas no Brasil até os 36 meses de idade entre os anos de 2015 e 2018, os pesquisadores descobriram uma taxa de mortalidade cerca de 12 vezes maior entre as crianças com a síndrome congênita associada a infecção por Zika em comparação com crianças sem a síndrome.

“Essa diferença persistiu ao longo dos primeiros três anos de vida”, disse em entrevista ao Medscape a Dra. Enny Cruz Paixão, Ph.D. Uma das autoras principais do estudo Mortalidade da Síndrome Congênita do Zika – Estudo de Coorte Nacional no Brasil, a Dra. Enny está vinculada à London School of Hygiene and Tropical Medicine, em Londres, e ao Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs), Instituto Gonçalo Moniz, da Fiocruz-Bahia.

Publicado pelo periódico New England Journal of Medicine (NEJM), o estudo de coorte populacional assinado por 16 pesquisadores teve a participação do epidemiologista Maurício Barreto, fundador e diretor do Cidacs, e Maria da Glória Teixeira, uma das maiores especialistas do Brasil em arboviroses. 

Um total de 11.481.215 crianças nascidas vivas foram acompanhadas até os 36 meses de vida. Ao final do período de estudo, a taxa de mortalidade encontrada pelos pesquisadores foi de 52,6 mortes por 1.000 pessoas-ano entre crianças nascidas vivas com síndrome congênita associada a infecção por Zika (intervalo de confiança, IC, de 95%, de 47,6 a 58,0), em comparação com 5,6 mortes por 1.000 pessoa-ano entre aquelas sem a síndrome (IC de 95%, de 5,6 a 5,7). Entre os bebês com peso ao nascer igual ou superior a 2.500 g, aqueles com a síndrome congênita foram 12,9 vezes (IC de 95%, de 10,9 a 15,3) mais propensos a morrer do que aqueles sem a síndrome (taxa de mortalidade, 32,6 vs. 2,5 mortes por 1.000 pessoas-ano). A análise dos dados mostrou também que as 3.308 crianças com síndrome congênita associada a infecção por Zika tinham mães mais jovens e com menor escolaridade do que as 11.477.907 crianças sem a síndrome.

Um dos méritos deste trabalho é ser o primeiro a acompanhar crianças com a síndrome congênita por três anos para reportar a mortalidade neste grupo.

“Se a criança sobreviveu até o primeiro mês de vida, tem grande chance de sobreviver durante a infância, porque a taxa de mortalidade cai. Nas crianças com a síndrome congênita associada a infecção por Zika, essa taxa caiu também, mas de forma mais lenta. Quando mais estratificamos por período – neonatal, pós-neonatal e o período do primeiro ao terceiro ano de vida –, o risco relativo foi aumentando. Após o primeiro ano de vida, a chance de morrer das crianças com a síndrome chegou a ser 22 vezes maior em comparação com crianças sem ela. É algo quase inacreditável”, disse ao Medscape a Dra. Enny. Ela lembra que a mortalidade observada nesse estudo é comparável com os achados de estudos anteriores.

Além do tamanho da amostra – mais de 11 milhões crianças – outro aspecto inovador do trabalho foi a comparação com os nascidos vivos saudáveis. “Os estudos anteriores não tinham esse grupo de comparação”, disse a Dra. Enny.

Perguntada sobre as grandes dificuldades do estudo, a pesquisadora disse que uma delas foi a fragmentação dos dados. “Temos no Brasil sistemas de dados muito ricos e de qualidade, mas eles não são interligados. Temos um banco de dados com todos os nascidos vivos, outro com os registros de mortalidade e outro com todas as crianças com síndrome congênita associada a infecção por Zika. O primeiro grande desafio foi colocar todas essas informações juntas.”

A solução encontrada pelos pesquisadores foi fazer vincular os dados de nascidos vivos com os óbitos que ocorrem nessa faixa etária e cerca de 18 mil crianças com suspeita de síndrome congênita, um recurso que os cientistas chamam de data linkage – “a palavra em inglês para a vinculação de dados às informações do mesmo indivíduo que estão em bases de dados diferentes”, explicou a pesquisadora. Isso é feito a partir da escolha de algumas variáveis identificadoras (como nome da mãe, endereço e idade) e a ajuda de um algoritmo que avalia a probabilidade de o “N” de um banco de dados ser a mesma pessoa em outro banco de dados.

“Foi assim que colocamos todas as bases de dados juntas e pudemos ter a informação de todas as crianças que nasceram, descobrir as que foram notificadas com zika e as que não foram, quem morreu e quem não morreu nos primeiros três anos de vida. Isso é custoso e complexo, envolve computadores superpotentes e especialistas”, contou a pesquisadora.

Os dados impressionantes de mortalidade das crianças com síndrome congênita associada a infecção por Zika obtidos pelos pesquisadores tornam inevitável pensar no enfrentamento da situação.

“A primeira e mais importante recomendação é que o país precisa fazer a prevenção primária para que as mulheres não tenham zika durante a gestação e para que as crianças não tenham riscos de ter a síndrome”, disse a Dra. Enny.

Quanto à população afetada, a pesquisadora destaca a necessidade de aprofundar a compreensão sobre a história natural da síndrome congênita associada a infecção por Zika para melhorar as condições de sobrevivência e a qualidade de vida das crianças e de suas famílias. Uma possibilidade que vem sendo discutida pelo grupo de pesquisadores é fazer um estudo sobre as causas de hospitalização de crianças com a síndrome para desenvolver protocolos e procedimentos adequados a essa população, no intuito de reduzir internações e mortes.

No momento, por causa da pandemia de covid-19 e de ataques cibernéticos ainda não suficientemente esclarecidos aos sistemas de dados do Ministério da Saúde, os pesquisadores não sabem se os casos de zika não estão ocorrendo ou se há problemas de notificação.

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