Essa é uma história que contribuiu para que o nosso país tivesse uma redução da prevalência do tabagismo de 50% nos últimos 30 anos.
Ela começa no segundo semestre de 1992, quando participamos da criação do Programa de Qualidade de Vida do Instituto do Coração (INCOR) que contemplava o tabagismo. Na ocasião indicamos a cardiologista Dra. Jaqueline Ribeiro Scholz para liderar a implementação dos programas de assistência, ensino e pesquisa relacionados ao tema.
Ela própria divide sua atuação em dois escopos: processo de reivindicação de direitos e influir na formulação/implementação de políticas públicas (advocacy); aprimoramento do tratamento do tabagismo.
Advocacy
Foi um grande esforço para divulgar nos meios de comunicação os malefícios do cigarro a fim de mudar a visão política e de saúde sobre o tema.
Em 1993 foi organizado no Incor o primeiro Dia Mundial contra o Tabaco do Brasil com apoio oficial da Organização Mundial da Saúde (OMS); em 1996 o Incor proibiu tabagismo em suas dependências e, em 2007, recebeu reconhecimento desta ação através do Selo Ouro de Instituição Livre do Tabaco.
Graças à persistência na luta, a partir de 1993 várias leis federais foram aprovadas, entre elas a restrição à publicidade (1994) e a proibição de fumar em ambientes fechados (2014). A divulgação pelas mídias dos resultados de grandes pesquisas de campo sobre a concentração de monóxido de carbono em ambientes fechados foi fundamental para convencer a população a aderir à lei e denunciar as instituições que deixassem de cumpri-la.
Essa estratégia foi reproduzida para a redução de morbimortalidade de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes e hipertensão.
Aprimoramento do tratamento
À medida que ganhava experiência pessoal, Jaqueline passou a discordar da abordagem que prevalecia. Tal abordagem era coletiva, semanal e com técnicas motivacionais para mudanças de comportamento. Além disso, os protocolos internacionais não tratavam quem fumava menos de 10 cigarros, como é frequente em fumantes com doenças cardíacas e pulmonares. Ademais, não avaliavam sistematicamente o grau de conforto (desconforto) com o tratamento. Não surpreende que os resultados fossem tímidos, com índices de abandono do tratamento e recaídas muito elevados.
Desse modo, Jaqueline buscou aprimorar o tratamento por meio de três enfoques principais:
1 - Avaliação e estabilização de quadros de depressão e ansiedade antes iniciar tratamento antitabágico;
2 - Uso de medicamentos para o controle da dependência da nicotina (bloqueio do prazer de fumar), incluindo a associação de um segundo medicamento se necessário (associação vareniclina, bupropiona e/ou inibidor da recaptação da serotonina);
3 - “Descondicionamento” dos hábitos associativos em que o cigarro esteja presente. A marcação de uma data para parar de fumar, entre o 8º e o 14º dia do início do tratamento medicamentoso passava por uma sessão de aconselhamento para evitar as situações “gatilho” que estimulam a vontade de fumar. Porém, para boa parte dos fumantes, qualquer situação pode ser um “gatilho”. Por isso, Jaqueline conseguiu bons resultados ao pedir que no 8º dia do tratamento com vareniclina, os pacientes fumassem voltados à uma parede, “de castigo”. A intenção era dissociar o cigarro de outras rotinas e ao olhar para parede, não se distraíssem e prestassem atenção à perda do prazer de fumar.
Implicações
Em 2007, Jaqueline criou o Programa de Assistência ao Fumante (PAF) que inclui um software para atendimento sistematizado com instrumentos personalizados de avaliação da dependência e uma escala de avaliação do conforto (ou desconforto) com o tratamento para modular a orientação.
Vale salientar que os enfoques e estratégias desenvolvidas por Jaqueline são endossadas por importantes entidades internacionais.
A luta não pode parar e agora abrange o combate ao uso do cigarro eletrônico e da maconha que pode impactar na saúde cardiovascular.
Espero que ela consolide a Disciplina de Tabagismo no Programa de Pós-Graduação do Departamento de Cardio-Pneumologia da FMUSP; que continue a promover assistência, ensino e pesquisa no difícil combate a esses fatores de risco tão importantes.
Nunca esqueço das palavras do Professor Adib, então ministro da Saúde, no primeiro Dia Mundial contra o Tabaco do Brasil, em 1993:
“É mais fácil controlar a malária em uma grande população, dispondo uma boa verba, do que fazer UMA SÓ PESSOA PARAR DE FUMAR”.
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Citar este artigo: O progresso na difícil luta contra o tabagismo - Medscape - 16 de fevereiro de 2022.
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