A ocitocina intranasal está se revelando uma promissora opção terapêutica para o transtorno pelo uso de cocaína, sugere nova pesquisa.
De acordo com os resultados de um pequeno estudo randomizado e controlado por placebo, com duração de seis semanas, que avaliou pacientes com transtorno pelo uso de cocaína, os pacientes que usaram a ocitocina intranasal apresentaram um alto nível de abstinência a partir de duas semanas após o início do tratamento.
“Identificamos que o uso de ocitocina intranasal é seguro e viável para pacientes com transtorno pelo uso de cocaína em clínicas comunitárias, sem a ocorrência de eventos adversos e com alto nível de abstinência após seis semanas em comparação com placebo", disse ao Medscape o psiquiatra e primeiro autor do estudo, Dr. Wilfrid Noël Raby, Ph.D.
Por outro lado, "os achados foram paradoxais, porque a taxa de abandono foi maior no grupo da ocitocina após a primeira semana, sugerindo que o fármaco possa ter um efeito bifásico, o que deve ser avaliado nos próximos estudos", acrescentou o Dr. Wilfrid, que era professor adjunto de psiquiatria na Divisão de Abuso de Substâncias do Montefiore Medical Center no Albert Einstein College of Medicine, Estados Unidos, quando o estudo foi realizado.
O estudo foi publicado na edição de março do periódico Drug and Alcohol Dependence Reports.
Necessidade premente
"A concentração na reatividade ao estresse no contexto do vício e na perda das normas sociais entre os usuários de drogas gerou o interesse na ocitocina por seu suposto papel nessas características e na regulação do estresse", escreveram os autores.
A ocitocina é um neuropeptídeo que regula as funções autonômicas. Pesquisas anteriores com usuários de Cannabis sugerem que a substância possa ter um papel no tratamento do vício ao atuar na redução da fissura, segundo relatos. Além disso, pesquisas anteriores também sugeriram que o fármaco reduza a reatividade ao estresse e a raiva em usuários de cocaína.
Um estudo anterior com ocitocina inalatória mostrou redução do desejo por cocaína, e outras pesquisas revelaram que o uso recorrente de cocaína resulta na queda dos níveis de ocitocina endógena, com depleção no hipotálamo e na amígdala.
"O viés do estudo é a busca por estratégias terapêuticas simples, que não viciem e possam ser usadas em clínicas comunitárias, porque são esses os lugares que têm uma necessidade premente e é onde ocorre a maioria dos problemas de dependência de drogas", disse o Dr. Wilfrid.
"Há um antigo interesse na forma como os sistemas adaptativos do cérebro, ou os chamados 'sistemas de estresse', se ajustam diante da dependência química em geral, e o principal foco do estudo está sendo entender essa resposta e usar as percepções dessas adaptações para desenvolver tratamentos para o abuso de drogas, particularmente a dependência de cocaína", acrescentou.
Para investigar o potencial de a ocitocina inalatória promover a abstinência de cocaína, os pesquisadores randomizaram 26 pacientes com transtorno pelo uso de cocaína (73% do sexo masculino; média de idade de 50,2 anos e desvio padrão [DP] de 5,4 anos). A maioria dos participantes usava cocaína regularmente há cerca de 25 anos, e a média de dias de uso de cocaína nos 30 dias anteriores à entrada no estudo (valores de base) foi de 11,1 (DP de 5,7).
Também para estabelecer as características de base, os pesquisadores coletaram a história patológica pregressa dos participantes e realizaram exame físico, toxicologia da urina, eletrocardiograma, painel metabólico abrangente e hemograma completo. Eles usaram a MINI International Neuropsychiatric Interview para confirmar o diagnóstico de dependência de cocaína.
O estudo começou com uma etapa de indução de abstinência de sete dias com o paciente internado, após a qual os participantes foram randomizados para receber ocitocina inalatória 24 UI ou placebo intranasal (n = 15 e 11, respectivamente).
Os pacientes compareceram à clínica três vezes por semana. Em cada visita, eles completaram a Perceived Stress Scale (uma escala de desejo por cocaína) e o Clinician Global Inventory, ambos realizados pelo próprio paciente, bem como o Time Line Follow Back (TLFB) para documentar o uso de cocaína.
Os participantes foram instruídos a utilizar uma solução intranasal em casa, com a adesão monitorada de duas maneiras: a equipe observou a autoadministração da medicação randomizada no momento das visitas à clínica e pesou o “frasco de uso domiciliar”.
O uso de cocaína foi verificado por meio do exame toxicológico da urina e pelo TLFB.
Período limiar
A ocitocina não levou à abstinência sustentada por mais de três semanas. No entanto, a partir da terceira semana, as chances de abstinência semanal aumentaram drasticamente no grupo de intervenção, de 4,61 (IC 95% de 1,05 a 20,3) para 15,0 (IC 95% de 1,18 a 190,2) na sexta semana (t(69) = 2,12; P = 0,037).
O grupo geral de medicação por tempo de interação não foi significativo em todas as seis semanas (F1,69 = 1,73; P = 0,19); porém, quando o tempo de interação foi removido, a diferença entre o efeito global da medicação (ocitocina inalatória versus placebo) nas seis semanas "atingiu tendência à significância estatística" (F1,70 = 3,42; P = 0,07).
Os desfechos de classificação subjetiva (fissura, estresse percebido, dependência de cocaína e depressão) "não mostraram um efeito significativo no grupo de medicação por semana de tratamento", relataram os autores, embora os desejos induzidos por estresse apresentaram tendência a uma diferença significativa entre os grupos.
Metade dos pacientes não completou o acompanhamento de seis semanas. Entre os que cessaram o tratamento, 85% estavam no grupo ocitocina e 15% no grupo de controle. Dos 11 que abandonaram o grupo de intervenção, sete estavam em abstinência há pelo menos uma semana no momento da interrupção.
Não ocorreram diferenças significativas nas taxas de efeitos colaterais relatados para os dois grupos.
"Este estudo destaca a perspectiva de que talvez haja um limiar de tempo que precise ser ultrapassado, e após o qual a ocitocina possa realmente ser útil como medicamento de resgate ou de manutenção", disse o Dr. Wilfrid. A curta duração do estudo pode ter sido uma desvantagem; "Poderíamos ter visto melhores resultados se o estudo tivesse 8 ou 12 semanas de duração", comentou ele.
Usar estratégias motivacionais durante a fase inicial (p. ex.: psicoterapia ou um sistema de vouchers) pode aumentar a adesão, e então, “após essa fase de latência inicial, talvez possamos ver um efeito mais terapêutico”, sugeriu ele.
O médico observou que seu grupo estudou as secreções do hormônio do estresse nos participantes dependentes de cocaína durante o período de indução de sete dias, e que as descobertas, quando publicadas, poderiam esclarecer esse período de latência. "A dependência da cocaína cria adaptações no sistema de estresse", disse ele.
Um bom primeiro passo
Comentando o estudo para o Medscape, a Dra. Jane Joseph, Ph.D., professora do Departamento de Neurociências e diretora da Divisão de Neuroimagem da Medical University of South Carolina, nos Estados Unidos, disse que "é bom ver um ensaio clínico usando ocitocina na dependência de cocaína [porque] a pesquisa pré-clínica mostrou efeitos bastante convincentes do fármaco na redução do desejo ou do estresse no contexto da busca por cocaína, mas os achados são bastante variados em estudos em humanos”.
A Dra. Jane, que não participou do estudo, disse que a pesquisa de seu grupo mostrou que a ocitocina é o fármaco mais útil para homens com transtorno pelo uso de cocaína que relataram trauma na infância, enquanto para as mulheres, "pareceu piorar a reatividade a estímulos de cocaína".
Ela disse que o estudo do Dr. Wilfrid e colaboradores é um "bom primeiro passo", e sugeriu que as próximas pesquisas incluam amostras maiores para "abordar parte da variabilidade individual na resposta à ocitocina, examinando diferenças entre os sexos ou histórico de trauma".
O estudo contou com suporte financeiro de um prêmio recebido do National Institute of Drug Abuse. O Dr. Wilfrid, os coautores e a Dra. Jane informaram não ter conflitos de interesses financeiros.
Drug Alcohol Depend. Publicado em março de 2022. Texto completo
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Citar este artigo: Ocitocina intranasal mostra-se promissora para tratar dependência de cocaína - Medscape - 14 de fevereiro de 2022.
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