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O comprometimento cognitivo associado à covid-19 parece ter uma base biológica, ao invés de psicológica, sugerem resultados preliminares.
Os pesquisadores encontraram alterações no líquido cefalorraquidiano (LCR), ou liquor, e outros fatores de risco, como diabetes e hipertensão, em indivíduos com covid-19 leve que apresentavam problemas cognitivos persistentes, muitas vezes referidos como “confusão mental”.

Dra. Joana Hellmuth
"Estamos vendo alterações [no liquor] no cérebro da maioria das pessoas que referem alterações cognitivas", disse ao Medscape a Dra. Joanna Hellmuth, médica, professora assistente de neurologia do Memory and Aging Center, University of California, San Francisco (UCSF), nos Estados Unidos.
"Estamos apenas nos estágios preliminares, mas espero que este estudo forneça alguma legitimidade de que esta seja uma verdadeira doença neurológica."
O estudo foi publicado on-line em 18 de janeiro no Annals of Clinical and Translational Neurology.
Ausência de orientações
Atualmente, não há orientações para a identificação de pacientes com alterações cognitivas relacionadas à covid-19, disse a Dra. Joanna. "O termo confusão mental não tem raiz médica ou científica, mas é o termo mais usado para descrever esse quadro."
A análise incluiu adultos com diagnóstico confirmado de infecção pelo SARS-CoV-2 acompanhados ambulatorialmente que estavam inscritos no estudo Long-term Impact of Infection with Novel Coronavirus (LIINC).
Foi realizada uma entrevista estruturada com os participantes, abordando: covid-19, história patológica pregressa, fatores de risco cognitivo preexistentes, uso de medicamentos e presença de sintomas cognitivos após o diagnóstico de covid-19. Os participantes também passaram por uma série de testes cognitivos presenciais.
A análise incluiu 22 participantes com pelo menos um novo sintoma cognitivo que apresentaram sequelas cognitivas após a resolução da infecção aguda pelo SARS-CoV-2, ou PASC (do inglês, post-acute sequelae of SARS-CoV-2). Dez do grupo de controle afirmaram que não tiveram novos sintomas cognitivos após a resolução da infecção aguda.
A mediana de idade dos participantes era de 41 anos, e a mediana de escolaridade, de 16 anos. E eles foram avaliados, em mediana, 10,1 meses após o primeiro sintoma de covid-19. Não houve diferença entre os grupos em termos de idade, sexo, anos de escolaridade ou distribuição de raça/etnia (P > 0,05 para todos).
No grupo com PASC, 43% relataram sintomas cognitivos iniciados pelo menos um mês após o primeiro sintoma da covid-19 e cerca de 29% relataram sintomas iniciados pelo menos dois meses após o primeiro sintoma de covid-19.
“O sistema imunitário pode ser alterado de alguma forma após a infecção, e talvez seja isso que esteja contribuindo para essas alterações cognitivas de início tardio”, disse Dra. Joanna.
Comparados aos controles, os participantes com PASC tinham mais fatores de risco cognitivos preexistentes (mediana de 2,5 vs. 0,0; P = 0,03). Os fatores de risco foram: hipertensão, diabetes (que aumentam o risco de acidente vascular cerebral), comprometimento cognitivo leve, demência vascular, traumatismo cranioencefálico (TCE), dificuldades de aprendizagem, ansiedade, depressão, uso de estimulantes e transtorno do déficit de atenção/hiperatividade, o que pode tornar o cérebro mais vulnerável a problemas de funcionamento executivo.
A Dra. Joanna observou que o estudo não foi teve poder estatístico para determinar se algum fator de risco individual estaria associado ao risco de alterações cognitivas.
Como não há publicações com critérios para a avaliação neuropsicológica de PASC cognitiva, os pesquisadores aplicaram os critérios equivalentes ao transtorno neurocognitivo associado ao vírus da imunodeficiência humana (VIH), um transtorno cognitivo semelhante associado a uma infecção viral.
Apenas 59% dos pacientes com PASC cumpriram os critérios de transtorno neurocognitivo associado ao VIH equivalentes a comprometimento cognitivo objetivo versus 70% dos controles. Isso, observaram os pesquisadores, destaca "os desafios e as incongruências do uso de avaliações cognitivas subjetivas versus objetivas para o diagnóstico".
O autorrelato é suficiente?
Embora atualmente não haja "nada que os médicos possam objetivamente usar para dizer 'você tem' ou 'você não tem’ alterações cognitivas relacionadas à covid-19", usar os critérios de transtorno neurocognitivo associado ao VIH "não é particularmente útil", disse a Dra. Joanna.
“Comparar um indivíduo com uma norma baseada na população neste caso é complexo, e não devemos confiar somente nisso para determinar se os pacientes têm ou não alterações cognitivas”.
Talvez, nesse caso, os autorrelatos sejam "suficientes", disse a Dra. Joanna. "As pessoas conhecem seus cérebros melhor do que ninguém, melhor do que qualquer médico jamais irá."
Treze pacientes no grupo PASC e quatro no grupo de controle consentiram em fazer uma punção lombar. Os participantes do grupo PASC eram mais velhos do que os controles (mediana de 47 vs. 28 anos; P = 0,03). Não houve outras diferenças entre os grupos.
No total, 77% dos participantes com PASC tinham alguma alteração no liquor em comparação com 0% dos controles (P = 0,01).
As alterações no liquor consistiram em proteína tocada (sem outro motivo) em 2 dos 13 indivíduos com PASC, o que, segundo a Dra. Joanna, trata-se de um típico marcador de inflamação.
Os pesquisadores também observaram alteração das bandas oligoclonais (uma coleção de anticorpos) no sangue ou no liquor. Algo identificado em 69% dos participantes com PASC vs. 0% dos controles (P = 0,03).
A presença deste padrão no sangue e no cérebro “sugere um distúrbio inflamatório sistêmico”, disse a Dra. Joanna, apesar de “não termos ideia do que esses anticorpos estejam atacando”, completou.
O estudo representa um estágio bem preliminar antes de a PASC se tornar um diagnóstico clínico, "que os médicos saberão referir, tratar e fazer investigações séricas e no liquor para diagnosticar", disse Dra. Joanna.
Ela espera que, assim como o traumatismo cranioencefálico, as sequelas após a resolução da infecção aguda pelo SARS-CoV-2 sejam legitimadas na medicina. No passado, um jogador atingido na cabeça ou gravemente ferido simplesmente voltava a campo. “Agora que entendemos a ciência, chamamos de TCE leve, ou concussão, e temos uma abordagem médica muito diferente para isso”.
Uma limitação do estudo foi o pequeno tamanho da amostra, o que pode dificultar a validade dos resultados. Além disso, a demografia do estudo talvez não reflita a população mais ampla de pessoas impactadas pelas PASC.
“Um importante primeiro passo”
Comentando a pesquisa para o Medscape, o Dr. William Schaffner, médico e professor da Divisão de Doenças Infecciosas do Vanderbilt University Medical Center, nos Estados Unidos, disse que os novos resultados representam "um importante primeiro passo no caminho para tentar descobrir o que está acontecendo" com pacientes com covid-19 que lidam com problemas cognitivos.
O Dr. William observou altos níveis de proteína identificados em alguns indivíduos do estudo, o que "geralmente é uma consequência de inflamação anterior". É um achado "muito interessante".
“Em pessoas hígidas, se você fizer uma punção lombar, não encontrará proteína tocada.” No entanto, ele observou uma "variedade de resultados" dos exames de liquor. "Não há um evidente padrão único."
Os pesquisadores vêm observando que "não é apenas um fenômeno mental ou apenas algo psicológico", disse Dr. William. "Há algo fisiológico acontecendo aqui."
O estudo foi financiado por doações do National Institute of Mental Health e do National Institute of Neurological Disorders and Stroke (NINDS), ambos dos EUA. A Dra. Joanna recebeu apoio financeiro do National Institutes of Health/NIMH dos EUA para este trabalho e remuneração por consultas médico-legais sem relação com o trabalho em pauta. O Dr. William informou não ter relações financeiras relevantes.
Ann Clin Transl Neurol. Publicado on-line em 18 de janeiro de 2022. Abstract
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Créditos:
Imagem principal: Getty Images
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Citar este artigo: Confusão mental pós-covid-19: uma ‘doença neurológica real’ - Medscape - 9 de fevereiro de 2022.
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