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Após ameaça de exposição de nomes dos servidores que compõem a área técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) pelo presidente da República em decorrência da aprovação do imunizante contra a covid-19 (Pfizer) para crianças de cinco a 11 anos, o gerente-geral de Medicamentos e Produtos Biológicos (GGME) Gustavo Mendes falou ao Medscape e esclareceu o papel técnico da agência na aprovação de vacinas e outros fármacos. Leia a seguir a entrevista.
Como você se sente diante das declarações e ameaças de exposição de nomes de servidores?
Gustavo Mendes: Estou me sentindo muito tranquilo, pois a aprovação da vacina da Pfizer contra a covid-19 para crianças de 5 a 11 anos foi uma decisão baseada em critérios técnicos e científicos. A equipe de especialistas da Anvisa conta com servidores com mais de dez anos de carreira e focados na avaliação de dados e estudos clínicos. Além disso, nesta decisão nós tivemos a possibilidade de contar com o auxílio das sociedades médicas de infectologia, imunologia e pediatria, portanto foi uma decisão muito acertada e muito bem discutida cientificamente.
Como a sua equipe recebeu as declarações do presidente?
Gustavo Mendes: A questão de expor ou não o nome de servidores públicos deve ser tratada no âmbito judiciário, pois os servidores têm sua atuação nas regras da impessoalidade e em todos os pretextos do serviço público – então não cabe discussão. Os servidores estão muito tranquilos sobre a decisão, tanto que a Associação dos Servidores da Anvisa (Univisa) se manifestou com apoio, recebemos suporte de vários pesquisadores e inclusive de diretores da Anvisa. Eles manifestaram apoio à área técnica na decisão, portanto estamos nos sentindo muito respaldados.
É possível ver, no seu perfil na rede social profissional LinkedIn, que você recebeu comentários de apoio para continuar o trabalho técnico. O que isso representa para você?
Gustavo Mendes: Eu vejo que boa parte da população entende o papel da Anvisa. Este foi um trabalho que começamos até mesmo antes da pandemia pois, em discussões com agências reguladoras internacionais, sabíamos que seríamos pressionados para dar respostas rápidas e, ao mesmo tempo, manter os critérios de qualidade e segurança dos produtos. Já sabíamos que teríamos de ser muito transparentes em nossas ações, explicar à população o motivo de existir uma agência reguladora e qual a função dela. Temos feito esse trabalho ao longo da pandemia e parece ter dado bons resultados, considerando o apoio que temos recebido. Sabemos que é necessário esclarecer a função da Anvisa, pois a agência é um órgão de Estado, não de governo.
Quais são os padrões de qualidade e o processo adotado pela Anvisa para aprovar ou não algum fármaco ou vacina?
Gustavo Mendes: Nossa equipe é composta por especialistas multidisciplinares, então temos médicos, farmacêuticos, estatísticos, biólogos e biomédicos, porque todos são responsáveis por avaliar um aspecto do desenvolvimento de um fármaco. Com isso, a Anvisa acompanha novos medicamentos desde o seu desenvolvimento. Se os estudos clínicos forem realizados no Brasil, a atuação da agência já começa nesse primeiro momento, com a aprovação dos protocolos de estudo.
Basicamente, são quatro os principais pontos avaliados para que possamos tomar uma decisão sobre a aprovação ou não de um medicamento ou de uma vacina. O primeiro é a eficácia. O medicamento ou vacina precisa demonstrar, por meio de estudos clínicos, se realmente tem um desempenho terapêutico satisfatório e cientificamente demonstrado.
O segundo ponto é a segurança. O perfil de reações adversas, o risco que o fármaco pode causar e o perfil toxicológico têm de ser muito bem demonstrados por meio dos estudos científicos. O terceiro aspecto, por sua vez, é a qualidade. O produto precisa ser desenvolvido, em termos de tecnologia farmacêutica (ou biotecnologia), com excipientes adequados, equipamentos de produção apropriados para a fabricação daquela fórmula farmacêutica, bem como parâmetros de controle de qualidade para liberação dos lotes.
O último aspecto é o que chamamos de boas práticas de fabricação. Todo medicamento que será fabricado e industrializado precisa ser aprovado pela Anvisa no que diz respeito ao seu local de produção. Portanto, a agência faz inspeções nas indústrias e verifica se os equipamentos estão adequados, se a equipe é treinada para fabricação e se há, na empresa, um sistema de qualidade implementado que garanta que não vá ter desvios na fabricação dos lotes.
Qual a importância do processo adotado pela Anvisa em relação à crise sanitária que o Brasil vive atualmente?
Gustavo Mendes: Uma das funções da agência é garantir que o produto que vai ser utilizado no enfrentamento de uma doença ou de uma pandemia realmente vai trazer o benefício esperado. E não se trata apenas dos aspectos dos estudos clínicos, mostrando que realmente tem um efeito, mas também na garantia de que os lotes de medicamentos e vacinas disponibilizados à população não têm nenhum desvio de qualidade ou algo que possa se tornar uma preocupação. É essencial, portanto, o trabalho de assegurar que esses medicamentos sejam utilizados de forma adequada e com qualidade bem estabelecida.
No que foi baseada a decisão para aprovar a vacina contra covid-19 em crianças de cinco a 11 anos e como foi o processo?
Gustavo Mendes: O processo para aprovação é o mesmo. A grande questão é que, no caso do público pediátrico, temos preocupações específicas a respeito da segurança e da capacidade de uma vacina de gerar anticorpos. Primeiro avaliamos se é a mesma dose de adulto e se essa dose similar vai trazer a mesma resposta imunológica e vai trazer um resultado de eficácia equivalente. Como o desenvolvimento das vacinas contra covid-19 começou pelos adultos, o que temos de observar nos estudos para crianças é se é possível extrapolar essas informações de adultos para a população pediátrica ou se será necessário fazer adaptações nos produtos.
No caso específico da vacina da Pfizer, como foi a análise?
Gustavo Mendes: Primeiramente, a Pfizer fez um estudo para definir a dose mais adequada, e ficou definido que a dose corresponde a um terço da dose dos adultos (30 mcg para adultos e 10 mcg para o público pediátrico). Logo, é dois terços menor do que a dose aprovada para adultos. Portanto, avaliamos esses primeiros estudos para definição de dose e, em seguida, analisamos estudos de segurança e estudos de immuno-bridging.
O tempo total de avaliação da Anvisa foi de aproximadamente 17 dias, e houve uma dedicação intensa da equipe para que pudéssemos ter todos os esclarecimentos presentes nas informações que foram compartilhadas conosco. Tivemos a necessidade de solicitar informações e dados para a Pfizer, pois os estudos que inicialmente foram submetidos para a agência reguladora dos Estados Unidos não haviam sido submetidos para o Brasil (foram enviados resumos). A Anvisa solicitou os dados completos, pois faz parte da nossa avaliação avaliar os dados brutos – laudos, fichas clínicas e todas as informações que levaram a empresa a concluir a respeito da eficácia e segurança da vacina. A Pfizer complementou essas informações e nós procedemos com a análise.
Por que é importante que a Anvisa se mantenha como uma entidade apolítica?
Gustavo Mendes: A função da agência regulatória é técnica, e a função técnica não envolve, de forma alguma, questões de governo ou questões políticas. Os parâmetros para aprovação de medicamentos são discutidos internacionalmente entre agências reguladoras, portanto não são regras que envolvem questões partidárias ou de governo, mas sim critérios técnicos que envolvem conhecimentos farmacêuticos, médicos e estatísticos para a aprovação de estudos clínicos e desenvolvimento de medicamentos. A importância de se manter apolítica está no fato de que é preciso ter uma agência isenta para poder aplicar critérios técnicos em uma decisão.
Houve retrocesso em relação à liberdade regulatória da Anvisa?
Gustavo Mendes: Não, de forma alguma. Se acompanharmos o que houve durante toda a pandemia de covid-19 e até mesmo antes da pandemia, a Anvisa foi até mesmo criticada porque muitas vezes as pessoas não entendiam o trabalho de regulação. Este é um fenômeno que acontece em vários países, não somente no Brasil. Já passamos por vários questionamentos, tanto de governos quanto de pessoas que são contra o governo e que, em algum momento, acharam que estávamos ligados ao governo porque tomamos uma determinada decisão. Por isso, foi necessário esclarecer e tornar o nosso processo muito transparente para que a população entenda que o critério é técnico. Não vejo restrição de liberdade de nenhuma forma.
Você teme sofrer algum tipo de retaliação por parte da população ou do governo em decorrência da aprovação técnica para vacinação em crianças?
Gustavo Mendes: Não, não temo. Somos servidores públicos estáveis e, quando existe um embasamento técnico para uma decisão, não há espaço para esse tipo de ação.
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Citar este artigo: "Decisão foi técnica e científica", diz gerente-geral da Anvisa sobre aprovação de vacina contra covid-19 para crianças - Medscape - 20 de dezembro de 2021.