Estudo indica associação entre alterações climáticas e doença renal

Mônica Tarantino

Notificação

12 de novembro de 2021

Os efeitos das mudanças climáticas na saúde humana já podem ser identificados e mensurados nas cidades brasileiras, revela estudo publicado em 31 de outubro no periódico The Lancet Regional Health – Americas.

Os pesquisadores descobriram que um total de 202.093 casos de doença renal ocorridos de 2000 a 2015 no Brasil – o que equivale a 7,4% das hospitalizações por doença renal – podem ser diretamente atribuídos ao aumento da temperatura ambiente ao longo de um intervalo de sete dias.

Conduzido por pesquisadores da Monash University, na Austrália, e do Instituto de Estudos Avançados, da Universidade de São Paulo (USP), o levantamento estimou pela primeira vez o risco relativo e a carga de hospitalizações por doenças renais associadas à temperatura em 1.816 cidades brasileiras, que concentram quase 80% da população do país, a partir de um conjunto de dados do Sistema Único de Saúde (SUS).

O risco relativo expressa uma comparação da probabilidade do risco de adoecer entre grupos de expostos e não expostos a um determinado fator em estudo. Os pesquisadores ajustaram os dados por diversas variáveis e compararam as séries históricas. Os dados evidenciaram que cada 1º C a mais na temperatura média diária equivale a um aumento do risco relativo de 0,9% de doença renal.

“Os seguimentos mostraram que quando as cidades brasileiras saem da faixa de conforto térmico de cada uma delas, os segmentos mais vulneráveis da população – as crianças e idosos –, têm maior risco de ter que ir ao hospital para cuidar de uma doença renal”, disse ao Medscape um dos autores do estudo, o médico Dr. Paulo Saldiva, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) e professor titular de Patologia da Faculdade de Medicina da USP.

Especificamente, o grupo mais atingido é composto por crianças de zero a quatro anos, com 3,5% de aumento no risco relativo a cada 1º C de elevação da temperatura. Em seguida estão as mulheres (1,1%) e, por fim, os idosos acima de 80 anos (1,0%). Os casos foram classificados em três categorias principais: doenças glomerulares, doenças renais túbulo-intersticiais e insuficiência renal. 

A abordagem feita pelos pesquisadores permitiu a caracterização da relação entre a temperatura ambiente, doenças renais e o aumento das visitas ao pronto-socorro e hospitalizações por esse motivo. Por ser a maior pesquisa já feita até o momento nesse campo, os ajustes por variáveis como idade, sexo, subtipos e região trouxeram informações valiosas. O risco de internação por doença renal é maior na região Norte (2,2%), que é mais quente e úmida do que a região Sudeste (0,7%), por exemplo.

Até então, os principais estudos haviam sido feitos principalmente em países riscos e eram relativamente pequenos, impedindo a avaliação por variações como sexo e idade, região e subtipos.

O trabalho apontou que o impacto de grandes variações de temperatura no organismo, especificamente nos rins, como a mudança do sol quente durante o dia para frio de tiritar durante a noite, pode persistir nos dois dias subsequentes.

Os efeitos do calor

Um dos motivos pelos quais as crianças são tão vulneráveis é o mecanismo biológico de termorregulação não estar amadurecido e adaptado. “Os prematuros precisam ir para a incubadora, porque os seus mecanismos de termorregulação estão se consolidando. Tanto que uma criança pequena com otite ou amigdalite faz um febrão. Elas têm uma incapacidade de controlar o ajuste fino disso, o que vai acontecendo com o tempo”, descreveu o Dr. Paulo. A relação superfície/massa também é maior em crianças do que num adulto, o que as deixa mais expostas. O Dr. Paulo explicou ainda que as mulheres são mais vulneráveis ao calor por terem proporcionalmente mais gordura corporal devido a questões evolutivas. Variações estrogênicas características à menopausa e ao climatério também interferem na motilidade dos vasos sanguíneos e no centro de termorregulação. Em idosos, o termostato biológico que controla a temperatura corporal é afetado por aspectos relacionados ao envelhecimento, como a atrofia do tecido subcutâneo, que leva a perdas na proteção contra as variações de temperatura. As próprias alterações cerebrais podem fazer com que as respostas autonômicas sejam mais lentas. Durante uma onda de calor, por exemplo, embora sofram perdas de volume, é comum idosos não terem a sensação subjetiva de sede, porque não conseguem detectar bem a osmolaridade.

Em todas essas situações, os rins trabalham mais. “Por definição, os rins absorvem muita quantidade de líquido ao longo do dia, principalmente nos períodos de desidratação. Se você medir a pressão parcial de oxigênio no tecido renal, é uma das mais baixas do corpo, porque o órgão usa muita energia, muito oxigênio. E quanto mais trabalha mais consome. Já tinha sido observado em trabalhadores nas Antilhas, no sudeste asiático e até em alguns casos do nordeste do Brasil, que o trabalho estafante, sob um calor intenso, com grande sudorese, pode causar insuficiência renal em pessoas jovens”, relata o pesquisador.

Laboratório natural

A escolha do Brasil para a realização do estudo considerou o fato de o país ter bons dados de saúde por meio dos registros do SUS e vários tipos de climas regionais, do tropical ao temperado para frio. Além disso, há uma grande quantidade de brasileiros com hipertensão arterial e diabetes sem o devido controle, o que se soma ao envelhecimento da população e aos grandes contrastes sociais. “O Brasil se apresenta como um laboratório natural da relação entre ambiente e desigualdade social”, resumiu o Dr. Paulo.

O pesquisador destaca que este foi um trabalho feito a muitas mãos e chama a atenção para a participação de autores chineses e da biometeorologista Micheline Coêlho, que estuda medicina na Monach University, um centro avançado de epidemiologia ambiental focado no clima, e é pesquisadora da USP. Como o Dr. Paulo e os outros autores, Micheline participa da rede de pesquisa colaborativa internacional Multi-Country Multi-City (MCC), que estuda 470 cidades no mundo para ver se essas consistentes alterações climáticas variam conforme a latitude e mostrar o que as alterações climáticas representam em termos de adoecimento ou mortes. “A MCC já publicou muitos trabalhos em periódicos importantes, mas a América Latina quase nunca aparece. Resolvemos montar um trabalho paralelo aproveitando os dados e condições que temos no Brasil também para ampliar essa presença”, disse o Dr. Paulo.

Siga o Medscape em português no Facebook, no Twitter e no YouTube

Comente

3090D553-9492-4563-8681-AD288FA52ACE
Comentários são moderados. Veja os nossos Termos de Uso

processing....