Sir Andrew Pollard: "níveis de anticorpos não atestam proteção contra a covid-19"

Roxana Tabakman

Notificação

13 de outubro de 2021

O professor Andrew Pollard lidera o grupo de vacina anticovídica da University of Oxford, no Reino Unido. Ele é o pesquisador chefe da equipe que começou a trabalhar na vacina em parceria com a empresa AstraZeneca há pouco mais de um ano – hoje, já são mais de um bilhão de doses distribuídas no mundo. Na palestra inaugural do 45º Congresso Anual da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), o IMMUNO 2021, que foi realizado de on-line, ele destacou a contribuição do Brasil, que, com 10.414 voluntários nos testes, foi crucial para o desenvolvimento do imunizante.

Condecorado com o título de cavalheiro nas honrarias de aniversário deste ano da rainha da Inglaterra, por seus serviços à saúde pública, especialmente durante a pandemia, Sir Pollard demonstra orgulho pela vacina, que se estima já ter salvado um milhão de vidas, e otimismo em relação ao futuro, mas não esconde as muitas perguntas que a ciência ainda deve responder.

“Medir imunidade não significa que entendemos a proteção”, disse o especialista britânico, que também trabalhou no desenho, desenvolvimento e avaliação do impacto de outras vacinas, por exemplo, contra febre tifoide, meningococo, Haemophilus influenzae tipo b, pneumococo, coqueluche, raiva e Ebola.

Sir Pollard referiu que um dos problemas dos ensaios clínicos com a vacina anticovídica foi que deram pouca confiança contra doença grave, porque foram poucos os casos hospitalizados e os que faleceram.

“Não tínhamos bons dados para saber como ia prevenir doença grave, tínhamos sim para infecções leves que não chegam no hospital. E mesmo assim, eram dados de boa resposta em diferentes idades, mas contra um único vírus, de quando a variante Alfa era dominante. Há ainda muito poucos dados envolvendo a delta, o que é claramente crítico para o mundo de hoje.”

Correlação de proteção

“Se vocês olharem para os níveis de anticorpos em um indivíduo em uma população, não é possível dizer se este indivíduo está protegido. A pessoa pode apresentar altos níveis e desenvolver infecção, assim como pode ter um baixo nível de anticorpos e estar totalmente protegida. Não há certeza sobre o que definitivamente protege contra a infecção.”

A correlação de proteção com nível de anticorpos foi demostrada para infecção leve, mas para doença grave, a proteção da vacina se mantém apesar do escape viral aos anticorpos neutralizantes. “Se realmente quisermos entender o que devemos fazer em relação às vacinas no futuro, temos de entender melhor a proteção contra doenças graves.”

Na palestra, o pesquisador ofereceu uma evidência tangível a partir de uma experiência com modelos murinos não vacinados expostos ao SARS-CoV-2. Os danos pulmonares nos murinos eram gravíssimos. Os animais vacinados, no entanto, apresentaram um alto nível de anticorpos contra a variante Alfa, mas níveis muito baixos de anticorpos contra a variante Beta. “A partir disso, pode-se prever que os primeiros seriam protegidos – e de fato eles foram, apresentando pulmões saudáveis após serem expostos ao vírus. E poderia se pensar que os animais sem anticorpos neutralizantes teriam problemas – mas não tiveram. Os animais expostos à variante Beta não apresentaram nenhuma patologia pulmonar visível, sendo que eles tinham vírus em suas vias respiratórias superiores.”

A imagem de pulmões sadios de animais com poucos anticorpos que foram expostos ao vírus levanta várias hipóteses. “Pode ser que a detecção de anticorpos neutralizantes não seja suficientemente sensível ou que outros mecanismos imunológicos sejam relevantes para proteger os pulmões e contra infecções.”

Para evitar doença grave, o crucial aparentemente não são os anticorpos neutralizantes, mas outras formas de anticorpos ou talvez as células T, mas até agora não há evidências convincentes do mecanismo mais provável. “Levantamos uma série de hipóteses que realmente precisamos testar em humanos e há trabalhos em andamento.”

“Ficou muito evidente na palestra a importância de a proteção poder ser conferida por outras formas, que não apenas via anticorpos, e que o fato de uma pessoa vacinada apresentar queda nos níveis de anticorpos contra a covid-19 não significa que ela não esteja mais protegida”, disse ao Medscape a Dra. Cristina Ribeiro de Barros Cardoso, da diretoria da SBI. Segundo ela, esta é uma mensagem “importante, porque muita gente acha que tudo é anticorpo.”

A Dra. Cristina fala da “moda” entre as pessoas que procuraram laboratórios após receberem a vacina anticovídica para fazer exame de sangue e ver se “estavam protegidas da covid-19”.

“Isto é algo que não deve ter feito, porque a imunidade contra a covid-19 não é medida apenas por anticorpos; e, mesmo que a pessoa os tenha, podem não estar funcionando”, destacou.

Sir Pollard mencionou também que o perfil de anticorpos de indivíduos convalescentes apresenta diferenças em relação ao perfil dos vacinados e que há projetos de sorologia sistêmica em andamento “tentando puxar as diferenças para identificar quais dessas funções podem ser importantes”.

Em nível populacional, no entanto, seria diferente. “Agora temos uma ideia de que os anticorpos neutralizantes protegem contra a infecção moderada, portanto, se quisermos que as vacinas protejam contra a infecção moderada, precisamos manter um nível muito alto de anticorpos neutralizantes na população”, disse Sir Pollard.

Outra questão que os cientistas ainda não resolveram é o motivo de a variante Delta estar associada a alta transmissão comunitária, mas a doença ser um pouco mais leve. “Temos que entender isso. O papel das células T também pode ser importante, mas nós simplesmente não temos as ferramentas para obter a resposta. Para tentar rastrear a proteção precisaríamos ter soro armazenado de talvez centenas de milhares de pessoas após a vacinação, e tentar identificar o que os tornava suscetíveis à doença grave. Não temos uma boa ideia sobre qual mecanismo está envolvido na proteção da doença grave”, reconheceu Sir Pollard.

“Estudar a imunidade celular não é muito fácil, este tipo de análise não é feito em exames simples de laboratórios de análises clínicas”, complementou a Dra. Cristina, que é professora de imunologia e neuroimunoendocrinologia na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FCFRP-USP).

Incertezas

Sir Pollard reconhece que ainda há muitas incertezas e as exemplifica por meio de gráficos com uma quantidade importante de curvas, que correspondem às previsões de casos de hospitalização por covid-19 após o aumento de interações sociais durante as férias e o posterior retorno às aulas e ao trabalho no Reino Unido. Era início de julho, e os diferentes modelos previam desde 10.000 até um número muito pequeno de admissões por dia. “Os números reais foram similares às previsões mais baixas, mas ainda não sabemos por que as outras previsões estavam erradas.”

Também foi observado que os pacientes hospitalizados por covid-19 ficaram menos dias no hospital e, de maneira geral, estavam menos doentes do que nas formas anteriores da doença, com admissões de 48 horas ou menos. “Os pacientes imunocomprometidos compuseram o grupo de preocupação, e precisamos nos concentrar neles.”

Outras incertezas referidas pelo especialista se referem aos reforços vacinais. “Não sabemos exatamente qual é o momento ideal para reforçar a proteção.”

Em relação à queda nos níveis de anticorpos ao longo do tempo, ele afirmou que é um fenômeno inteiramente esperado. “Depois de qualquer vacina, vemos um pico nas primeiras quatro a seis semanas e em seguida espera-se uma queda nos anticorpos nos próximos 265 dias, voltando a subir com a segunda dose da vacina”, explicou. Sir Pollard frisou, no entanto, que isso não significa necessariamente que os indivíduos não estejam protegidos. “A questão chave é o que está acontecendo com o sistema imunitário.”

Ele garante que o declínio na eficácia das vacinas é muito baixo na população adulta saudável, e que o maior declínio parece ocorrer entre pacientes imunocomprometidos, com fragilidade e idosos. O pesquisador mostrou um gráfico divulgado pela imprensa mostrando que a vacina anticovídica da Oxford/AstraZeneca manteve o melhor o nível de anticorpos ao longo do tempo em comparação com a vacina da Pfizer/BioNTech, mas advertiu: “este gráfico foi publicado pelo Financial Times há algumas semanas... semana passada divulgaram outro gráfico com resultados contrários. Então eu acho que a resposta é que não sabemos qual deles representa a verdade. Há algum declínio na imunidade, sim, e está sendo medido pelos estudos em andamento.”

O britânico opinou que talvez para a maior parte das pessoas a memória imune seja suficiente para conferir proteção, mas que alguns grupos precisam ser mais bem compreendidos, e deve-se pensar mais sobre as melhores estratégias nestes casos. “Talvez oferecendo mais doses aos pacientes imunocomprometidos poderia se sustentar melhor a imunidade.”

Os fatores de confusão também operam nas comparações entre vacinas, de acordo com a cobertura vacinal, o tipo de população e a performance das vacinas contra as diferentes variantes, sendo cada vez mais difícil encontrar um grupo comparativo não imune, porque mesmo a população não vacinada pode apresentar altos níveis de proteção contra a infecção por ter tido a doença.

Indagado por um participante sobre os esquemas heterólogos (após alertar que nem todas as vacinas foram testadas), Sir Pollard disse que, em geral, os esquemas heterólogos dão uma resposta levemente melhorada. “Se reforçar a vacina de Oxford com uma de mRNA, você vê altos níveis de anticorpo neutralizante. Mas, ressaltou, o que não está claro é o que realmente é necessário para proteção; porque a proteção já existe, elevar esses níveis muito acima dos obtidos após as duas doses da vacina pode resultar em benefícios adicionais relativamente marginais.”

Dados enganosos

Sir Pollard chamou atenção para um possível engano decorrente dos números em um momento em que há uma taxa muito alta de transmissão viral. De acordo com ele, com a mortalidade por covid-19 baixa, um dos problemas com a produção de dados diários é que nem todas as mortes notificadas são associadas ao vírus. Uma proporção dos indivíduos que testou positivo nos últimos 28 dias e morreu por outras causas será equivocadamente incluída entre as mortes por covid-19.

Ele não duvida que os casos continuarão a ocorrer nos próximos meses e anos, e que haverá pessoas não vacinadas ou que não estão protegidas mesmo com após a vacinação entre internações e óbitos. “A transmissão na comunidade vai fazer manchetes, mas talvez devêssemos ver a situação por uma perspectiva científica em vez de mística.”

Sobre o futuro, ele se declarou “razoavelmente otimista”, sem deixar de mencionar que a grande maioria das mortes poderiam não ter ocorrido se as vacinas tivessem sido distribuídas de forma equitativa. “A distribuição injusta das doses é uma falha moral da política internacional”, mas se disse otimista, porque, após um par de doses da vacina, há, na maioria dos casos, uma proteção marcada. Ele pensa ainda que é possível que com a pandemia os anticorpos neutralizantes sejam reforçados por infecções leves que ofereçam uma proteção muito boa nos próximos anos, sem a necessidade de toda a população ter reforço regularmente para manter isso.

“A situação ideal, na qual você pode ter se espalhado do vírus, mas não doença grave, e que talvez nos coloque em um lugar melhor.”

Roxana Tabakman é bióloga, jornalista freelancer e escritora residente em São Paulo, Brasil. Autora dos livros A Saúde na Mídia; Medicina para Jornalistas; Jornalismo para Médicos (em português) e Biovigilados (em espanhol). A acompanhe no Twitter: @roxanatabakman .

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