O cérebro é indiscutivelmente o órgão mais complexo e misterioso do corpo humano.
Como epicentro da inteligência, mentor do movimento e música para os nossos sentidos, o cérebro é mais do que um órgão de 1,4 kg dentro de uma caixa e imerso em líquido. Em vez disso, é a joia da coroa que define o eu e, em termos gerais, a humanidade.
Há décadas que os pesquisadores vêm explorando o potencial de conexão do nosso próprio e espantoso “computador” biológico a computadores de fato. Estas chamadas “interfaces entre cérebro e computador” (ICC) estão se demonstrando promissoras para o tratamento de várias doenças, como paralisia, surdez, acidente vascular cerebral e até mesmo transtornos psiquiátricos.
Entre os grandes atores nesta área de pesquisa está o empresário bilionário Elon Musk, que em 2016 fundou o Neuralink . Em curto prazo, a missão da empresa é criar uma ICC para ajudar pessoas com doenças neurológicas (p. ex.: doença de Parkinson). A missão em longo prazo é direcionar a humanidade para a era da "cognição supra-humana".
Mas primeiro, um pouco do bê-á-bá da neurociência.
Os neurônios são células especializadas que recebem e transmitem informações. A estrutura básica de um neurônio é formada pelo dendrito, o corpo e o axônio. O dendrito é o receptor do sinal. O corpo da célula está conectado aos dendritos e serve como uma estrutura para a passagem dos sinais. O axônio, também conhecido como fibra nervosa, transmite o sinal em direção oposta ao corpo.
Os neurônios se comunicam uns com os outros nas sinapses (conexões entre os axônios e os dendritos). Os neurônios transmitem informações entre si por meio dos potenciais de ação. O potencial de ação pode ser definido como um impulso elétrico transmitido pelo axônio, causando a liberação de neurotransmissores, o que pode, consequentemente, inibir ou excitar o próximo neurônio (dando início a outro potencial de ação).
Então, como essa e outras empresas de ICC vão explorar este antigo sistema evolutivo para criar um implante que irá captar e decodificar a saída de informações do cérebro?
O implante da Neuralink é composto de três partes: dispositivo (Link), fios neurais e carregador.
Um sistema robotizado, controlado por um neurocirurgião, colocará o implante no cérebro. O Link é o componente central, que processa e transmite os sinais neurais. Os microfios neurais são conectados ao Link e a outras regiões do cérebro. Os microfios também contêm eletrodos, que são responsáveis pela detecção dos sinais neurais. O carregador mantém a bateria cheia através de uma conexão sem fio.
A natureza invasiva deste implante permite leituras precisas de descargas elétricas do cérebro – contrariamente aos dispositivos não invasivos, menos sensíveis e menos específicos. Além disso, por ser tão pequeno, os engenheiros e os neurocirurgiões conseguem implantar o dispositivo em regiões muito específicas do cérebro, bem como personalizar a distribuição dos eletrodos.
O implante Neuralink seria pareado com um aplicativo por meio de uma conexão por bluetooth . O objetivo é permitir que a pessoa com o implante controle seu dispositivo ou computador simplesmente pensando. O aplicativo traz vários exercícios para ajudar a orientar e treinar as pessoas a utilizar o implante para o fim desejado. Esta tecnologia permitiria que pessoas com dificuldades neurológicas (p. ex., paralisia) se comunicassem mais facilmente por meio da tecnologia de síntese de texto ou da fala, bem como participassem de atividades criativas, como fotografia.
A tecnologia de síntese de texto e da fala já existe. Por exemplo, a Synchron , uma empresa de plataforma de ICC, está pesquisando o uso do Stentrode para pessoas com paralisia grave. Esta neuroprótese foi projetada para ajudar as pessoas a associarem o pensamento ao movimento por bluetooth (p. ex., escrevendo mensagens, e-mails, fazendo compras ou usando bancos on-line). Resultados preliminares de um estudo no qual o dispositivo foi usado por pacientes com esclerose lateral amiotrófica mostraram aumento da autonomia funcional por meio do pensamento direto.
O software destinado a permitir a escrita manual de alto desempenho utilizando a tecnologia de ICC está sendo criado pelo Dr. Francis R. Willet, Ph.D., da Stanford University. Essa tecnologia também se revelou promissora.
“Aprendemos que o cérebro preserva sua capacidade de fazer movimentos finos uma década depois de o corpo ter perdido a capacidade de executar estes movimentos”, disse Dr. Francis, que recentemente apresentou os resultados de um estudo da interface entre o cérebro e o computador de conversão da escrita manual em um paciente com o corpo todo paralisado. Através de uma abordagem recorrente de descodificação das redes neurais, o participante do estudo BrainGate conseguiu digitar 90 caracteres por minuto – com uma impressionante acurácia bruta de 94,1% – utilizando apenas o pensamento.
Embora não seja um dispositivo cerebral totalmente implantável, esse implante percutâneo também tem sido estudado por sua capacidade de restaurar a função do membro superior nos pacientes com história de acidente vascular cerebral. Os resultados preliminares do ensaio clínico com o dispositivo Cortimo , feito pelo médico Dr. Mijail D. Serruya, professor assistente da Thomas Jefferson University, foram positivos. Os pesquisadores implantaram feixes de microeletrodos para decodificar sinais cerebrais e possibilitar a função motora em um participante com história de acidente vascular cerebral há dois anos. O participante conseguiu utilizar uma braçadeira no braço paralisado.
Neuralink divulgou recentemente um vídeo demonstrando o uso da interface em um macaco chamado Pager como se estivesse jogando um jogo com um joystick. Os pesquisadores da empresa inseriram um dispositivo de gravação neural e transmissão de dados com 1.024 eletrodos, chamado N1 Link, no córtex motor esquerdo e direito. Utilizando o implante, a atividade neural foi enviada para um algoritmo decodificador. Ao longo do processo, o algoritmo descodificador foi refinado e calibrado. Após alguns minutos, Pager conseguiu controlar o cursor na tela utilizando sua mente em vez do joystick.
Elon Musk espera desenvolver ainda mais o Neuralink para mudar não só a maneira como tratamos os distúrbios neurológicos, como também a como interagimos conosco e com o nosso ambiente. Certamente é um objetivo grandioso, mas que não parece fora da esfera da possibilidade em um futuro próximo.
Ilustres desconhecidos: as questões éticas
Uma das maiores charadas que o futuro da tecnologia da ICC representa é o fato de os pesquisadores não compreenderem inteiramente a ciência da interação entre a sinalização cerebral, o programa de inteligência artificial e as próteses. Embora a descarga dos cálculos melhore a natureza preditiva dos algoritmos da inteligência artificial, há questões de identidade e ação volitiva pessoal.
Como sabemos que a ação foi na verdade o resultado do pensamento do paciente ou, em vez disso, o resultado do programa de inteligência artificial? Neste contexto, a função de autocorreção durante a escrita pode ser incrivelmente útil quando estamos com pressa, quando estamos usando a mão para escrever ou por sua facilidade. No entanto, também é fácil criar e enviar mensagens não intencionais ou inadequadas.
Estes algoritmos foram concebidos para aprender com o nosso comportamento e prever os nossos próximos passos. No entanto, surge uma pergunta sobre se somos os autores de nossos próprios pensamentos ou se somos simplesmente o dispositivo que entrega mensagens sob o controle de forças externas.
“As pessoas podem questionar se as novas mudanças de personalidade que vivenciam são verdadeiramente representativas de si mesmas ou se agora são um produto do implante (p. ex., “isso sou eu mesmo?”; “eu cresci como pessoa ou é a tecnologia?”). Isto levanta então questões sobre a volição e quem somos como pessoas”, disse o cientista médico Dr. Kerry Bowman, Ph.D., especialista em bioética clínica e professor assistente na Temerty Faculty of Medicine da University of Toronto.
É importante ter proteções para assegurar a privacidade de nossos pensamentos. Numa época em que os dados são moeda corrente, é crucial estabelecer limites para preservar a nossa autonomia e evitar a exploração (p. ex., por empresas privadas ou hackers). Embora as interfaces Neuralink e entre o cérebro e o computador estejam certamente ampliando os limites da engenharia neural de um modo profundo, é importante levar em conta as implicações fisiológicas e éticas desta tecnologia.
Como destaca o Dr. Kerry, “ao longo de toda a história humana, nas piores circunstâncias, como no cativeiro e sob tortura, o único local seguro e lugar para todas as pessoas têm sido a privacidade da própria mente. Ninguém poderia nunca interferir, retirar ou conhecer os pensamentos. No entanto, essa tecnologia põe em xeque a própria privacidade – do momento em que essa tecnologia (e, por extensão, uma empresa) possa ter acesso a estes pensamentos”.
Leanna M. W. Lui, HbSC, é mestranda na University of Toronto na Mood Disorders Psychopharmacology Unit.
Siga o Medscape em português no Facebook, no Twitter e no YouTube
Medscape © 2021 WebMD, LLC
As opiniões expressas aqui são de responsabilidade pessoal do autor e não representam necessariamente a posição da WebMD ou do Medscape.
Citar este artigo: O futuro das interfaces entre o cérebro e o computador - Medscape - 15 de setembro de 2021.
Comente