Desde 2020, quando a telemedicina foi autorizada no Brasil por conta da pandemia, foram realizados mais de 7,5 milhões de atendimentos remotos no país, segundo dados da Associação Brasileira de Empresas de Telemedicina e Saúde Digital — Saúde Digital Brasil (SDB), uma associação sem fins lucrativos representativa dos prestadores de serviço de telessaúde do Brasil.
A grande maioria (91%) foi de consultas avulsas de pronto atendimento, 87% foram primeiras consultas e 6% foram considerados atendimentos essenciais para salvar a vida do paciente. No total, 200 médicos associados à SDB ofereceram o serviço por videoconferência (87%) ou telefone (13%). [1]
Há um consenso de que a telemedicina, ou seja, o atendimento médico à distância – no qual o diagnóstico, as decisões terapêuticas, o tratamento e as recomendações subsequentes, baseiam-se nos dados dos pacientes, documentos e outras informações transmitidas por sistemas de telecomunicação –, traz benefícios. Há também preocupações, visto que a pandemia apresentou esse desafio aos profissionais de saúde, sem que houvesse regras claras e o devido preparo, mas há movimentos nesta direção.
Com objetivo de compreender a percepção dos médicos brasileiros sobre o uso da telemedicina na assistência em saúde no país, o Conselho Federal de Medicina (CFM) deu início a uma pesquisa nacional sobre o tema. Segundo o site do CFM, "a expectativa é de que as conclusões da pesquisa auxiliem a autarquia na revisão da prática da telemedicina." Porque, de fato, a prática autorizada na pandemia ainda aguarda regulamentação do Conselho.
Recentemente, a Associação Paulista de Medicina (APM) organizou o webinar Empatia em tempos de telemedicina, no qual foram debatidas as melhores formas de se aproximar do paciente através da tela. O Dr. Carlos Alberto Pastore, cardiologista, livre docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenador de telemedicina do Instituto do Coração (Incor) da FMUSP, destacou que a capacitação dos médicos ainda é um desafio.
"A maioria não fez um curso especializado para formação em telemedicina e teleconsulta. A disciplina de telemedicina da FMUSP mostrou que apenas 12 das 340 universidades com curso de medicina do Brasil têm aulas de telemedicina." O médico acrescentou que, "as pessoas acham que pegar o telefone é fazer telemedicina, mas há ferramentas bem complexas".
Equipes
O atendimento remoto é muito diferente do presencial. De acordo com o Dr. Carlos Alberto, para manter um padrão de atendimento, uma equipe de tecnologia da informação (TI) "vai preparar o paciente e deixar ele na tua frente. Você entra só para atender".
Quem faz a prévia tem de preparar tudo, conferir os exames, porque o paciente pode ficar muito ansioso e não entender. O paciente precisa estar muito bem preparado e tranquilo. "O que temos notado é que o preparo do paciente antes do atendimento é fundamental. Se iniciar sem qualquer preparo, é um desastre. O paciente não sabe como mostrar os exames, por exemplo."
A relação a ser criada com o paciente deve ser considerada uma nova relação, e merece muita atenção. O médico deve estar disposto a repetir o que disse e cuidar para não falar junto com o paciente. Ele acrescentou algumas dicas: "A movimentação afirmativa com a cabeça, mostra que você está ouvindo. Se quiser interromper a fala do paciente, levante a mão."
"As dificuldades vão aparecer no decorrer da consulta", reconheceu o Dr. Carlos Alberto. "Em nossa experiência, os médicos não têm muito tempo para ouvir, mas para que o atendimento seja produtivo, o médico tem de ter muito cuidado".
Um dos cuidados que mencionados pelo Dr. Carlos Alberto é em relação ao envio e recebimento de informações médicas. Ele enfatizou que "plataformas como WhatsApp, Skype e Zoom não possuem um nível de segurança recomendado. O CFM e a Lei Geral de Proteção de dados já estão responsabilizando as clínicas médicas pela segurança e assim os possíveis vazamentos de informações", alertou.
"Há uma série de técnicas, mas infelizmente não e fácil", resumiu o Dr. Carlos Alberto, destacando a importância de ouvir os pacientes para avaliar se as consultas estão sendo produtivas. Ele recomendou ainda o uso de pesquisas de satisfação: "deixa os pacientes a vontade para dar sugestões, facilitando o aprimoramento da teleconsulta".
Habilidades essenciais que os médicos precisam ter
A American Telemedicine Association publicou um guia para profissionais da saúde. [2] Algumas recomendações geradas por consenso de especialistas são:
Entender quando e por que usar telessaúde
Saber avaliar o paciente, dominar a prática e as escolhas tecnológicas
Identificar recursos que forneçam informações sobre tecnologias atuais e emergentes
Desenvolver uma equipe com papéis e responsabilidades claras
Aprender a obter as informações adequadas durante a teleconsulta (p. ex., como realizar um exame físico remoto)
Ao prestar atendimento, criar uma relação de confiança e inclusiva, para trabalhar de forma efetiva com pacientes, famílias, cuidadores ou equipe de suporte
Comunicar expectativas e potenciais limitações da telessaúde
Cuidar da linguagem corporal e manter contato visual
Comunicar-se com clareza e empatia, dando instruções de acompanhamento para garantir a compreensão das informações e recomendações associadas
Instruir os pacientes sobre o uso adequado das tecnologias e guiá-los através da solução básica de problemas
Entender as limitações na confiabilidade e validade dos dados remotos dos pacientes
Identificar e dizer ao paciente quais são os recursos disponíveis localmente para apoiar seus cuidados
Demonstrar profissionalismo, respeito ao indivíduo e etiqueta em comunicações assíncronas e sincrônicas
Usar saudações, fechamentos e tom apropriados nas trocas
Verificar os equipamentos com antecedência
Usar trajes profissionais e atender em ambiente propício, com privacidade e iluminação adequada
Identificar a tecnologia necessária para o atendimento, incluindo plano de contingência para possíveis falhas tecnológicas
Entender e explicar aos pacientes as normas legais, minimizando o risco para o profissional de saúde e o paciente – o atendimento deve estabelecer a identidade do paciente, preservar a privacidade e garantir a confidencialidade
Entender como maximizar a segurança do paciente, estando preparado para escalar para cuidados presenciais com base no cenário clínico e responder a emergências comportamentais e médicas
Avaliar as necessidades, preferências e barreiras linguísticas, culturais e sociais, e como a tecnologia pode mitigar e/ou exacerbar a desigualdade no acesso ao cuidado
Primeira consulta
Há uma discussão sobre o que é ideal na primeira consulta. Um levantamento da regulamentação internacional feito pela SDB indica que praticamente não existe limitação à primeira consulta à distância nos demais países. Uma das exceções é o Uruguai, que impõe a necessidade de contato presencial prévio com o paciente.
A SDB defende que o médico tenha autonomia para avaliar cada paciente e decidir se continuará ou não com o atendimento à distância, segundo eles, essa é a principal garantia que a regulamentação da telemedicina no país deve dar aos profissionais. [1]
O professor Protásio Lemos da Luz, referência na cardiologia e na formação médica no Brasil, e autor dos livros As Novas Faces da Medicina e Medicina: Olhando para o Futuro, disse no webinar da APM que uma das dificuldades da telemedicina é não permitir que o médico tenha uma ideia completa da pessoa. Ele contou que atende 40% de seus pacientes por telemedicina, porque funciona "muito bem quando a gente já conhece o paciente", mas não recomenda o uso do recurso como primeira abordagem. "O exame físico e uma boa conversa são fundamentais. E, para isso, a consulta presencial é o ideal."
O professor reconhece que, em algumas situações, a primeira consulta via telemedicina tem seu lugar. "Há muitas razões para fazer à distância, orientar alguém que está distante e não tem acesso aos serviços de saúde ou interpretar uma imagem. Mas medicina clínica, no caso que já conhecemos o paciente, ainda perdemos a metade que é o exame físico." Segundo ele, a telemedicina deve ser feita por pessoas acostumadas à pratica médica presencial, "porque isso oferece ao indivíduo um substrato de conhecimento importante."
Tudo que se criou na pandemia facilitou muito a vida dos pacientes, especialmente de pacientes crônicos, na opinião do Dr. Carlos Alberto. "No diagnóstico, acho que a telemedicina é um caminho sem volta. Na consulta, vai depender muito da especialidade. Acredito que vai ficar um híbrido, com percentuais que estão se acomodando ao mercado." A psiquiatria, por exemplo, não tem uma necessidade tão grande de exame físico.
"O que estamos percebendo é que a relação entre o médico e o paciente vai precisar ser criada como algo novo. Isso requer uma adaptação na forma de comunicação, e o que esperamos do profissional do futuro é que ele consiga manter a humanidade nos atendimentos à distância", refletiu o Dr. Carlos Alberto. "A capacidade de trabalho remoto vai ser parte, e estamos criando cursos para mostrar a importância dessa formação específica. Entre os desafios, está como aderir a medicina tecnológica dentro da humanidade."
Roxana Tabakman é bióloga, jornalista freelancer e escritora residente em São Paulo, Brasil. Autora dos livros A saúde na Mídia, Medicina para Jornalistas, Jornalismo para médicos (em português) e Biovigilados (em espanhol). A acompanhe no Twitter: @roxanatabakman.
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Citar este artigo: Do outro lado da tela: a relação médico-paciente no ambiente virtual - Medscape - 9 de agosto de 2021.
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