Variante Delta no Brasil: um ponto fora da curva

Mônica Tarantino

20 de julho de 2021

Nota da editora: Veja as últimas notícias e orientações sobre a covid-19 em nosso Centro de Informações sobre o novo coronavírus SARS-CoV-2.

No momento em que o Brasil apresenta sinais de redução no número de casos de infecção pelo SARS-CoV-2 e de mortes por covid-19, a grande interrogação agora é a chegada da variante Delta.

De acordo com o Boletim Extraordinário do Observatório Covid-19, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), publicado em 14 de julho, os indicadores de incidência e mortalidade por covid-19 mantiveram tendência de queda pela terceira semana consecutiva. Os dados referidos no documento são referentes à semana epidemiológica 21 (de 04 a 10 de julho).

O Boletim também indica tendência de redução nas taxas de ocupação de leitos de unidades de terapia intensiva (UTI) em todo o país. Apenas cinco estados brasileiros – Rondônia, Amazonas, Pará, Tocantins e Goiás –, apresentaram aumento nas taxas de ocupação de leitos de UTI. Com o avanço da vacinação, o número de internações e óbitos caiu entre os grupos de risco (idosos e portadores de doenças crônicas), no entanto, a transmissão do SARS-CoV-2 permanece intensa entre os que ainda não foram imunizados. Para os pesquisadores do Observatório Covid-19, responsáveis pelo Boletim, "o alinhamento entre as tendências de incidência de casos novos e da mortalidade pode indicar um processo de arrefecimento mais duradouro da pandemia para os próximos meses".

Ou não. O ponto fora da curva é a chegada da variante Delta, identificada primeiramente na Índia.

"Ela representa o maior risco para que os números voltem a subir. Sabemos que está aqui, mas não sabemos se está circulando livremente, por falta de sequenciamento genômico. A probabilidade de que se dissemine rapidamente é de média a alta, porque a vacinação está avançando, e se a vacina der conta dessa variante, talvez os números não subam novamente", disse ao Medscape o Dr. Pedro Hallal, Ph.D., epidemiologista, professor da Escola Superior de Educação Física da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador do Epicovid-19, o maior estudo epidemiológico sobre coronavírus no Brasil.

Até 14 de julho, haviam sido confirmados casos de contaminação pela variante Delta em pelo menos sete estados brasileiros: Maranhão, Rio de Janeiro, Pernambuco, Goiás, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo. No dia 15, já haviam sido registrados 27 casos da Delta, com cinco mortes – quatro no Paraná, incluindo uma gestante de 42 anos, que viajou do Japão para o norte do estado, e uma no Maranhão, um homem de 54 anos que veio da Malásia a bordo de um navio cargueiro.

Em São Paulo, o Instituto Butantan confirmou por sequenciamento genético os dois primeiros casos autóctones da Delta na região do Vale do Paraíba. Os pacientes, um homem de 44 anos e uma mulher de 30 anos, não tinham histórico de viagem.

As autoridades de saúde do Rio de Janeiro também identificaram dois casos até agora, um homem de 27 anos morador de Vila Isabel, na zona Norte, e outro homem de 30 anos da ilha de Paquetá, cenário de um projeto de vacinação em massa; 20 pessoas que tiveram contato com os casos identificados estão sendo monitoradas.

Por ora, o principal motivo de inquietação em relação à variante Delta é a sua maior transmissibilidade, razão pela qual a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerou a cepa como "a mais rápida", o que provavelmente representará uma aceleração da pandemia. Para se ter ideia, de acordo com a revista Nature , dois meses após ter sido identificada no Reino Unido, em meados de abril, a Delta havia catalisado uma terceira onda na região, forçando o governo a adiar a reabertura total, originalmente programada para 21 de junho. Segundo os Centers for Disease Control and Prevention (CDC), no final de junho, a cepa já respondia por mais de 20% dos casos nos Estados Unidos.

Em entrevista ao site Yale Medicine, da Yale School of Medicine, nos EUA, o médico epidemiologista e colunista do Medscape Dr. F. Perry Wilson, afirmou que "é bastante dramático como a taxa de crescimento mudará". Segundo ele, a delta está se espalhando 50% mais rápido do que a variante alfa, que já era 50% mais contagiosa do que a cepa original do SARS-CoV-2.

"Em um ambiente sem qualquer medida para mitigar o contágio – onde ninguém está vacinado ou usando máscaras – estima-se que uma pessoa infectada com a cepa original do coronavírus infecte, em média, outras 2,5 pessoas. No mesmo ambiente, a variante delta se espalharia de uma para talvez 3,5 ou 4,0 outras pessoas."

De acordo com o epidemiologista e pesquisador Dr. Diego Xavier, do Observatório MonitoraCovid-19, da Fiocruz, apesar da tendência de diminuição dos casos e mortes, a nova fase da pandemia no país, marcada pela variante delta, deverá ser caracterizada por surtos em diversos locais, principalmente entre a população ainda não vacinada.

"Esses surtos tendem a ser mais recorrentes ao longo dos próximos meses, mas acreditamos que não será nada perto do que já vimos. Acho que o pior já foi e torcemos para que isso seja verdade", disse o pesquisador.

Na visão do Dr. André Ribas, epidemiologista da Faculdade São Leopoldo Mandic e consultor científico do HubCovid, como o país faz pouco sequenciamento genético, não se tem uma dimensão clara da circulação da variante Delta.

"Acho difícil que essa nova variante esteja ocorrendo de maneira difusa, porque provavelmente quando ela se difundir será possível observar algum tipo de mudança no padrão epidemiológico. Um exemplo disso foi o que aconteceu no estado de Illinois, nos EUA, onde a proporção de infectados pela Delta rapidamente superou a de infectados pela Gama."

O Dr. André acha difícil prever o comportamento da nova variante. "Se a situação atual se mantiver – considerando que já existe transmissão comunitária no Rio de Janeiro e em São Paulo, por exemplo, – é provável que essa variante se espalhe rapidamente para os outros estados, porque não temos nenhuma medida de contenção eficaz no Brasil para refrear o vírus", disse o pesquisador.

"Nós não fazemos o rastreamento de novos casos e o isolamento dos contatos. Então, é certo que a introdução vai acontecer, porque não temos condições, no Brasil, de fazer a contenção dessa variante", disse o pesquisador.

Os especialistas dizem também que ainda há muito a ser descoberto sobre a nova variante, por exemplo, se ela pode causar infecção mais grave do que o vírus original e como afeta o corpo. Um estudo recente feito na Escócia e publicado no periódico The Lancet sugere que, em comparação com a variante Alfa, pessoas infectadas pela Delta apresentaram o dobro do risco de hospitalização, mas tudo isso pode mudar à medida que surgem novos dados.

A eficácia das vacinas anticovídicas contra a Delta também está em estudo. Segundo o Ministério da Saúde de Israel, um dos países que melhor conduziu a vacinação e que praticamente controlou a pandemia até a chegada da variante originária da Índia, a eficácia da vacina da Pfizer caiu de 91% para 64% contra essa cepa. Lá, onde o número de novos casos aumentou de um dígito para mais de 400 por dia em junho, desde o dia 13 pessoas imunocomprometidas vêm recebendo a terceira dose da vacina da Pfizer. Se o reforço vacinal tiver impacto na redução de novos casos, poderá ser estendido aos mais vulneráveis e idosos – mas há controvérsias sobre essa dose de reforço.

As empresas Pfizer/BioNTech apresentaram às autoridades federais dos EUA dados que apontam aumento de casos de infecção entre pessoas vacinadas e dados preliminares do ensaio clínico que avalia a dose de reforço. Nesses estudos, os níveis de anticorpos foram entre 5 e 10 vezes maiores.

Outras empresas anunciaram dados sobre a eficácia de suas vacinas anticovídicas contra a delta. A vacina de Oxford/AstraZeneca mostrou eficácia de 60% contra covid-19 sintomática e de 93% contra hospitalização pela doença. A Moderna e a Janssen relataram bons índices de eficácia, mas também há diferenças na proteção em relação à cepa original.

A OMS afirmou que o foco deve ser administrar a primeira dose em quem ainda não foi vacinado. Até o fechamento deste conteúdo, ao todo, haviam sido administradas 3.518.247.404 doses de vacinas anticovídicas em todo o mundo.

Medidas eficientes

Na visão dos especialistas ouvidos pelo Medscape para esta matéria, o Brasil deveria definir um plano estratégico nacional para conter o avanço da variante Delta e os números da pandemia, porém, o país continua cometendo os mesmos erros – apesar de quatro ministros já terem assumido a pasta da Saúde desde o início da pandemia.

Um desses erros, de acordo com os especialistas, é justamente a falta de políticas unificadas e efetivas para combater o coronavírus. Um dos episódios mais trágicos e exemplares foi a gestão desastrosa do colapso sanitário ocorrido em Manaus, no Amazonas, no início de janeiro de 2021, onde milhares morreram por falta de oxigênio e medicamentos. Avisado com antecedência, o Ministério da Saúde não tomou providências. Especialistas também acreditam que a transferência de pacientes de Manaus para outras cidades de forma inadequada foi um dos propulsores da disseminação da variante Gama (previamente chamada de P.1) pelo país. Outra falha foi não ter havido um bloqueio vacinal e o fechamento das fronteiras.

"Naquele momento, em que ainda não havia uma segunda onda clara, as vacinas recebidas da AstraZeneca deveriam ter sido direcionadas para a região Norte, junto com o fechamento de fronteiras. Seria uma possibilidade de barrar a expansão da variante Gama ou de fazer com que a disseminação fosse muito mais fraca no país", disse a epidemiologista Dra. Carla Domingues, doutora em medicina tropical e ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI), no período de 2011 a 2019.

Atualmente, 90% dos casos registrados no Brasil são da Gama. A disseminação dessa variante levou ao esgotamento dos serviços de saúde em todas as áreas ao mesmo tempo.

"O grande desafio é vacinar rapidamente. Enquanto esperamos a chegada das vacinas que compramos, precisamos controlar o aumento dos casos. Onde piorar, não há outra medida a tomar a não ser o lockdown por 14 dias, no mínimo", disse ao Medscape o Dr. Gonzalo Vecina, médico e professor da Universidade de São Paulo (USP), da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e fundador da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).  

Até 14 de julho, 15,17% dos brasileiros (32.118.717 pessoas) haviam sido completamente vacinados, com duas doses ou dose única, e 40,77% (86.332.655 pessoas) haviam recebido a primeira dose do imunizante.

Os resultados dos estudos vêm demonstrando que, apenas as pessoas completamente vacinadas estão protegidas contra a variante delta, o que deixa uma boa margem de ação para a nova cepa "nadar de braçada" no Brasil.

"Nós temos ainda um longo caminho pela frente, porque neste momento são cerca 80 milhões com primeira dose e 29 milhões totalmente imunizados. É muito pouco para um país que tem a tradição do Brasil de acreditar em vacina e pela capilaridade do Sistema Único de Saúde (SUS), que já vacinou mais de 1,8 milhão de pessoas em um dia", avaliou a Dra. Carla. Com uma vacinação de início lento, o governo demorou a imunizar mais de um milhão de pessoas por dia. Há mais desafios. Segundo o Ministério da Saúde, ao menos 3,5 milhões de pessoas não voltaram aos postos de saúde para tomar a segunda dose. Entre os motivos estão a escassez de vacinas, a confusão sobre o intervalo e a disseminação de informações falsas sobre os imunizantes. Também pesa a falta de campanhas de comunicação para ajudar a população a compreender que, apesar de apresentarem diferentes taxas de eficácia, as vacinas são muito similares no seu desempenho para diminuir a gravidade dos casos, hospitalização e óbitos – que é o principal objetivo da campanha de vacinação.

Dessa confusão surgiu inclusive uma figura que se tornou popular no país, o "sommelier de vacina", pessoas que preferem esperar pela disponibilidade da vacina que consideram a melhor. O mesmo ocorre em relação ao uso de máscaras, alvo de declarações e gestos de desencorajamento constantes por parte do presidente da República. Para conferir a adesão da população ao equipamento, basta andar na rua para ver que o uso regular está longe de ser uma prática respeitada por todos.

Além disso, continua sendo necessário testar mais e fazer mais sequenciamento genético das amostras de testes positivos para o SARS-CoV-2. São realizados, em média, 7.857 exames por 100 mil habitantes no Brasil, de acordo com dados do Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde. Além disso, os números não são precisos e isso dificulta o monitoramento. "Temos uma capacidade ociosa de fazer 70 mil testes por dia, mas não devemos estar fazendo nem 30 mil", observou o Dr. Vecina.

Via de regra, as pessoas que buscam atendimento em unidades básicas de saúde – a porta de entrada para o SUS – com sintomas de covid-19 são testadas para a infecção pelo SARS-CoV-2 por meio de sorologia ou teste por reação em cadeia da polimerase (PCR, sigla do inglês Polymerase Chain Reaction). Os assintomáticos não são testados.

"Desde abril de 2020 não mudamos a essência das ações fundamentais de controle e nem a política de testagem", disse o Dr. André. Segundo o especialista, outra melhoria possível seria o uso mais racional dos testes.

"Um que poderia ser aproveitado de modo muito mais amplo e inteligente pela rede pública para ajudar as ações de controle da doença é o teste rápido de antígeno", disse ele.

Disponível em farmácias e na rede privada, esse teste (que analisa amostras coletadas da parte anterior do nariz, sem necessidade de ir com as hastes flexíveis até a nasofaringe) tem sensibilidade um pouco menor do que o por PCR, o teste de biologia molecular disponibilizado pelos laboratórios públicos, mas tem outras vantagens. Uma delas é a rapidez do resultado, que sai em cerca de 15 minutos, e a facilidade na forma de coleta da amostra, que pode ser feita até mesmo pelo próprio paciente.

"Isso aumentaria a testagem, com custos menores, melhoraria o diagnóstico em domicílio, por exemplo, e facilitaria o convencimento das pessoas a cumprirem a quarentena. Afinal, muita gente quer ver o resultado do teste para ter certeza de que está com o vírus, apesar da falta de sintomas", disse o Dr. André.

A testagem em massa é fundamental para o rastreamento e isolamento dos contatos. "Infelizmente, nesses quesitos o Brasil foi péssimo. Em nível estadual não tem nenhum exemplo de sucesso de rastreamento de contatos, ou seja, perguntar para as pessoas infectadas com quem tiveram contato", disse o Dr. Pedro. Poucos locais no Brasil fazem o rastreamento de contactantes e solicitam que essas pessoas façam quarentena, um deles é Fortaleza, no Ceará.

"Aqui em Fortaleza se faz rastreamento a partir da atenção básica pelos agentes comunitários de saúde. Quando a transmissão está alta o rastreamento perde a eficiência (porque necessitaria de centenas de rastreadores), mas é fundamental em períodos interepidêmicos ou direcionado para setores específicos", disse ao Medscape o Dr. Antônio Silva Lima Neto, Ph.D., professor de medicina da Universidade de Fortaleza (Unifor) e gerente da Célula de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza. Desde o primeiro retorno das aulas presenciais, o município também rastreia alunos e professores e funcionários de instituições de ensino que tiveram contato com alguém com suspeita da doença, no entanto, ações desse tipo ainda são raras no país.

Por fim, a apuração das responsabilidades pelas omissões no enfrentamento do vírus SARS-CoV-2 no Brasil também é uma medida fundamental para haver uma melhor gestão da pandemia, segundo enfatizou o Dr. Vecina. De fato, um estudo recente feito pelo Dr. Pedro Hallal estimou que pelo menos 95,5 mil vidas teriam sido poupadas se os contratos de compra com a Pfizer e a CoronaVac não tivessem sido postergados pelo governo federal. O número se soma a outros estudos que mostraram que pelo menos 120 mil mortes poderiam ter sido evitadas entre março de 2020 e março de 2021. Lembrando que a covid-19 matou mais brasileiros em quatro meses de 2021 do que durante todo o ano de 2020.

Siga o Medscape em português no Facebook, no Twitter e no YouTube

Comente

3090D553-9492-4563-8681-AD288FA52ACE
Comentários são moderados. Veja os nossos Termos de Uso

processing....