As etapas de atendimento ao paciente com sepse contemplam desde a admissão hospitalar e o estabelecimento de um plano terapêutico até o pós-alta. A sepse é uma síndrome potencialmente fatal que representa vários desafios clínicos como o reconhecimento do quadro, o início do tratamento em tempo hábil, o monitoramento da evolução e o acompanhamento do paciente, bem como a necessidade de atentar para possíveis sequelas e necessidade de reabilitação.
O tema foi abordado durante a sessão científica do XVII Fórum Internacional de Sepse, realizado on-line pelo Instituto Latino-Americano de Sepse (ILAS).
Atendimento ao paciente com sepse na UPA
O paciente com sepse que procura atendimento médico em uma unidade de pronto atendimento (UPA) muitas vezes difere daquele vai a um serviço de emergência. "Enquanto os pacientes que chegam ao hospital em geral apresentam um quadro claro de sepse grave, evoluindo muitas vezes para choque, os que chegam à UPA estão conversando, conscientes, orientados e não costumam mostrar os sinais clássicos da sepse", afirmou Paloma Ferrer Gomez, enfermeira do Hospital Sírio-Libanês e responsável técnica pelo Projeto Sepse nas UPAs, gerenciado pelo Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS).
Nas UPAs, o fluxo de entrada é predominantemente pela classificação de risco e, em geral, a suspeita de sepse está atrelada a infecções comunitárias. Como muitas vezes os sinais e sintomas não são claros, um dos principais gargalos nessas unidades acaba sendo o próprio reconhecimento do paciente com sepse.
Segundo a palestrante, as UPAs não têm obrigação de ter um protocolo de sepse e, portanto, cada unidade pode decidir quanto a sua inclusão na rotina. Segundo Paloma, diferentes fatores contribuem para que, em geral, esse protocolo não seja implementado, "por exemplo, como a UPA é considerada uma rede de atenção de urgência e emergência, com foco em estabilizar e referenciar precocemente o paciente, muitas vezes as unidades não veem necessidade de criar um protocolo de sepse, uma vez que o paciente será reavaliado horas depois". No entanto, a enfermeira alertou que, "na prática, muitas vezes o paciente acaba ficando na UPA devido à sobrecarga do setor hospitalar".
Outro fator que contribui para a inexistência desse protocolo nas UPAs é, segundo a especialista, a ausência de um setor de apoio, de um setor de aconselhamento, tal como uma Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH). Há ainda uma fragilidade em relação à análise laboratorial; principalmente no que se refere à disponibilidade de resultados de lactato no prazo de uma hora. "Embora saibamos que a avaliação tissular faz diferença, na nossa cultura ainda há muitos médicos que não abrem o protocolo de sepse enquanto não tem o resultado do lactato", explicou.
De acordo com Paloma, outro aspecto cultural que restringe a implementação do protocolo de sepse nas UPAs é a crença de que o quadro deve ser necessariamente tratado com antibiótico de amplo espectro como vancomicina, meropenem e polimixina. "Nesse cenário, estamos falando principalmente de infecções comunitárias para as quais muitas vezes antibióticos como ceftriaxona e metronidazol já são o maior espectro", destacou, acrescentando que existe ainda uma fragilidade em relação à classificação de risco, o que também representa um fator limitante. "Temos uma classificação de risco muitas vezes rápida, sem tempo para ficar procurando tantos sinais e sintomas", lembrou. "Temos de atrelar tudo isso ao fato de a maior parte dos profissionais ser recém-formada", completou.
Para Paloma, existem formas de melhorar esse cenário, com destaque para: investimento na capacitação profissional, incentivo da atualização constante e da prática do raciocínio clínico, principalmente para os recém-formados, ampliação do conteúdo sobre sepse abordado na graduação e desenvolvimento de iniciativas e projetos de melhoria.
A enfermeira apresentou alguns exemplos de iniciativas, sendo uma delas o projeto Sepse nas UPAs, do qual faz parte, que tem como objetivo principal identificar e tratar precocemente a afecção nas UPAs. Iniciado em 2019, o projeto é fruto de uma parceria entre o Ministério da Saúde e o Hospital Sírio-Libanês, com suporte do Institute for Healthcare Improvement (IHI) e do ILAS. Atualmente, está presente em 35 UPAs de 12 estados.
Para melhorar o reconhecimento do paciente com sepse, as unidades incluídas no projeto PROADI-SUS passaram a trabalhar com a classificação de risco habitual, além das outras ferramentas voltadas para o reconhecimento da sepse. Segundo a enfermeira, já na classificação de risco questiona-se se é possível excluir infecção e se não há certeza quanto a essa decisão, o protocolo é iniciado; o paciente é encaminhado de imediato para a avaliação clínica, que deve determinar se dará sequência ou não. Durante esse processo, é utilizada uma sinalização para que todos saibam da suspeita de sepse e o tempo de atendimento passa a ser cronometrado, a fim de garantir que todas as ações aconteçam dentro do tempo recomendado. Atualmente, o grupo está desenvolvendo medidas voltadas para as demais etapas envolvidas no atendimento do paciente com sepse.
Segundo Paloma, é preciso sensibilizar e criar equipes de alta performance nas UPAs que consigam reconhecer precocemente a sepse e tratar o quadro, a fim de diminuir a morbimortalidade. Isso deve ser feito de maneira a se adequar à realidade das unidades. "A nossa ideia não é transformar as UPAs em uma retaguarda hospitalar, mas sim prestar atendimento com os recursos disponíveis, garantindo que o paciente receba o antibiótico na hora preconizada e que vá para um setor terciário com menos risco de morbimortalidade pela síndrome", destacou.
A importância do plano terapêutico para o paciente com sepse
Para a Dra. Carolina Resende, enfermeira da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora no Centro Universitário Newton Paiva e doutora em ciências da saúde (infectologia e medicina tropical) pela UFMG, o plano terapêutico deve ser entendido como um caminho a ser seguido pelo paciente com sepse desde o momento da identificação do quadro na unidade assistencial, passando pelo tratamento e por cuidados de enfermagem até atenção no pós-alta.
Durante a apresentação, a palestrante lembrou a importância da implementação dos bundles de tratamento, que são intervenções baseadas em evidências científicas que comprovadamente contribuem para a redução da mortalidade de pacientes com sepse, [1] com destaque especial para o bundle de uma hora. "Cito ainda a importância de dosar o lactato, coletar hemocultura, administrar antibióticos, cristaloides e vasopressores em pacientes com hipotensão persistente após a reposição volêmica", ressaltou.
No entanto, ela explicou que o tratamento do paciente com sepse vai além da implementação dos bundles, incluindo ainda a criação de um plano de cuidados e intervenção, e a reavaliação contínua. "O plano terapêutico é uma forma de promover a integralidade do cuidado, um cuidado mais ampliado ao nosso paciente com sepse", destacou, lembrando que fazem parte da equipe multidisciplinar que atuará no cuidado desse paciente: o médico, o enfermeiro, o farmacêutico clínico e o fisioterapeuta.
O plano terapêutico, segundo a Dra. Carolina, ajuda na detecção precoce do paciente com sepse, bem como contribui para que as intervenções sejam feitas em tempo ideal e para que haja um cuidado contínuo durante o período de internação. "É uma estratégia capaz de melhorar prognósticos, reduzir complicações pós-alta e aumentar a qualidade de vida desse paciente após o período de hospitalização", disse.
O pós-alta no paciente com covid-19: papel da equipe multidisciplinar
Ao analisarmos criticamente as doenças graves, muitas vezes a carga principal acaba estando atrelada ao tempo, ou seja, o maior desgaste ocorre em função das sequelas tanto físicas, cognitivas e mentais. No entanto, como lembrou o Dr. Regis Rosa, médico intensivista, pesquisador do Hospital Moinhos de Vento e membro do Comitê Executivo da Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva (BRICNet), a Survival Sepsis Campaign, [2] que atualmente elabora os principais documentos globais sobre sepse, ainda não aborda estratégias sobre como prevenir, manejar e reabilitar os pacientes pós-sepse. Essa é, portanto, uma grande lacuna no conhecimento, e é muito importante discuti-la, destacou em sua apresentação.
Segundo o médico, os desfechos imediatos da covid-19, assim como os da sepse, são apenas a ponta do iceberg. "Existe um racional, uma plausibilidade biológica para que os sobreviventes apresentem grandes sequelas na sua saúde física, mental, social e na qualidade de vida. Da mesma forma que estamos tendo uma pandemia de uma doença que tem o potencial de causar um quadro grave agudo, também estamos tendo uma pandemia de sequelas da doença grave que conhecemos de outros modelos semelhantes, por exemplo, da síndrome do desconforto respiratório agudo", ressaltou.
Grande parte dos pacientes que sobreviveram à infecção por SARS-CoV-2 e que "são considerados recuperados pela mídia" apresenta algum tipo de sequela que, de acordo com o Dr. Regis, pode ocasionar comprometimento da qualidade de vida, mas também reinternação hospitalar e morte em médio e longo prazo.
Existe um número crescente de relatos de sintomas persistentes da covid-19. Hoje, já há mais de 50 sintomas descritos possivelmente associados aos efeitos prolongados da covid-19, incluindo fadiga, fraqueza muscular, alopecia, anosmia, dispneia, alterações gastrointestinais, dificuldade de concentração, insônia, ansiedade, sintomas de depressão, estresse pós-traumático, entre outros. [3]
"É uma miríade de sintomas que está sendo descrita e que está possivelmente associada a consequências da covid-19 em longo prazo", disse o palestrante.
Além disso, existem os efeitos mediados por doença grave. Os sobreviventes de enfermidades críticas podem apresentar, por exemplo, fraqueza muscular associada aos cuidados intensivos, redução da capacidade respiratória, lesões laringotraqueais devido à entubação prolongada, disfagia após ventilação mecânica, contraturas articulares subsequentes a um longo período de sedação com bloqueadores neuromusculares. Em termos cognitivos também pode ocorrer déficit de memória, de atenção e de função executiva. "Pode ocorrer prejuízo em todas as funções nobres e importantes para a pessoa voltar ao trabalho e aos estudos, por exemplo. Há ainda o acometimento de saúde mental, com ansiedade, depressão e estresse pós-traumático. É importante lembrar que esses efeitos de longo prazo mediados por doença grave, tal como ansiedade, depressão, estresse pós-traumático, luto patológico, entre outros, também podem acometer os familiares", disse o Dr. Regis.
As sequelas pós-covid-19 têm sido nomeadas de formas diversas, no entanto, um termo que vem ganhando destaque, segundo o palestrante, é long covid.
O tratamento do paciente com esse quadro exige uma abordagem interdisciplinar. O Dr. Regis destacou alguns aspectos que devem ser prioridade no tratamento do paciente após a covid-19, sendo o reconhecimento a primeira delas. "Precisamos triar esses pacientes que apresentam ou que estão em risco de apresentar sequelas pós-covid-19. É importante lembrar que temos dois grandes fenótipos nesse contexto: aqueles com quadros moderados a graves, que passaram por UTI, ventilação mecânica, mas também pessoas com quadros mais brandos, quadros leves, que não precisaram de hospitalização e que também podem apresentar sintomas prolongados de covid-19. Temos que levar isso em consideração, mas, claro que os quadros mais graves são os que têm mais chances de apresentar complicações em longo prazo, assim como pacientes idosos, com comorbidades, frágeis ou com história de doença mental", destacou.
Outra prioridade deve ser a prevenção de infecções, visto que muitos sobreviventes de doenças graves como síndrome respiratória aguda grave e sepse acabam morrendo após hospitalização devido a um novo quadro de infecção. Outra medida que deve ser prioritária é a reconciliação de tratamentos. "Uma das principais causas de reinternação hospitalar após uma doença crítica é a descompensação de comorbidades, assim como a própria toxidade de medicamentos, então, é fundamental suspender tratamentos hospitalares sem indicação de continuidade como antipsicóticos que fizeram sentido em algum momento, mas agora não fazem mais, e também retomar o uso dos medicamentos da doença de base do paciente", orientou o médico, lembrando a importância de se fazer o ajuste das doses sempre que necessário. "A reabilitação física é outra prioridade, assim como a reabilitação mental", acrescentou.
A mesa-redonda foi moderada por Josiane Ferreira, enfermeira e coordenadora do ILAS, e Rennan Ribeiro, enfermeiro intensivista do Hospital São Paulo e presidente da Associação Brasileira de Enfermagem e Terapia Intensiva (ABENTI).
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Citar este artigo: Os desafios da sepse em diversos âmbitos - Medscape - 15 de junho de 2021.
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