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Já não há dúvidas de que a pandemia está sofrendo um processo de "rejuvenescimento" no Brasil. O Boletim Observatório Covid-19 da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) referente ao período de 4 a 17 de abril de 2021 (semanas epidemiológicas 14 e 15) aponta que o aumento do número de mortes por covid-19 foi maior entre jovens de 20 a 29 anos de idade, registrando 1.081,82% de aumento nesta faixa etária, enquanto o aumento global foi de 429,47%. Quanto à internação em unidades de terapia intensiva (UTI), em uma semana a proporção de pacientes com menos de 70 anos passou de 52,74% para 72,11%.
Além disso, duas novas pesquisas epidemiológicas descrevem mudanças no perfil de pacientes acometidos pelas formas mais graves da doença e daqueles que evoluem com óbito, associando estes resultados a um possível perfil de patogenicidade e virulência da variante P.1, que hoje predomina em território nacional.
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Imagens: Cortesia de Richard Salvato |
O primeiro estudo [1] analisou o perfil de letalidade do coronavírus antes e depois do surgimento da variante P.1 no estado do Amazonas. Comparando os registros de abril e maio de 2020 (pico da primeira onda no estado) aos de janeiro de 2021 (quando a nova variante passou a predominar), os autores descrevem um aumento da letalidade da doença nas faixas etárias mais jovens e nas mulheres.
A mesma equipe estudou outro estado, o Rio Grande do Sul, para analisar o perfil de gravidade dos casos de covid-19. [2] Novamente, ao comparar os registros da primeira onda (novembro a dezembro de 2020) ao mês em que a variante P.1 passou a predominar no estado (fevereiro), os autores notaram um aumento na proporção de jovens, assim como de pessoas sem comorbidades, entre os casos que evoluíram com doença grave ou morte.
Para os autores das duas pesquisas divulgadas em pre-print (ainda sem revisão por pares), as alterações observadas no padrão de mortalidade por covid-19 entre as faixas etárias e os sexos simultâneas ao surgimento da variante P.1 sugerem alterações no perfil de patogenicidade e virulência desta nova variante.
"Os resultados são muitos semelhantes nas duas regiões, com um aumento expressivo da letalidade em populações que antes eram preservadas. Mas, quando a P.1 passou a prevalecer no Amazonas já havia uma situação de sobrecarga no serviço de saúde, já não havia leitos, respirador, oxigênio. No Rio Grande do Sul, a rede hospitalar é melhor, estava mais bem preparada, e analisamos um período no qual o sistema de saúde ainda não estava sobrecarregado. Desde quando a P.1 chegou à região houve um aumento na hospitalização e na letalidade; esse dado é muito importante, porque não se pode atribuir o aumento na gravidade dos casos unicamente a problemas de assistência. Identificamos que, em comparação com a linhagem anterior, a P.1 parece afetar de maneira diferente as populações, e isso também é bastante preocupante", disse ao Medscape o Dr. André Ricardo Ribas Freitas, epidemiologista e professor de epidemiologia e estatística na Faculdade São Leopoldo Mandic, em Campinas, e primeiro autor dos trabalhos.
"São achados muito relevantes", disse ao Medscape o Dr. André Giglio Bueno, professor de infectologia da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, que não participou da pesquisa.
"Os trabalhos acabam materializando uma impressão do dia a dia, que já vinha sendo observada desde o início dessa segunda onda, de que haveria, de fato, uma proporção muito grande de pacientes jovens sem comorbidades. Esses trabalhos comparam dois períodos com diferenças estatisticamente significativas, indicando que pode haver um componente biológico na gravidade da segunda onda."
Solicitado a comentar os estudos, o Dr. Julival Ribeiro, infectologista da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) no Distrito Federal, disse: "São pesquisas importantíssimas. Precisamos ficar atentos a essa variante P.1 e a outras variantes que já temos no Brasil. Segundo as duas publicações, vêm sendo observadas mudanças no perfil de pacientes acometidos e com quadros mais graves. Estudos epidemiológicos são necessários para conhecermos melhor essas variantes de atenção, pois as pesquisas indicam que são altamente transmissíveis e podem causar quadros mais graves."
De norte a sul
"Trabalho na assistência no estado de São Paulo, atendo pacientes no Hospital Municipal Dr. Mario Gatti em Campinas e, antes de fazer esta análise, eu tinha visto o agravamento de quadros de jovens sem comorbidades. Temos uma rede chamada ProEpi (Associação Brasileira de Profissionais de Epidemiologia de Campo), que estimula a troca de ideias, informações e experiências para o aperfeiçoamento profissional. Foi a partir dessa constatação em várias regiões que fizemos as pesquisas", observou o Dr. André Ricardo. Os demais autores, que são membros da ProEpi, trabalham em outras instituições, como: Faculdade de São Leopoldo Mandic, Universidade Federal do Ceará, Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas, Centro Universitario Christus de Fortaleza e Instituto Butantan.
As duas pesquisas mostram que, após a identificação da circulação local da variante P.1, a taxa de letalidade da covid-19 aumentou em todos os âmbitos analisados (faixa etária e sexo) nas duas regiões. Os pesquisadores também identificaram que alguns grupos foram desproporcionalmente mais afetados na segunda onda do que na primeira, de acordo com os casos notificados ao Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe) do Ministério da Saúde.
No estado do Amazonas, a taxa de letalidade entre os pacientes de 20 a 39 anos hospitalizados durante a segunda onda foi 2,7 vezes maior do que a observada na primeira onda, além de ter superado o aumento na população geral (1,63: mulheres; 1,24: homens). A taxa global de mortalidade feminina por covid-19 na segunda onda foi de 1,64 vezes maior do que taxa de mortalidade observada na primeira onda, mas a mudança foi maior nas faixas de 20 a 39 anos e de 40 a 59 anos (1,96 e 2,31)
No Rio Grande do Sul, os achados mostraram um aumento na proporção quadros graves e óbitos entre jovens e pessoas sem comorbidades. Entre aqueles que evoluíram para óbito, a proporção de pacientes sem fatores de risco pré-existentes aumentou expressivamente (22% dos óbitos na segunda onda versus 13% na primeira). Já entre os casos graves, a proporção de pacientes sem fatores de risco pré-existentes também foi maior na segunda onda (33%) do que na primeira (25%).
Em Manaus, as primeiras cepas da variante P.1 foram identificadas em novembro de 2020. Atualmente, esta é a cepa predominante no estado do Amazonas. No mesmo período, observou-se um aumento abrupto no número de internações por covid-19, com alta mortalidade entre jovens, o que na época foi parcialmente atribuido ao fato de os sistemas de saúde da região serem mais frágeis. Mas os autores das pesquisas em pauta destacaram que, se o colapso do sistema de saúde no Amazonas fosse a única explicação, o aumento teria sido mais homogêneo entre as diferentes faixas etárias e sexos, como ocorreu na primeira onda ou no período entre os surtos.
Além disso, segundo os autores, a escassez de recursos poderia ser a justificativa para a heterogeneidade, mas com um maior aumento da mortalidade entre idosos e pacientes do sexo masculino, que são conhecidos por ter um mau prognóstico para esta doença.
No Rio Grande do Sul, a mudança epidemiológica começou a ser notada seis semanas antes do esgotamento das vagas de UTI no estado. Segundo os autores, o fato de o aumento da letalidade ter sido simultânea à confirmação da presença da variante P.1 no estado, e de isto ter precedido em várias semanas a sobrecarga do sistema de saúde, reforça a hipótese de que o risco de morte entre pacientes com covid-19 aumentou independentemente da sobrecarga do sistema de saúde.
A vacinação, no entanto, não parece ser uma explicação plausível para as mudanças de risco entre as faixas etárias e a população com comorbidades, uma vez que no final de fevereiro de 2021 apenas profissionais de saúde, idosos institucionalizados e com mais de 80 anos estavam recebendo a vacina. Até 28 de fevereiro, 48,0% dos idosos acima de 80 anos haviam recebido a primeira dose da vacina anticovídica e apenas 0,7% haviam recebido a segunda dose.
Mais transmissível e mais grave?
Já tinha sido estimado que a P.1 seria de 1,4 a 2,2 vezes mais transmissível do que as suas precursoras, e que a carga viral em infecções pela variante P.1 seria significativamente maior do que em infecções por outras cepas, tanto em homens como em mulheres entre 18 e 59 anos, mas que a diferença não seria significativa em homens com mais de 59 anos, conforme noticiado pelo Medscape.
"Esta é a primeira evidência de maior gravidade desta variante de atenção, especialmente em alguns grupos que antes eram preservados (pessoas sem comorbidades, população jovem e feminina), assim como de que ela mata mais rápido do que as linhagens anteriores. Analisamos a proporção de internações e a taxa de letalidade no Rio Grande do Sul, ou seja, o número de pessoas hospitalizadas e de mortes entre aqueles que adoecem, estes indicadores não se alterariam por aumento no número de casos entre jovens, o que ocorreu foi de fato aumento na gravidade e na letalidade da doença", afirmou Dr. André Ricardo.
Com a prevalência da P.1., a mediana do início dos sintomas até a morte passou a ser de 15 dias – na primeira onda era de 17 dias –, e o tempo entre a internação e a alta aumentou em três dias, registrando uma mediana de 15 dias, quando antes era de 12. O porquê não foi objeto da pesquisa. "Não analisamos este achado de forma detalhada, porque o desenho da pesquisa não era adequado, mas, apesar da diferença no tempo de evolução, não encontramos diferenças em relação aos sintomas relatados."
As evidências que faltam
Trata-se de uma pesquisa preliminar, na qual os pesquisadores trabalharam com dados secundários, algo que, como foi reconhecido por eles, pode acarretar problemas de qualidade/integridade e atrasos no registro. Os autores assumiram que a maior parte dos pacientes teve covid-19, mas nem todos foram testados. Eles também não conseguiram considerar outros fatores, como o tratamento.
"Na avaliação conjunta das pesquisas há ainda outros fatores a considerar", acrescentou o Dr. André Ricardo. "O perfil da população é diferente, a população de pretos e pardos na região Norte é muito maior do que na região Sul e não sabemos o que a genética pode fazer."
No entanto, o Dr. André Ricardo não tem muita dúvida de que a responsável pela mudança no padrão de gravidade é a linhagem P.1, "mas é logico que este achado precisa ser confirmado. Seria necessário fazer uma coorte de pacientes ou um estudo de caso-controle. O ideal seriam estudos de sequenciamento com cada paciente, avaliando a evolução, mas no Brasil é difícil, não há grandes centros equipados para análise e não temos vigilância virológica genômica adequada. Na Inglaterra, pesquisadores conseguiram realizar uma coorte com milhares de pacientes, pelo fato de terem uma vigilância mais sofisticada".
"A análise de dados secundários é uma limitação, mas outra é o fato de o país sequenciar muito pouco, o que impede a realização de uma análise mais aprofundada, comparando a gravidade dos casos, sabendo exatamente qual variante provocou cada caso", disse o Dr. André Bueno. "Mas, no contexto atual isso é impossível, então nesse sentido estes dados são perfeitamente passíveis de ser utilizados."
Solicitado a comentar o estudo para o Medscape, Richard Salvato, que trabalha no diagnóstico molecular do coronavírus no Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs) da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul e faz parte da vigilância genômica da região, reconheceu a deficiência. Ele disse, no entanto, que semana passada foi iniciada uma nova estratégia para a identificação de variantes no laboratório central do estado, o que deve permitir a realização de 100 amostras por dia.
"O padrão-ouro para identificar a linhagem do vírus é o sequenciamento genômico de toda a amostra, mas, devido ao grande número de amostras e ao fato de o sequenciamento ainda ser uma técnica cara e complicada, adotou-se uma ferramenta para detectar variantes específicas, amplificando por RT-PCR algumas deleções que essas variantes de atenção carregam, ou seja, identificando essas deleções sabemos que essas amostras são potencialmente P.1 ou da África do Sul."
Em todo caso, Richard ressaltou que a pesquisa focada no Rio Grande do Sul tem fundamento, porque houve um aumento expressivo desta variante de atenção no estado. "A P.1 representa o 90% das amostras sequenciadas, tanto por sequenciamento quanto por RT-PCR, e está associada à alta de casos iniciada no começo de março de 2021."
No Rio Grande do Sul, a primeira onda foi marcada pela predominância da variante de interesse (VOI, do inglês, variant of interest) P.2., "mas, no começo de fevereiro, quando a P.1 foi identificada, a P.2 praticamente sumiu e logo houve um aumento de casos e óbitos", explicou Richard, que é doutorando da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Na opinião dele, a pesquisa de Dr. André Ricardo e colaboradores é um trabalho epidemiológica e estatisticamente robusto no que tange a gravidade da doença, mas ele ressaltou que outros fatores, além do colapso hospitalar, podem contribuir para o cenário, como demora na busca por atendimento e maior exposição da população jovem – algo que pode ocorrer tanto em função da necessidade de trabalhar, como pelo descumprimento das medidas de distanciamento, especialmente no feriado do Carnaval e especialmente no litoral do estado.
"Este pode ser um viés, mas não deixa de ser preocupante. Ainda não há nada publicado confirmando que a P.1 cause uma doença mais grave."
Para Richard, esta VOC (do inglês, variant of concern) é considerada apenas por ter transmissibilidade mais alta, e conter a transmissão é a principal preocupação.
"Primeiro foi no Norte, depois aqui no Sul, agora na região Sudeste, e nos países vizinhos, como Uruguai, Argentina e Paraguai. Onde registrou-se a variante P.1, observou-se aumento dos casos."
A possibilidade de reinfecção é outra preocupação, mas, curiosamente, até o momento foi notificado apenas um caso de reinfecção no Rio Grande do Sul. [3]
"Reinfecção é sempre uma pergunta importante em relação às novas variantes. Mas independente das variantes, estudos já mostraram que a resposta imunitária vai diminuindo ao longo do tempo. No estado temos notificações significativas de casos de reinfecção, já enviamos centenas de amostras de suspeitas de infecção que atendem os critérios epidemiológicos, no mínimo 90 dias de intervalo, dois RT-PCR positivos". O gargalo estaria no fato de o Ministério da Saúde exigir que sejam sequenciadas as amostras dos dois episódios. "Quase sempre uma das amostras não pode ser sequenciada, por carga viral baixa ou material insuficiente. Merece ser discutido se não seria adequado mudar a definição", refletiu.
Alerta
"Temos evidências de que estamos diante de uma linhagem que causa doença mais grave, aumenta a necessidade de hospitalização, causa mais mortes, tem um período mais curto entre o início dos sintomas e a morte, maior hospitalização dos que não morrem, e que afeta de maneira proporcionalmente maior a população de 20 a 59 anos, sem doença prévia, do sexo feminino", resumiu o Dr. André Ricardo.
Ele contextualiza a situação em relação ao Reino Unido. "A diferença em gravidade foi muito maior no Brasil do que na Inglaterra, onde o aumento de letalidade foi estimado em 70%. A letalidade na população feminina do Rio Grande do Sul dobrou, e na masculina, aumentou 86%. No Reino Unido o aumento da letalidade foi homogêneo em todas as faixas etárias. Aqui a letalidade na população entre 20 e 39 anos aumentou 5,6 vezes entre mulheres e 5,9 vezes entre homens sem doenças pré-existentes."
"Estas pesquisas deixam clara a gravidade da situação", concluiu o Dr. André Bueno. "É obvio que essa explosão de casos se deve muito ao relaxamento das medidas preventivas, independente da virulência da variante. Mas é um dado a mais que ajuda a explicar a gravidade da situação, além desse relaxamento das medidas preventivas pode ter esse componente biológico de uma maior virulência da cepa de provocar casos graves."
O Dr. André Bueno ressaltou ainda que "isso reforça a necessidade de combater a epidemia de forma mais enérgica. Para evitar ver na prática a potencial maior gravidade dessa variante, e para evitar o aparecimento de outras talvez com um potencial de gravidade e transmissibilidade ainda maior. Isso é plenamente possível de acontecer".
Os Drs. André Ricardo Ribas Freitas, André Bueno, Julival Ribeiro e o doutorando Richard Salvato informaram não ter conflitos de interesses.
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Citar este artigo: A 'nova' covid-19 brasileira - Medscape - 29 de abril de 2021.
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